O delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, o torturador mais notório da ditadura militar, é nome de rua em São Carlos, no interior de São Paulo. Saindo da universidade federal, a UFSCar, a via é a primeira da zona urbana. "Ninguém precisa ser carbonário para se horrorizar com essa homenagem", diz o professor de filosofia Bento Prado Neto, filho de Bento Prado Júnior, falecido professor emérito da universidade, cassado pelo regime no qual Fleury foi peça-chave.
Com duas quadras de asfalto gasto, a rua tem pouco mais de 200 metros. O delegado, que também criou o esquadrão da morte paulistano, nos anos 60, está em duas placas. Deve-se o tributo ao prefeito Antônio Massei, que ocupou o cargo por três vezes e baixou o decreto-lei em maio de 1980, um ano depois de Fleury morrer afogado em Ilhabela, no litoral norte paulista.
Com numeração irregular, a rua Fleury tem quinze imóveis térreos, três dos quais estão fechados, um deles com uma placa de aluguel. Soma pouco mais de vinte moradores, incluídos os universitários que alugam quitinetes em duas repúblicas. Pela lei do município, só a Câmara Municipal pode mudar o seu nome. Para tanto, é obrigatório que 75% dos moradores concordem com a troca.
Lineu Navarro, um ex-trotskista de 50 anos que militou na corrente estudantil Libelu e é formado em história, está no terceiro mandato como vereador do PT. Ele só atentou para o nome da rua no início do ano, quando o professor e escritor Deonísio da Silva publicou na internet um protesto. Navarro promete apresentar em breve um projeto de mudança. "Não será tão fácil quanto parece", avalia. Em março, entregou uma carta, de porta em porta, com o seguinte texto: "O delegado Fleury foi um dos mais cruéis torturadores que atuaram em São Paulo durante a ditadura militar. Comandava o temido Dops e participava pessoalmente das bárbaras sessões de tortura a presos políticos. Hoje não faz sentido homenagear um torturador que simbolizou um período sombrio da história."
Em São Carlos, também é nome de rua uma vítima direta do delegado Fleury: o comunista Carlos Marighella, um dos líderes da esquerda terrorista, assassinado em 1969, em São Paulo, numa operação comandada pelo delegado. É uma rua de terra malcuidada, na periferia, que nem placa tem.
O aposentado David Ribeiro da Silva, de 57 anos, é dono da casa de número 49 da Fleury, uma ampla construção térrea de cor rosa-flamingo, com vaga para dois carros na garagem. Mora ali há 25 anos. Num sábado à tarde, de bermuda e camiseta na porta de casa, ele disse: "O nome da rua nunca me incomodou. Mudar agora vai causar transtorno, vai ter que alterar o registro do cartório, a correspondência, o cartão de crédito." Ele define Fleury como "um cara aproveitador do sistema, que foi do esquadrão da morte e fazia o que bem entendia". Silva toparia a mudança do nome se fosse "para homenagear alguém de São Carlos". E quem poderia substituir o torturador nas placas? "O meu pai, Osvaldo Ribeiro da Silva, que pintou o forro da igreja matriz e fundou a banda da cidade", respondeu ele.
No número 20, uma casa de fachada verde, vive há mais de três décadas Josefina Casarini Godoy. Ela está com 59 anos e mora com a filha. Achava que o nome da rua era homenagem a algum parente do ex-governador de São Paulo Luiz Antônio Fleury Filho. Soube que era o outro pela carta distribuída por Navarro. "Essa discussão é uma bobeira, uma perda de tempo", afirma. Quando lhe perguntam se é contra ou a favor da mudança, contenta-se em responder: "Para mim, tanto faz."
Numa das esquinas, o amarelo berrante das paredes chama a atenção para o bar e mercearia São João, vulgo "Primeiro Gole", estabelecimento plantado ali há trinta anos. O filho da proprietária, Luiz Roberto Ferreira, lê, atento, um Dicionário Bíblico Universal. "Ouvi falar que esse Fleury era um ditador, mas não conheço", diz. "Se for atrapalhar o inventário do meu pai, sou contra a mudança." Dona Orlanda, a viúva, tem 80 anos e compartilha a opinião. Bem-disposta, é ela quem dirige o bar: "Esse Fleury já fez, já aconteceu. Deixa ele pagar onde estiver."
Por enquanto, entre os proprietários, o vereador Navarro só conta efetivamente com o aposentado João Graciolli, de 69 anos. "Mesmo que dê despesa com a papelada, temos que tirar o nome do torturador", ele acha. Nos fundos de seu terreno, Graciolli construiu duas casinhas de um cômodo e banheiro, e as aluga para estudantes por 250 reais ao mês.
Um dos inquilinos é Julio Cesar Bastoni. Aos 21 anos, alto e barbudo, matriculado no curso de letras da UFSCar, confessa que não sabia quem batizava a rua quando foi morar lá, em 2004. Descobriu no ano seguinte, ao editar um livro sobre a ditadura militar. "Eu fiquei louco", conta. "Esse Fleury foi um canalha." Bastoni diz que lutará ao lado de Navarro pela derrubada do nome. Além de exibir clássicos da literatura - as obras completas de Émile Zola e Aluísio de Azevedo -, a biblioteca de Bastoni está repleta de livros de Marx, Engels e Lênin. A quitinete em que mora, pequena e desarrumada, lembra um aparelho das antigas, como aqueles que o delegado Fleury adorava invadir.
Com duas quadras de asfalto gasto, a rua tem pouco mais de 200 metros. O delegado, que também criou o esquadrão da morte paulistano, nos anos 60, está em duas placas. Deve-se o tributo ao prefeito Antônio Massei, que ocupou o cargo por três vezes e baixou o decreto-lei em maio de 1980, um ano depois de Fleury morrer afogado em Ilhabela, no litoral norte paulista.
Com numeração irregular, a rua Fleury tem quinze imóveis térreos, três dos quais estão fechados, um deles com uma placa de aluguel. Soma pouco mais de vinte moradores, incluídos os universitários que alugam quitinetes em duas repúblicas. Pela lei do município, só a Câmara Municipal pode mudar o seu nome. Para tanto, é obrigatório que 75% dos moradores concordem com a troca.
Lineu Navarro, um ex-trotskista de 50 anos que militou na corrente estudantil Libelu e é formado em história, está no terceiro mandato como vereador do PT. Ele só atentou para o nome da rua no início do ano, quando o professor e escritor Deonísio da Silva publicou na internet um protesto. Navarro promete apresentar em breve um projeto de mudança. "Não será tão fácil quanto parece", avalia. Em março, entregou uma carta, de porta em porta, com o seguinte texto: "O delegado Fleury foi um dos mais cruéis torturadores que atuaram em São Paulo durante a ditadura militar. Comandava o temido Dops e participava pessoalmente das bárbaras sessões de tortura a presos políticos. Hoje não faz sentido homenagear um torturador que simbolizou um período sombrio da história."
Em São Carlos, também é nome de rua uma vítima direta do delegado Fleury: o comunista Carlos Marighella, um dos líderes da esquerda terrorista, assassinado em 1969, em São Paulo, numa operação comandada pelo delegado. É uma rua de terra malcuidada, na periferia, que nem placa tem.
O aposentado David Ribeiro da Silva, de 57 anos, é dono da casa de número 49 da Fleury, uma ampla construção térrea de cor rosa-flamingo, com vaga para dois carros na garagem. Mora ali há 25 anos. Num sábado à tarde, de bermuda e camiseta na porta de casa, ele disse: "O nome da rua nunca me incomodou. Mudar agora vai causar transtorno, vai ter que alterar o registro do cartório, a correspondência, o cartão de crédito." Ele define Fleury como "um cara aproveitador do sistema, que foi do esquadrão da morte e fazia o que bem entendia". Silva toparia a mudança do nome se fosse "para homenagear alguém de São Carlos". E quem poderia substituir o torturador nas placas? "O meu pai, Osvaldo Ribeiro da Silva, que pintou o forro da igreja matriz e fundou a banda da cidade", respondeu ele.
No número 20, uma casa de fachada verde, vive há mais de três décadas Josefina Casarini Godoy. Ela está com 59 anos e mora com a filha. Achava que o nome da rua era homenagem a algum parente do ex-governador de São Paulo Luiz Antônio Fleury Filho. Soube que era o outro pela carta distribuída por Navarro. "Essa discussão é uma bobeira, uma perda de tempo", afirma. Quando lhe perguntam se é contra ou a favor da mudança, contenta-se em responder: "Para mim, tanto faz."
Numa das esquinas, o amarelo berrante das paredes chama a atenção para o bar e mercearia São João, vulgo "Primeiro Gole", estabelecimento plantado ali há trinta anos. O filho da proprietária, Luiz Roberto Ferreira, lê, atento, um Dicionário Bíblico Universal. "Ouvi falar que esse Fleury era um ditador, mas não conheço", diz. "Se for atrapalhar o inventário do meu pai, sou contra a mudança." Dona Orlanda, a viúva, tem 80 anos e compartilha a opinião. Bem-disposta, é ela quem dirige o bar: "Esse Fleury já fez, já aconteceu. Deixa ele pagar onde estiver."
Por enquanto, entre os proprietários, o vereador Navarro só conta efetivamente com o aposentado João Graciolli, de 69 anos. "Mesmo que dê despesa com a papelada, temos que tirar o nome do torturador", ele acha. Nos fundos de seu terreno, Graciolli construiu duas casinhas de um cômodo e banheiro, e as aluga para estudantes por 250 reais ao mês.
Um dos inquilinos é Julio Cesar Bastoni. Aos 21 anos, alto e barbudo, matriculado no curso de letras da UFSCar, confessa que não sabia quem batizava a rua quando foi morar lá, em 2004. Descobriu no ano seguinte, ao editar um livro sobre a ditadura militar. "Eu fiquei louco", conta. "Esse Fleury foi um canalha." Bastoni diz que lutará ao lado de Navarro pela derrubada do nome. Além de exibir clássicos da literatura - as obras completas de Émile Zola e Aluísio de Azevedo -, a biblioteca de Bastoni está repleta de livros de Marx, Engels e Lênin. A quitinete em que mora, pequena e desarrumada, lembra um aparelho das antigas, como aqueles que o delegado Fleury adorava invadir.
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