da Ilhota à Arena, de Tesourinha à Patrícia Moreira
FUTEBOL A CORES, UMA HISTÓRIA DE RACISMO NO RIO GRANDE DO SUL
FUTEBOL A CORES, UMA HISTÓRIA DE RACISMO NO RIO GRANDE DO SUL
Não é só entre o azul e o vermelho que estão divididos os 114 anos do futebol gaúcho
É preciso cuidado para folhear as edições do jornal Correio do Povo de março de 1952. Qualquer movimento afoito e suas mãos terão rasgado as páginas desbotadas que carregam parte fundamental da memória do futebol do Rio Grande do Sul.
É no dia 7 daquele mês que o Grêmio anunciava a curiosa criação de seu departamento de Colombofilia. O precursor do futebol na capital gaúcha agora difundia “o esporte columbófilo, ou seja, a criação de pombos-correios, seus aprimoramentos e seleção da raça, de forma a elevar bem alto o conceito do Grêmio neste novo ramo de esportes”.
Agora falando sério: não era a aposta na competição de pombos a mais inesquecível iniciativa do Grêmio ao final do verão de 52. Um dia antes, o mesmo jornal estampara anúncio muito mais relevante. A nota assinada pelo então presidente do clube Saturnino Vanzelotti impressionava sob uma epopeica chamada “Ao mundo esportivo do Rio Grande e à família tricolor”:
Com uma canetada do presidente, o Grêmio liberava a participação de atletas de côr, impedidos de serem gremistas desde o começo dos dias, em 1903. A nota do jornal, em vez de revelar apenas uma atitude corajosa de Vanzelotti, escancarava o atraso, o racismo velado, o racismo devassado e os reais motivos que levaram o Grêmio a aceitar negros em seu elenco.
Segue a nota (grifos do repórter):
“Sob o ponto de vista legal, se havia procedimento irregular, este era o de estabelecer a diferenciação em apreço, contrariando o princípio básico da própria democracia — o da igualdade de todos. O uso que se formou, a tradição que se consolidou, mais por uma questão de sentimentalismo e de homenagens aos próprios fundadores e aos primeiros dirigentes do Grêmio, embora merecedores de todo o nosso respeito, não podem mais prevalecer na época atual, onde um profissionalismo absoluto está sempre a exigir as mais decidas medidas para a garantia da sobrevivência das agremiações.
As épocas mudaram e daquele amadorismo sadio de então nos transportamos, como sinal dos tempos, para a realidade de hoje, muito mais diversa e arrebatadora, onde todas as energias são convocadas para as permanentes porfias, que constituem situação normal em todos os setores de atividades.
Assim também no futebol. Não há possibilidade de restrições, de peias e embaraços. A agremiação esportiva vive pela pujança de sua representação, pela união de seus associados, pelo entusiasmo de seus torcedores. A agremiação esportiva vive em função de seus feitos, projetando mais ou menos o seu prestígio, na razão direta das vitórias que obtém e dos galardões que conquista.
Seguimos o exemplo das mais gloriosas e tradicionais agremiações do Brasil e do continente. Estamos prestando mais um serviço ao nosso Grêmio porque, como sempre, procuramos torná-lo mais pujante, mais glorioso, mais respeitado e mais “vezes campeão”. (…)
Eis a explicação que a diretoria do Grêmio sente-se no dever de prestar ao mundo esportivo em geral e a seus simpatizantes em particular, com a certeza que a imensa família tricolor bem compreenderá as razões que ditaram a nossa iniciativa, permanecendo unida, coesa e forte para maior glória de nosso estremecido Clube”.
Porto Alegre, 5 de março de 1952
Saturnino Vanzelotti — presidente”.
Saturnino Vanzelotti — presidente”.
Vanzelotti sabia que a medida não seria acatada com coesão no âmago de alguns torcedores gremistas, sócios e membros do conselho. Dois dias depois, não se sabe exatamente quem — embora se possa imaginar — nem exatamente quantos publicaram um novo manifesto. O confuso texto assinado por “ex-associados e simpatizantes descontentes” expunha o racismo e a oposição aos jogadores de côr.
A proibição a jogadores negros é descrita na carta como “uma tradição nascida com o próprio clube”. E segue:
“A atitude da direção do clube da baixada, de tão controvertidas opiniões, veio dar, incontestavelmente, NOVOS RUMOS A VIDA DA GLORIOSA AGREMIAÇÃO. (…)”
A peça transcreve o inciso 1° do artigo 91 do Estatuto, que reza o seguinte: “Compete ao Conselho Delibertativo resolver sobre matéria que entenda diretamente com a existência do Grêmio”.
A ousadia do gabinete de Vanzelotti estava sendo contra-atacada: “São atitudes arbitrárias como essa que geram a discórdia numa agremiação, que a tornam menos pujante, menos gloriosa, menos respeitada e menos vezes campeã”. (‘ex-associados e simpatizantes descontentes’ em nota ao Correio do Povo em 8 de março de 1952).
O caso exposto acima é, provavelmente, o mais bem documentado de uma luta racial que, desde os tempos fundatórios, marcam e mancham a história do futebol no Rio Grande do Sul. Não é por acaso que ele tenha ocorrido no Grêmio de Patrícia Moreira (a torcedora que xingou Aranha de macaco), mas também não é justo entregar ao clube de Eurico Lara e Renato Portaluppi toda a pecha de exclusão, desamor e desrespeito aos negros naquele que se tornou o mais universal — e gaúcho —de todos os esportes.
NASCE O FUTEBOL NA
ALEMANHA DAS AMÉRICAS
ALEMANHA DAS AMÉRICAS
Talvez cause surpresa para alguns investigar os dados do censo de 1872. Nele, os alemães aparecem como o terceiro grupo de estrangeiros mais numeroso do Brasil, atrás somente de portugueses e “africanos” (tomados assim indistintamente). Segundo o documento, havia 40.072 alemães no país. O Rio Grande do Sul, certamente, já era o estado que mais contribuía para esses números.
Foi em 1824 que a primeira leva da imigração germânica desembarcou no RS, na região do Vale dos Sinos, sobretudo em São Leopoldo, a 30km de Porto Alegre. Nas primeiras décadas, alimentavam os corpos da agricultura de subsistência e sua alma da fé luterana.
Pulamos para a virada do século XX. Alemães e seus descendentes já estão espalhados por muitos cantos do estado, em Santa Maria, Santa Cruz do Sul, São Lourenço do Sul, Rio Grande e, também, Porto Alegre. Afinal, não se ativeram à terra. Aliás, agora lideravam ramos fundamentais no processo de industrialização do estado, como o calçadista e o de bebidas. Instalaram parques gráficos e desenvolveram-se na construção civil.
Em 1900, cerca de 35 mil alemães já viviam no Rio Grande do Sul. Um deles pode ser considerado o Charles Miller do futebol gaúcho. O comerciante hamburguês Johannes Minnemann chegou a Rio Grande — cidade portuária a 317 km ao sul de Porto Alegre — para trabalhar na empresa Thomsen, que pretendia se desenvolver às margens da Lagoa dos Patos.
Em 19 de julho de 1900, Minnemann comemorava seus 25 anos de idade e recebia a elite riograndina para sua festa, no Clube Germânia. Algo muito mais importante estava por acontecer.
“No auge das festividades, quando todos brindavam o aniversariante, este aproveitou o momento de alegria para proclamar, conforme havia sido previamente combinado, o nascimento do Sport Club Rio Grande. Foi lido um pequeno discurso em alemão, idioma oficial do novo clube. A primeira entidade futebolística do Rio Grande do Sul estava fundada”. (do site do SC Rio Grande)
Embora se valendo do entusiasmo de sportsmen de outras ascendências, como Arthur Lawson, filho de inglês, a ata de fundação também fora escrita em alemão, nacionalidade do primeiro presidente do clube, Rudolf Dieticker. Os fatos deixavam clara a proeminência germânica na vida social e esportiva da cidade.
De trem, o SC Rio Grande percorreu o Rio Grande do Sul para promover a grande novidade. Em 1901, se apresentou na cercana Pelotas. Em 1903, chegou à capital. Foi no feriado de 7 de setembro, no terreno do velódromo onde hoje é o Parque Farroupilha, que se assistiu à primeira partida de futebol em Porto Alegre. Na falta de adversário, o choque ocorreu entre os quadros A e B do SC Rio Grande.
Conta o folclore que, durante a partida, a bola furou. Um paulista de Sorocaba que estava na plateia ofereceu a sua pelota (artigo raro à época) em empréstimo — não antes sem uma condição. Cândido Dias da Silva, que já praticava com sua bola em parques da cidade, queria em troca as orientações para fundar um clube de futebol.
Apenas 8 dias depois, em 15 de setembro de 1903, surgiram os dois primeiros clubes de futebol de Porto Alegre. Cândido foi um dos 31 rapazes que assinaram a ata de fundação do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense. Em 25 dos sobrenomes dos outros 30 subscreventes daquele histórico documento, fica evidente a origem germância do clube. São nomes como Bohrer, Siebel, Kallfelz, Schuck e Uhrig.
A primeira rivalidade do Grêmio surgiria com o outro clube nascido daquela profícua terça-feira: o Fussball Club Porto Alegre. Todos os fundadores do Fussball eram ciclistas da Rodforvier Verein Blitz, equipe — nem era preciso dizer — formada por teuto-brasileiros.
De 1904 a 1912, Fusball e Grêmio disputaram o primeiro torneio de futebol da Capital, o Wanderpreis — em bom alemão, Troféu Móvel. Em vez dos ingleses, como de resto no país, eram os alemães que davam as cartas no futebol de Porto Alegre. Não era por acaso.
Ainda antes de serem os próceres do futebol gaúcho, os germânicos foram os fundadores do associativismo esportivo no Rio Grande do Sul. Em seus clubes de ginástica, tiro, remo, natação, esgrima, bolão e ciclismo, reforçavam sua identidade cultural, marcadamente distinta daquela demonstrada pelos lusos-brasileiros. É comum encontrar notas de jornais do final do século XIX e do início do século XX convocando os porto-alegrenses a apreciar as práticas esportivas germânicas.
Exibir-se para ser visto parecia uma das preocupações que os teuto-brasileiros possuíam: mostrar que eram diferentes. A partir das tradições recriadas, em uma pátria diferente, surge, de fato, o confronto simbólico entre identidades culturais. (Carolina Silva, Ester Pereira e Janice Mazo em Clubes sociais: Práticas Esportivas e Identidades Culturais)
Se o DNA germânico marcava o futebol do Rio Grande do Sul nos primeiros anos do século XX, em distintas partes do país, os donos da bola eram outros grupos de europeus — ou de descendentes — especialmente os ingleses.
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— O Brasil da República Velha tem um projeto muito claro de vencer o atraso histórico colonial. Não quer ser mais um país com uma herança lusitana. Ele quer ser um país mais “europeu” do que lusitano. Assim, o futebol chega com um pedigree muito grande. Praticar o futebol, sobretudo para uma elite formada, era estar em dia para ser cosmopolita, era estar em dia para ser mais moderno com o mundo europeu daquela época. (Gilmar Mascarenhas de Jesus, geógrafo)
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Trocando as palavras: a intenção de trazer o futebol da europa para o Brasil — e para Porto Alegre — não era a de abrasileirar o futebol. Era, sim, de europeizar o Brasil das elites. O negro, assim, está completamente fora deste projeto.
SURGE O INTERNACIONAL; O NEGRO SEGUE FORA
A década de 1900 registra o maior boom populacional da história de Porto Alegre, fruto, em especial, da chegada de comerciantes. Três deles foram os irmãos Poppe, praticantes do futebol em seu estado natal, São Paulo, que já ardia em febre pela bola. Entre os documentos, não há nada que prove e, entre os historiadores, não há consenso em afirmar que Henrique, José Eduardo e Luiz Madeira foram de fato barrados no Grêmio. O mais provável é que sim, já que se sabe que, mesmo antes do primeiro Gre-Nal em 1909, os fundadores do Inter tinham como questão de honra rivalizar com o Grêmio.
Na versão que explica o nome escolhido pelos irmãos Poppe e seus amigos para fundar o novo clube, outro indicativo de que o Inter nasceu para ser a antítese do Grêmio. Em vez de um clube étnico, o Inter de Porto Alegre seria a versão gaúcha do Sport Club Internacional de São Paulo, campeão paulista de 1907, clube que tinha como maior orgulho ser cosmopolita, fundado por sportsmen de várias etnias.
Nem em São Paulo, nem em Porto Alegre o caráter multiétnico do Internacional significava, no entanto, a abertura para os descendentes de africanos — mesmo que não houvesse essa obstrução formal. E é assim, sem a presença de jogadores negros, que o futebol gaúcho vai crescer e se desenvolver nas duas primeiras décadas do século XX. Neste mesmo período, enquanto Inter e Grêmio semeavam aquela que viria a ser maior rivalidade do Brasil, a mesma Porto Alegre vivia um outro acirramento, muito mais perigoso, de cunho racial.
ESCRAVIDÃO
Muitos brasileiros não imaginam, mas o Rio Grande do Sul foi uma das regiões brasileiras que mais receberam escravos. Voltamos ao censo de 1872. Ele aponta o RS como o 7° estado — entre os 21 de então — com maior população escrava no Brasil (67 mil). No período pós-abolição, boa parte de sua descendência procurou Porto Alegre para trabalhar e viver. Na capital gaúcha, permaneceriam confinados, habitando quatro grandes territórios negros segregados, que, juntos, formavam uma espécie de cinturão em torno do centro da cidade.
A Colônia Africana era o maior deles. Localizada entre os morros da Independência e do Mont Serrat — onde hoje estão os bairros do Rio Branco e do Bom Fim — frequentemente era referida pela imprensa conservadora da época como antro de vagabundos, ociosos e viciosos.
Roubos, assassinatos, estupros, facadas, tudo se dá naquele lugar maldito, valhacouto de quanto bandido há por esta cidade, refúgio de quanta baixa meretriz por aí vive. (Gazeta da Tarde. Porto Alegre, 10/07/1895)
Os territórios da Cidade Baixa e da Areal da Baronesa ocupavam o largo espaço entre o centro e o 2° distrito, região do emergente bairro do Meninos Deus. Junto a eles estava a Ilhota, parte de terra recortada por uma sinuosa curva do tempo em que havia curvas no riacho, que viria a ser o Arroio Dilúvio. Foi na Ilhota que nasceu, em 1914, o cantor e compositor Lupicínio Rodrigues.
O Plano Geral de Melhoramentos de Porto Alegre, elaborado pelo engenheiro-arquiteto João Moreira Maciel também em 1914, norteou à modernização da cidade sob três conceitos básicos: circulação, higienização e embelezamento. O plano só foi colocado em ação 10 anos depois e, como você já pode esperar, não respeitou os territórios negros. Aos poucos, a Colônia Africana tornou-se o bairro dos judeus. A Ilhota foi destruída para a horrorosa canalização do fétido Arroio Dilúvio. Antes de deixarem seus espaços conflagrados, no entanto, os negros de Porto Alegre conheceram, se apaixonaram e, sim, praticaram o futebol!
A LIGA DAS CANELAS PRETAS
E O NEGRO BOM DE BOLA
A LIGA DAS CANELAS PRETAS
E O NEGRO BOM DE BOLA
A maior liga de clubes negros da história do país foi disputada em Porto Alegre e deixou muito poucos registros na literatura e na imprensa. O geógrafo Gilmar Mascarenhas de Jesus, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, foi um dos que se aventuraram a estudá-la. Em seu trabalho chamado Esporte e Mito da Democracia Racial no Brasil: Memórias de um Apartheid no Futebol, Mascarenhas situa o início desta liga por volta do ano de 1912. Foi o quando o Internacional abandonou o seu primeiro campo, que ficava justamente na Ilhota. Os numerosos negros que habitavam a região se adonaram do espaço e — é bem possível — começaram ali a desenvolver o futebol.
A formalização de uma liga ocorrera, provavelmente, no final da década de 1910. Entre os clubes conhecidos, estão Primavera, Bento Gonçalves (famoso clube que excursionou com êxito pelo interior do estado em 1923), União, Palmeiras, Primeiro de Novembro, Rio-Grandense, 8 de Setembro, Aquidabã e Venezianos. O pai de Lupicínio Rodrigues, Francisco Rodrigues, era um dos dirigentes do Rio-Grandense, clube que teria gerado polêmica no interior da liga por definir-se como “mulato”: somente mulatos e mulatas poderiam torcer pelo clube. O auge da liga foi a década de 20.
Baseado em depoimentos do ex-jogador e treinador Osvaldo Rola, o “Foguinho”, [Rafael] Guimaraens aponta a existência de três importantes ligas no futebol porto-alegrense em torno de 1920: a principal, vulgarmente denominada Liga do Sabonete, composta por elementos da elite (a “nata do futebol da cidade”), que entravam em campo impecavelmente trajados; a liga intermediária, ou Liga do Sabão, composta por elementos da “classe média baixa”: pequenos comerciários e clubes de etnias minoritárias como o Concórdia, de poloneses; por fim, a liga das Canelas Pretas, disputada “somente por times de jogadores negros que não eram aceitos pelas outras equipes”. (Gilmar Mascarenhas de Jesus, geógrafo, em Esporte e Mito da Democracia Racial no Brasil: Memórias de um Apartheid no Futebol)
‘Liga das Canelas Pretas’ era o nome pejorativo que a imprensa da época deu para o certame. Liga Nacional de Football Portoalegrense era o nome oficial do campeonato. Ainda não se sabe explicar com segurança a escolha pela palavra nacional para desígnio, mas Mascarenhas faz uma ilação interessante: “[o adjetivo nacional] pode estar sugerindo a condição nativa, “da terra”, quiçá criticando a larga presença na liga “branca” de não-brasileiros: argentinos e uruguaios, por um lado; alemães, italianos e até poloneses, e seus descendentes, por outro. Estes últimos seriam brasileiros, porém menos “brasileiros” que aqueles negros com algumas gerações nascidas em nosso território.
Outra referência importante sobre a Liga das Canelas Pretas está num texto do próprio Lupicínio Rodrigues, publicado em 1963 no Jornal A Última Hora. Nele, o compositor confirma uma distinção entre times de negros e time de mulatos. Também é confirmada a história, já relatada anteriormente, de que o Inter também se opôs a entrada de jogadores de cor nas principais ligas da cidade. Porém, algumas passagens descritas pelo músico não batem com os fatos. Em 1907, por exemplo, ainda não existia o Inter. O Grêmio também nunca se chamou Fussball.
POR QUE SOU GREMISTA
Domingo, estive em um churrasco, da Sociedade Satélite Prontidão, onde se reúne a “Gema” dos mulatos de Pôrto Alegre. Lá houve tudo de bom, bom churrasco, boa música e boa palestra. Mas, como sempre, nestas festas nunca falta uma discussão quando a cerveja sobe, lá também houve uma, e, esta foi a seguinte. Uma turma de amigos quis saber porque, sendo eu um homem do povo e de origem humilde, era um torcedor tão fanático do Grêmio. Por sorte, lá estava também o senhor Orlando Ferreira da Silva, velho funcionário da Biblioteca Pública, que me ajudou a explicar, o que meu pai já havia me contado.Em 1907, uma turma de mulatinhos, que naquela época já sonhava com a evolução das pessoas de côr, resolveu formar um time de futebol. Entre estes mulatinhos estava o senhor Júlio Silveira, pai do nosso querido Antoninho Onofre da Silveira, o senhor Francisco Rodrigues, meu querido pai, o senhor Otacílio Conceição, pai do nosso amigo Marceli Conceição, o senhor Orlando Ferreira da Silva, o senhor José Gomes e outros. O time foi formado. Deram-lhe o nome de “RIO-GRANDENSE” e ficou sob a presidência do saudoso Julio Silveira. Foram grandes os trabalhos para escolher as côres, o fardamento, fazer estatutos e tudo que fôsse necessário para um Clube se legalizar, pois os mulatinhos sonhavam em participar da Liga, que era, naquele tempo, formada pelo Fuss-Ball, que é o Grêmio de hoje, o Ruy Barbosa, o Internacional e outros. Êste sonho durou anos, mas no dia em que o “RIO-GRANDENSE” pediu inscrição na Liga, não foi aceito porque justamente o Internacional, que havia sido criado pelo “Zé Povo”, votou contra, e o “RIO-GRANDENSE” não foi aceito. Isso magoou profundamente os mulatinhos, que resolveram torcer contra o Internacional e, sendo o Grêmio seu maior rival, foi escolhido para tal. Fundou-se, por isso, uma nova Liga, que mais tarde foi chamada de “Canela Preta”, e quando êstes moços casaram, procuraram desviar os seus filhos do clube que hoje é chamado o “CLUBE DO POVO”, apesar de não ser êle o primeiro a modificar seus estatutos, para aceitar pessoas de côr, pois esta iniciativa coube ao “ESPORTE CLUBE AMERICANO”, e vou explicar como: A Liga dos “Canelas Pretas” durou muitos anos, até quando o “ESPORTE CLUBE RUY BARBOSA”, precisando de dinheiro, desafiou os pretinhos para uma partida amistosa, que foi vencida pelos desafiados, ou seja os pretinhos. O segundo adversário dos moços de côr foi o Grêmio, que jogou com o título de “Escrete Branco”. Isso despertou a atenção dos outros clubes que viram nos “Canelas Pretas” um grande celeiro de jogadores e trataram de mudar seus estatutos, para aceitarem os mesmos em suas fileiras, conseguindo levar assim, os melhores jogadores, e a Liga teve que terminar. O Grêmio foi o último time a aceitar a raça porque em seus estatutos, constava uma cláusula que dizia que êle perderia seu campo, doado por uns alemães, caso aceitasse pessoas de côr em seus quadros. Felizmente, essa cláusula já foi abolida, e hoje tenho a honra de ser sócio honorário do Grêmio e ter composto seu hino que publico ao pé desta coluna. (Lupicínio Rodrigues, cantor e compositor, jornal A Última Hora, 6/4.63)
Se não podemos exigir, nem garantir o rigor histórico do texto de Lupicínio, é certo que ele traz à tona outra questão fundamental para entender o desenvolvimento do futebol negro no Rio Grande do Sul. No fim dos anos 20, começo dos 30, o profissionalismo vai remexer com todo o contexto do esporte (teuto) bretão no estado. Para muito além de praticar o esporte, agora era fundamental a vitória, sobretudo com a crescente rivalidade Gre-Nal. Em 30, com uma década formidável dos clubes de Pelotas, Rio Grande, Bagé e Santana do Livramento — que já desfrutavam de alguns jogadores negros em campo — , os craques do interior passam a ser cobiçados pelos clubes da capital. Era preciso, então, botar a mão no bolso para formar bons times.
Mas por que ir tão longe para qualificar seu elenco? Se a competitividade da Liga das Canelas Pretas, aliada a notória destreza dos negros para o futebol, já forçava ótimos jogadores nos arrabaldes pobres da capital, por que não pagar (pouco) para esses e assistir a seu time campeão?
Foi, sem dúvida, esse motivo, acima de qualquer outro, que levou o Internacional, gradualmente, a aceitar negros em seus quadros a partir da segunda metade da década de 20. Somada ao ganho desportivo, a aceitação era uma tremenda jogada de marketing. Já instalado no Estádio dos Eucaliptos, no 2° distrito, no bairro do Menino Deus, nas proximidades das comunidades negras da cidade, o Inter poderia então, sem constrangimento, se autoproclamar o “Clube do Povo” e ver sua torcida crescer exponencialmente, entusiasticamente, enquanto o Grêmio manteria intacto o status do clube fechado da elite do bairro Moinhos de Vento, o mais prestigiado da Capital. Assim, a questão racial/social colaborava para impor ainda uma questão de territorialidade na rivalidade porto-alegrense — fato comum no futebol de Buenos Aires, por exemplo, mas bastante raro no Brasil.
— A questão (de rivalidade) mais importante é a de classe social. Só que, no Brasil, essa questão de classe e de raça andam muito amarradas. Não se falava que o Inter era um clube de classe trabalhadora; era um “Clube Popular”. A ideia de ‘popular’ é uma ideia de ‘ser de todos’. Ele é também de negros, de pobres, de todo mundo. E o Grêmio um time mais elitizado. (Arlei Damo, antropólogo)
PELOTAS VIVE SITUAÇÃO IDÊNTICA
Se na Porto Alegre das décadas 30 e 40, o Menino Deus popular e o Moinhos de Vento elitizado rivalizavam a disputa pelo protagonismo do esporte, em Pelotas, situação idêntica era vivida pelos Negrinhos da Estação versus os Fidalgos da Avenida. Como o Inter, o Brasil de Pelotas, que estava na região mais pobre da cidade, perto da Estação Férrea, passou a aceitar a entrada massiva dos negros na década de 30. Como o Grêmio, o Esporte Clube Pelotas, não teve a mesma aceitação. Com seu estádio na avenida mais importante da cidade e tendo como adeptos os principais aristocratas do sul do Estado, o Pelotas se identificou como o time da elite: Negrinhos da Estação versus os Fidalgos da Avenida.
A troca do epíteto ‘Negrinhos da Baixada’ para ‘Xavante’ seguiu a trilha pejorativa. Em 1946, impressionados com a reação da torcida do Brasil após uma virada sensacional no clássico local, a torcida do Pelotas compara os rivais aos bárbaros do cinema, aos índios xavantes, que estão em cartaz em algum filme western da cidade. Em vez do time da ‘Negrada’, o Brasil vira o time dos ‘Xavantes’.
Em 2014, mesmo a 70 anos desta história, a torcida do Lobo, o EC Pelotas, lembra, em seus cânticos, a origem negra de seu rival.
“VAMOS, VAMOS, LOBO,
EU TE SIGO, EU TE QUERO,
XAVANTE MACUMBEIRO,
SÓ CANTA EM ESCANTEIO”
EU TE SIGO, EU TE QUERO,
XAVANTE MACUMBEIRO,
SÓ CANTA EM ESCANTEIO”
Voltando à Capital.
ROLO ‘NEGRO’ COMPRESSOR PRESSIONA O GRÊMIO: OU SE ABRE OU MORRE
ROLO ‘NEGRO’ COMPRESSOR PRESSIONA O GRÊMIO: OU SE ABRE OU MORRE
Logo nos primeiros anos da década de 40, acolhido nos Eucaliptos e possuído pela sua energia renovadora, o Internacional constrói a supremacia mais paradigmática da história do futebol gaúcho. De 1940 a 1948, vence 8 dos 9 campeonatos gaúchos repleto de negros em campo. Mais do que isso, deixa o estado boquiaberto ao apresentar um futebol ofensivo, alegre.
Se fosse necessário ficar apenas em um exemplo, esse seria o de Tesourinha. Luis Fernando Veríssimo, octuagenário torcedor colorado, garante que foi o melhor jogador que o clube já teve.
Osmar Fortes Barcellos nasceu em uma família colorada, em 1921, no coração da cultura negra porto-alegrense. Cresceu na Ilhota e no Areal da Baronesa. Bonifácio, seu pai, era motorista e incentivador do futebol varzeano, da Liga das Canelas Pretas e também do carnaval, tão importante para a cultura negra porto-alegrense quanto o futebol de várzea — até hoje, aliás.
Após a precoce morte do pai Bonifácio, sua mãe Ernestina casa-se novamente, desta vez com um sujeito de nome Fausto, sócio-fundador do bloco “Os Tesouras”, do qual também participam Osmar e seu irmão mais velho Ademar, ambos promissores jogadores de futebol. Assim, dentro de campo, Ademar passa a ser conhecido como Tesoura, enquanto Osmar, mais franzino, como Tesourinha. De tuberculose, Ademar morre ainda muito jovem. Certa vez, Tesourinha garantiu que era o irmão o maior craque da família. De qualquer maneira, agora terá que jogar pelos dois.
Em 1933, ainda com 12 anos, Tesourinha vive outra tragédia familiar. Seu padrasto Fausto morre e a situação financeira da casa se deteriora. Para ajudar em casa, ainda adolescente, Tesourinha consegue emprego nas oficinas da Brigada Militar, trabalhando como artíficie armeiro. Sua outra fonte de renda é o futebol de várzea, da onde começa a arrancar alguns trocados para golear os adversários.
Em 1939, os juvenis do Inter enfrentam o Ferroviário de Tesourinha, justamente no Estádio dos Eucaliptos. Aos 18 anos, o atacante se destaca e é chamado pelo seu time do coração. Além de um considerável soldo mensal, no Inter e na Brigada, passa a receber do clube um quilo de carne e dois litros de leite por dia para ficar mais forte. Em 1940, já era uma das lideranças técnicas do Inter, que vence o gauchão e inicia uma marcante senda de vitórias.
Tesourinha não era o único negro a brilhar no timaço, que logo vai ganhar o inesquecível apelido de Rolo Compressor. Os zagueiros Abigail, Nena e o atacante Adãozinho, chamado pela imprensa de “Negrinho do Pastoreio”, serão outras figuras negras a se tornarem famosas em Porto Alegre — um tremendo avanço racial.
Através das iniciativas entusiasmadas do carismático torcedor Vicente Rao — brilharia como Rei Momo da cidade anos depois —o Internacional transforma o torcer pelo futebol em uma carnavalesca festa popular de Porto Alegre. O ‘Clube do Povo’ passa a receber o seu time com fogos, bandeiras e marchinhas!
É possível que nesse período — quando já eram comuns estádios lotados e ingressos pagos — os torcedores do Inter mais pobres procurassem as árvores do entorno do Estádio dos Eucaliptos para assistir a uma nesga do jogo que fosse. Torcedores gremistas hoje defendem, em argumentação antirracista, que é daí que se surge o apelido ‘macaco’ para agredir a torcida colorada. Seja verdade ou não, ainda vale questionar se o apelido seria o mesmo, caso, em vez de negros e pobres, fossem torcedores ricos, bem vestidos e, claro, brancos a subir em árvores.
Em 1946, no mesmo ano em que aristocrático mascote do Mosqueteiro é adotado pelo Grêmio, o Dr. Aurélio Py (que fora presidente do Grêmio por nove vezes entre 1912 a 1930, primeiro presidente da Federação Gaúcha de Desportes (atual FGF) a partir de 1919, presidente do Conselho Delibertativo do Grêmio de 1937 a 1946, além de diretor da faculdade de Medicina da UFRGS, reitor da UFRGS e também deputado estadual pelo Partido Republicano Rio-Grandense por três legisturas) torna-se patrono do Grêmio e, em discurso de posse, professa o ‘Credo do Bom Gremista’.
O Credo do Bom Gremista, também ficou conhecido com Oração do Dr. Py, era uma profissão de fé tipicamente positivista e continha, entre os dezesseis pontos, a seguinte sentença: “CREIO no Grêmio porque, trabalhando pelo aprimoramento da raça, colabora na formação de uma raça eugênica para o nosso futuro”, seguida por “CREIO no Grêmio porque a tradição mantém a família gremista unida, forte e entusiasta”. (trecho do trabalho do historiador Antônio João Prestes, citando o livro Futebol e Identidade Social, de Arlei Damo)
Dois movimentos contrários — um de aceitação e outro de negação dos negros — vão marcar de vez a imagem dos clubes de Porto Alegre.
—Na década de 40, nós vemos dois movimentos antagônicos: o Inter se abrindo e o Grêmio se fechando. O Grêmio vai ao limite, lá no fim dos anos 40, e chega a discutir a possibilidade de abandonar o futebol. Tenho isso de uma entrevista que eu fiz com o Renato Souza (presidente do clube na década de 1960). Havia no Grêmio quem preferisse voltar aos tempos do amadorismo, mantendo os esportes amadores e as atividades sociais, abdicando do futebol. E de fato não havia alternativa: ou o clube se abria ou abandonava o futebol, pois dentro de campo era uma vexame atrás do outro.
… o Grêmio resistiu muito a isso.
Um grupo de dirigentes, que era também uma elite política e econômica local, relutou contra a inclusão de negros no time; eram conservadores ao extremo. Até que surgiu um grupo, do qual o Renato Souza fazia parte, e deram suporte para eleger o presidente Saturnino Vanzelotti, que fez duas coisas radicais e as fez de maneira simultânea. (Arlei Damo, antropólogo)
O TESOURINHA DA ILHOTA AGORA É DESEJADO PELO GRÊMIO DA AZENHA
O Grêmio, perto do seu cinquentenário, aguenta como pode os anos de turbulências. Em 1949, Saturnino Vanzelotti assume como presidente do clube. Apoiando-se em figuras como Salim Nigri e Renato Souza, Vanzelotti muda radicalmente a história desta trama.
Como diz Damo, são dois movimentos simultâneos — e fundamentais.
Vanzelotti abnega-se pela construção de um novo estádio, em troca do Fortim da Baixada, em um terreno comprado sobre a Vila Caiu do Céu, no bairro da Azenha, região vizinha ao Menino Deus do Inter. A vila é removida para o Sarandi, zona norte. E o Grêmio começa a levantar o maior estádio particular do Brasil daquele tempo.
Para Vanzelotti, não adiantava trocar de lado da cidade se não fosse destruída a polêmica tradição nascida com o clube, a de não aceitar jogadores negros — algo já vencido em todos os times importantes do Estado, do país e do continente.
Vale registrar que, durante a década de 40, Leônidas da Silva, o Diamante Negro, já havia inventado a bicicleta e brilhado por Peñarol (URU), Vasco, Flamengo e São Paulo. Na Copa de 50, no Brasil, o craque do time, Zizinho, era negro. Assim como outros três titulares: Juvenal, Bigode e goleiro Barbosa, justamente os três envolvidos no fatídico lance do gol de Gigghia. As duras críticas sobre o trio são encaradas por alguns observadores do futebol, como o jornalista Mário Filho, como um retrocesso do racismo de chuteirnas no Brasil.
A situação deve ter influenciado Vanzelotti, sábio político. Ele concluira que trazer um negro que desapontasse em campo seria um prato cheio para as duras críticas das alas mais conservadores do clube. Para acertar a cartada, precisava contratar um bom jogador, o melhor à disposição.
— [O Grêmio] há muito queria botar um negro no time, mas tinha muita dificuldade. Tu não podia, por exemplo, num time de branco — não tem negro e tem essa turma racista — contratar um Jacaré da vida, um jogador desses aí… se tu bota um negro ruim no Grêmio, pô, aí matam o presidente, o negro, matam todo mundo. Então precisava um cara com nome e o nome era Tesourinha. (Salim Nigri, ex-conselheiro do Grêmio em entrevista a Arlei Damo, em Futebol e Identidade Social)
Em março de 1952, num rompante da diretoria, o Grêmio vai atrás do Tesourinha da Ilhota, agora já consagrado campeão carioca como atacante do Vasco e campeão sul-americano com a Seleção Brasileira. Mesmo brigado com o Inter, que teria desdenhado de sua recontratação, Tesourinha hesitou em aceitar a proposta do Grêmio.
Afinal, negro e torcedor colorado desde menino, temeu ser acusado, inclusive por sua própria consciência, de uma dupla traição, aos negros e aos colorados. Mas queria continuar jogando, e ainda precisava de dinheiro. Foi aconselhar-se com seu amigo e ex-companheiro de Internacional, Abigail:
— Tenho medo de me arrepender Bigual (era assim que chamava Abigail). Os torcedores colorados, que sempre me deram força, não vão me perdoar. O que eu faço? Pego os pila e ajudo eles (os gremistas)?
Abigail o ajudou a decidir-se pelo Grêmio:
—Tesourinha, tu não é mais guri, não está em condições de estar escolhendo time, é profissional, e além disso não podemos negar que o Grêmio, nosso inimigo, é um grande clube.”
Estava dado
o passo histórico.
o passo histórico.
E é aí que essa história encontra o início dessa reportagem.
O presidente Saturnino Vanzelotti muda as regras do jogo, agora aceita negros, explica-se em nota no Correio do Povo e é taxado de autoritário por um grupo conservador de oposição. Pouco importa, a queda de braço estava vencida por Vanzelotti.
Um outro lendário dirigente gremista contava a seus descendentes que alguns sócios queimaram a carteirinha do clube em protesto a Tesourinha. Pelo menos nos primeiros dias, os jornais só registraram a festa, o bom futebol e a distinção que o craque carregava por si só.
CHOVEM ÍDOLOS
NEGROS NO OLÍMPICO
NEGROS NO OLÍMPICO
As década de 50 e 60 registram novos passos firmes em direção à popularização do futebol gaúcho. Em nova cartada precisa de Vanzelotti, o Grêmio, por ocasião do seu cinquentenário, adota, em 1953, a fabulosa marcha de Lupicínio Rodrigues, que conclama torcedores apaixonados a seguir o Grêmio até a pé, onde ele estiver — mesmo que fosse do lado pobre da cidade, no Estádio Olímpico.
Tesourinha não chegou a desapontar a torcida gremista, tampouco virou ídolo. Deixou o clube em 54, ano que marcou, além da inauguração do estádio, a contratação pelo Grêmio do maior zagueiro de sua história, o também negro e também porto-alegrense, Aírton Ferreira da Silva, o Aírton Pavilhão. E é aí que a história do negro no futebol gaúcho dá, outra vez, uma guinada, sempre em direção aos gols, títulos e troféus.
Para conversar sobre esta gloriosa época tricolor, fui até uma pequena sala do Olímpico, onde ainda trabalha o superintendente de futebol do Grêmio, Antônio Carlos Verardi, de 80 anos, braço-direito administrativo de Felipão. Era justamente a tarde que selara, no Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Rio, a eliminação do Grêmio da Copa do Brasil de 2014, por conta dos atos racistas contra o goleiro Aranha.
— Logo após a saída de Tesourinha, eu acompanhei a chegada de jogadores negros incríveis. Eu fui aplaudir, vibrei com as vitórias que o clube teve, na maioria, em função da força deles. É o caso do Aírton Ferreira da Silva, do Ortunho e do grande Juarez Teixeira.
O trio elencado por Verardi é fundamental para o Grêmio, primeiro, equilibrar o futebol no Rio Grande do Sul e, depois, para dominar por completo as terras gaúchas. Nos 13 gauchões entre 1956 e 1968, o Tricolor leva o título em 12 deles! Se os gremistas racistas não queriam os negros, certamente, adoravam seus títulos.
— Então, nessa época, eu não percebi nada disso [de racismo]. Eu nunca tive qualquer preconceito e também nunca percebi nos demais torcedores. E não estou aqui fazendo a defesa da minha instituição. Nunca presenciei a restrição da presença do negro, tanto é que, em 1969 [o ano correto é 1970], o Conselho do Grêmio determinou que fosse colocada uma estrela na bandeira saudando um negro, o Everaldo Marques da Silva [campeão mundial com o Brasil de Pelé no México]. (Antonio Carlos Verardi, Superintendente de Futebol do Grêmio)
Também é na década de 60 que chega à Azenha o maior goleador da história do clube, Alcindo. Nascido em Sapucaia do Sul, de pai negro e mãe bugre, recebe o apelido de Bugre Xucro. Logo nos primeiros segundos de conversa ao telefone com o repórter, ele mesmo completa a frase…
— Seu Alcindo, gostaria de saber sua opinião sobre a questão do racismo, já que o senhor é o maior goleador da história do Grêmio….
— E sou preto!
— É! No seu tempo havia racismo?
— O problema racial sempre houve. Não só aqui no sul. A gente que jogou futebol sabe que, quando o negro está um pouquinho acima, é sempre desrespeitado.
— Mas você conseguia ouvir algo em campo que a gente possa considerar como racismo, na sua opinião?
— Não…. Eles até falavam… Eles nos apupavam…. É que a torcida adversária sempre procura uma maneira de irritar o jogador adversário. Já fui chamado de macaco, de outras coisas, até mais ofensivas do que isso… Isso aí sempre houve. Você já imaginou se toda a vez que nós fôssemos xingados, nós procurássemos o juiz para pedir para parar o jogo?
— Entre essas torcidas adversárias que te chamavam de macaco, estava também — ou principalmente — a torcida colorada?
— Principalmente! É a maneira que eles encontravam de me irritar, de me desconcentrar, mas eu acho normal. Acho a coisa normal.
Abaixo de Alcindo, o segundo e o quarto maiores goleadores da história do Grêmio também são negros. Todos eles receberam, como epíteto, referências a sua cor. Além do Bugre Xucro, há Tarcísio Flecha Negra e ainda Juarez Teixeira, o Gigante de Ébano (madeira forte e escura). André Catimba (na década de 70), Paulo Isidoro (campeão brasileiro em 81) e Roger (campeão da Libertadores de 95) são outros jogadores negros de idolatria gremista.
RACISMO À BRASILEIRA NO CLUBE DO POVO
Se o Grêmio avançara com a presença dos negros em campo, o Inter, nas décadas de 50, 60 e 70 — seja por ação direta da direção ou por trabalho gratuito da imprensa — permanecia no imaginário do público, inclusive do centro do país, como o ‘Clube do Povo’. Prova disso é que, durante os anos 50, a imagem de um menino negro e franzino tornou-se símbolo colorado nos jornais.
O menino logo deu lugar a um Saci- Pererê, que foi adotado como mascote oficial do clube. Entre os grandes clubes do Brasil, o único negro.
Na década de 60, uma nova jogada da direção promove uma estrondosa comoção popular entre os adeptos colorados. Em busca de construir um novo estádio para rivalizar com o moderno Olímpico, a direção colorada lança o projeto de doação de materiais para a construção do Beira-Rio. A campanha dá certo, e o Internacional, com forte apelo popular, o inaugura em abril de 1969.
No novo estádio, um lugar chama a atenção: é a Coreia, o setor mais barato, de péssima mirada para o gramado impecável. A Coreia, assim como a Geral do Maracanã, torna-se o reduto mais negro do estádio.
O freqüentador da coréia é o único torcedor autêntico do futebol. Não é o espetáculo que o atrai. Dali onde ele fica não se vê espetáculo algum. A única visão desimpedida que ele tem é dos fundilhos do bandeirinha., o resto ele advinha. O coreano está ali porque tem que estar. Seu compromisso não é com o jogo, que ele não vê, é com o time. Como não enxerga os detalhes, vive apenas os momentos decisivos do jogo, as grandes explosões. O resto é uma angústia cega, de pescoço esticado. Todas as outras misérias da sua vida lhe são impostas, esta é a única miséria que ele escolhe. Porque – é difícil falar nele sem cair na pior literatura – é a única que lhe dá uma sensação mínima de redenção. O gol, a explosão, o seu instante semanal de triunfo. O resto da sua vida é sempre zero a zero. (Luis Fernando Veríssimo, no livro Internacional, Autobiografia de uma paixão)
O Inter, dos coreanos, acumula diversos craques negros, mas, mantém os cargos diretivos do clube, do Conselho Deliberativo, da comissão técnica , além das cadeiras numeradas, ‘reservados’, mesmo que naturalmente, aos brancos.
—O Inter desenvolveu um racismo tipicamente à brasileira, que é: conviver com os negros, desde que eles se mantenham na senzala, não tem ‘problema’ nenhum. Você tinha negros no estádio, mas você não os encontrava na cadeira cativa, no conselho deliberativo, na diretoria. Mas, na Coreia, sim; lá na parte menos nobre do estádio, não havia problema. Na lógica do racismo à brasileira, que é um racismo inclusivo, aquilo caía muito bem. Não tem nenhuma pesquisa que comprove que exista um pertencimento dos negros gaúchos, em sua maioria, ao Inter. Poderia se fazer a pesquisa no presente, e eu acho que os autodeclarados negros tenderiam a se inclinar mais para o Inter do que ao Grêmio. (Arlei Damo,sociólogo)
O RACISMO ESCANCARADO DOS GREMISTAS, O RACISMO INTROJETADO
DOS COLORADOS
DOS COLORADOS
Na década de 70, a Coligay fez história ao levar a pauta homossexual para dentro do Olímpico. Com graça e alegria, parte da torcida gremista provava que poderia haver espaço para bandeiras progressistas nas arquibancadas.
Porém, na década de 80 e 90, com o acirramento da violência entre as torcidas, o racismo voltou a tomar forma e ganhar força dentro da torcida gremista. O termo “macacada” para se referir ao maior rival ganhou peso no seio das raivosas torcidas organizadas que se estabeleceram. Durante a década de 90, o mais celebrado cântico ofensivo ao Inter — poesia pura — carregava a ofensa com orgulho.
“Macacada filha da puta,
Chupa rola e dá o cu”
Chupa rola e dá o cu”
A torcida do Inter refazia a seu modo, com semelhante beleza.
“Ô, gremista filha da puta,
Chupa rola e dá o cu”
Chupa rola e dá o cu”
E assim caminha a humanidade gaúcha, a passos de formiga e sem vontade rumo ao fim do racismo e da homofobia nos estádios. Foi em 1997 que eu vi e ouvi a torcida colorada abraçar o insulto adversário. Nas arquibancadas do Beira-Rio, em vez do “Ah, eu tô maluco”, da torcida flamenguista, ou o “Ah, eu sou gaúcho” da torcida gremista, os colorados gritavam a plenos pulmões “Ah, eu sou macaco”. Em um fenômeno semelhante ao dos negros americanos, que passaram a também se reconhecer pelo ofensivo termo nigga, os colorados agora se diziam macacos.
Na virada do século, surge, nas sociais do Beira-Rio, um novo torcedor-símbolo do Inter, do qual nunca descobri o nome, vestido com a camisa do Inter, mas também sempre trajado com uma calorenta fantasia de macaco. Torna-se carismático.
Enquanto isso, um novo jovem negro porto-alegrense — assim como foram os grandes Tesourinha, Adãozinho, Aírton, Ortunho, Everaldo, Escurinho, e Claudiomiro — espanta o estado e o Brasil, vestindo as cores do Grêmio. Ronaldinho, que ainda carrega consigo o gentílico Gaúcho, deixa a zona sul de Porto Alegre para se consagrar como o melhor jogador do mundo no novo milênio.
É nesse período, mais precisamente em 2001, que surge a maior torcida organizada da história do Grêmio, a Geral do Grêmio. Batizada primeiramente com o nome de Alma Castelhana, vai acentuar os simbolismos gaúcho e platino nas arquibancadas do Olímpico. É pela boca de seus fanáticos, com a conivência da direção do clube, que os insultos raciais se mantêm intactos na Azenha.
“Olha a festa macaco
Torcida é coração
Quem não canta é amargo
E nunca vai sair campeão”
Torcida é coração
Quem não canta é amargo
E nunca vai sair campeão”
“Somos campeões do mundo
Da Libertadores também
Chora macaco imundo
Que nunca ganhou de ninguém
Somos a banda mais louca
A banda louca da Geral
A banda que corre
Os macacos do Internacional”
Da Libertadores também
Chora macaco imundo
Que nunca ganhou de ninguém
Somos a banda mais louca
A banda louca da Geral
A banda que corre
Os macacos do Internacional”
Em 2009, liderado por Jorge Avancini, diretor de marketing do Inter, a direção colorada toma medida polêmica, que vai ao encontro do sentimento que se espalha pelo Beira-Rio, o de aceitar o macaco como parte da cultura colorada — como o Palmeiras e os palmeirenses fizeram com o porco, só que ainda com mais polêmica. Trata-se do lançamento de um novo mascote colorado, destinado às crianças; um macaco, de codinome Escurinho, homenagem a um craque do clube nas décadas de 60 e 70.
Por várias anos, a verdade é que o racismo persiste, contamina até o cimento dos estádios e vira questão natural nas arquibancadas gaúchas. O fenômeno recebe pouca atenção da imprensa local. Entre os textos conhecidos, exceção feita ao desabafo do jornalista gremista Sérgio Xavier, então diretor de redação da Placar, em seu blog, no ano de 2010.
Vou falar de algo que há anos me incomoda profundamente quando vou ao Olímpico. Em qualquer jogo de qualquer campeonato, algum setor da torcida puxa um cântico qualquer lembrando que “eles” são os macacos. Negros, gente inferior, o propósito disso tudo. Racismo, com notas nazistas, sempre me tira do sério. Mas, nesse caso, fico profundamente envergonhado quando percebo que o senhor do meu lado está ensinando a seu filho aquele “uh, uh, uh” agressivo. Um pequeno racistinha está sendo formado na Azenha.
Em 2011, ele volta ao tema:
AH, EU SOU MACACO
Achou agressiva a frase acima? Pois, nos estádios gaúchos, gremistas e colorados tratam a questão como se não fosse racismo…
Decisão do Campeonato Gaúcho de 2011, Estádio Olímpico. O Grêmio, que já havia vencido o primeiro jogo, começa o Grenal com 1 x 0, toma a virada e perde o título na decisão por pênaltis.
Pior que perder a partida – e o campeonato para o Internacional -, foi perder a compostura. Ainda no primeiro tempo, o técnico Falcão resolveu colocar em campo o atacante Zé Roberto. Quando aquecia, o jogador goiano começou a ouvir um som da torcida. Parecia uma imitação de macaco. Zé Roberto é negro. Sem acreditar, o atacante perguntou aos companheiros de time se estavam ouvindo aquilo mesmo. Os colorados responderam que sim, que era normal isso acontecer no Sul.
Não estavam mentindo. O Juventude já coleciona dois episódios por atos racistas. Em um deles, o então zagueiro Antônio Carlos fez um gesto se referindo à cor da pele do volante Jeovânio, do Grêmio [em 2006]. Antônio Carlos tem a pele clara. Jeovânio, escura. Em outro, torcedores imitavam macacos quando o colorado Tinga tocava na bola. O Grêmio foi acusado de hostilizar Elicarlos, do Cruzeiro, na Libertadores de 2008. Elicarlos é negro. Recentemente, houve até um racha na torcida Geral do Grêmio. Entre os motivos apontados para a discórdia estaria a colocação de bandeiras com as figuras de Lupicínio Rodrigues e de Everaldo, que teriam sido vetadas por eles serem negros. De fato, as bandeiras só são vistas no setor da “dissidência”.Não se pode dizer que sejam casos isolados. (…)
No futebol, o gaúcho nunca teve muita cerimônia para usar a cor da pele na diferenciação dos clubes. O Grêmio representava a elite; o Internacional, mais popular, virou “time de negão”. Com o passar dos anos, ficou tudo muito parecido. O Grêmio conquistou torcedores nas camadas menos favorecidas, o Internacional arregimentou fãs nas elites. Mas o tema branco e preto seguiu sempre na pauta das arquibancadas.
É aí que entra a história da “macacada”. Pelo mundo afora, não há símbolo maior de discriminação racial que chamar alguém de macaco. A ofensa é universal, ela pode ser entendida na Finlândia, na Austrália ou no Sri Lanka. A ligação é direta, a cor escura da pele deixa claro que macaco, no caso, é igual a negro. O rebaixamento é evidente, o negro é desalojado da condição de ser humano para virar bicho. A ideia passa por aí. E tudo tão fácil de demonstrar, um gutural “uh, uh, uh” ou uma banana jogada fazem com que a mensagem seja percebida na hora.
No futebol europeu, manifestações de racismo são sinônimos de confusão. O negro camaronês Samuel Eto’o fez o jogo parar quando ouviu da arquibancada do Getafe um “uh, uh, uh”. O Getafe foi punido. Roberto Carlos, branco para o padrão brasileiro e negro para o europeu, foi também vítima de racismo. Recebeu de presente uma banana de um torcedor do Zenit, da Rússia. Virou escândalo internacional.
No Rio Grande do Sul, os macacos pulam livremente de galho em galho.
A questão racial se aprofunda quando a rivalidade entra em campo. O Internacional se tornou o time da macacada. Muito gremista se refere, sem qualquer traço de constrangimento, ao Inter como “os macacos”. A “macacada” aparece na letra de alguns cânticos tricolores.
Uma parte da torcida colorada até incorporou a “brincadeira”. E há bandeiras com um macaco colorado. A própria diretoria, para se salvar no politicamente correto, resolveu demitir o Saci do emprego de mascote das categorias de base. Perneta e com seu cachimbo inseparável, ele poderia estar relacionado ao fumo e até ao consumo de crack. A solução foi curiosa. A mascote escolhida foi o macaquinho, e seu nome foi escolhido por votação. Escurinho, um ídolo negro dos anos 70, batizou o macaquinho. Assim, os próprios colorados ofereceram aos rivais a argumentação de que “não há nada de mais” em chamar outro ser humano de macaco. Tudo normalíssimo.
O caso específico de Zé Roberto provavelmente dará em nada. A enésima imitação de macaco tem tudo para cair no esquecimento. Enquanto isso, os pais torcedores seguirão em domingos ensolarados de estádio ensinando aos filhos o quão saudável e divertida é a brincadeira. E o Rio Grande do Sul seguirá espantando quem vem de fora e não acha tão normal esse “uh, uh, uh”. (Sérgio Xavier, em seu blog, em julho de 2011)
Nem a direção do Inter, nem a direção do Grêmio mexeram uma palha para a prática terminar. No Grêmio, as situações racistas eram disfarçadas pela diretoria. Foi o que ocorreu em 2009, quando o argentino Máxi Lopez chamou de ‘macaquito’ o zagueiro Elicarlos, do Cruzeiro. Ainda no Minerão, o então presidente Duda Kroeffm disse que tudo não passava de uma armação.
— Foi forjada uma queixa, para perturbar. São os Perrella, velhas raposas. (Duda Kroeff, ex-presidente do Grêmio, em 2009, em entrevista ao Globoesporte.com)
Em março de 2014, outra ocorrência — a primeira marcante na nova Arena Grêmio. Após o fim de um vitorioso clássico Gre-Nal, o zagueiro Paulão, do Internacional, deixa o campo sob as mesmas ofensas de sempre: “uh, uh, uh”, “macaco”. Mais do que Paulão, foi o volante Willians quem ficou furioso.
— Torcida de merda, fala mal de preto. Fizeram gritos racistas, ‘uh, uh’ de macaco para o Paulão. Não vale a pena, não (ir na polícia). Torcedores de merda. (Willians, volante do Internacional, em entrevista ao lance.net, em março de 2014)
O Grêmio foi multado em R$80 mil, recorreu da decisão. Prometeu procurar o torcedor, mas nunca o encontrou. A posição se mantinha a de sempre, a de tratar os casos como fatos isolados.
QUANDO O MACACO
ACERTA A ARANHA
ACERTA A ARANHA
Já era possível imaginar aonde tudo isso iria desaguar. Com a explosão do discurso antirracista em todo o mundo do futebol — com o apoio da FIFA e até mesmo da imprensa conservadora — haveria de chegar a hora que um jogador adversário do Grêmio iria enfrentar, na cara de todo mundo, tantos anos de racismo escancarado. O nome dele? Mário Lúcio Duarte Costa.
Mário, quando pequeno, como bom mineiro, era conhecido como ‘Marin’ pelos amigos do bairro de São João, um dos mais pobres (e negros) de Pouso Alegre, no sul de Minas — bairro que tem como grande atração a maior réplica do Cristo Redentor em todo o Brasil.
Ainda antes do monumento ser inaugurado, em meados da década de 90, Marin se destacava no futebol pouso-alegrense. Fechava o gol do CRAC, clube dirigido por Hailton Custódio, figura mais notória da história do futebol da região. Custódio achava que ‘Marin’ não seria nome de um grande goleiro. Fã do russo Lev Yashin, o Aranha Negra, o treinador decidiu: ‘Marin’ seria Aranha.
Antes de ganhar o Brasil, ainda em Pouso Alegre, Marin teve uma conversa marcante com seu primo Fred, de Campinas.
— Uma vez, sentado na frente da casa da minha vó, ele me falou assim: “um dia vou cantar rap e você vai jogar futebol, vai jogar na Ponte Preta”. Eu tinha 13 ou 14 anos. Passou o tempo, me esqueci disso aí. Um dia ele chegou, em Campinas, com um CD, me deu e disse ‘não falei’? Olhei para o título do CD, que era Nunca Deixe de Sonhar. Eu guardo isso para a minha vida. (Aranha, em dezembro de 2013, em entrevista a TV Libertas)
Aranha, agora goleiro da Ponte, se inspirava pelo rap. Não se sabe qual a música do CD do seu primo ele preferiu. É possível que tenha sido O Desabafo de um negro, do grupo Conceito Real:
Orgulho de ser negro,
da África sofrida ao Brasil miscigenado,
nos tiraram da nossa terra,
mas não arrancaram a nossa raiz
Discriminados, maltratados, quase sempre humilhados
Tirados de macaco e cabelos de bombril
É dura a realidade dos negros do Brasil
Parado é suspeito, correndo é ladrão
O termo mulata já virou profissão
Desconfiam de nós, ignoram a nossa voz
Generalizam demais, dizem que preto é marginal
Não sabia que ladrão tem até cor oficial
O verdadeiro ladrão te controla com dinheiro
E, certamente, no passado, tinha até navio negreiro
Nos trouxeram para cá, presos em correntes
Desconsiderados, não nos tratavam como gente
A luta pelo voto e pela liberdade de expressão
Do quilombo com orgulho,
eu vou gritar que eu sou negão (…)
Orgulho de ser negro,
da África sofrida ao Brasil miscigenado,
nos tiraram da nossa terra,
mas não arrancaram a nossa raiz
Discriminados, maltratados, quase sempre humilhados
Tirados de macaco e cabelos de bombril
É dura a realidade dos negros do Brasil
Parado é suspeito, correndo é ladrão
O termo mulata já virou profissão
Desconfiam de nós, ignoram a nossa voz
Generalizam demais, dizem que preto é marginal
Não sabia que ladrão tem até cor oficial
O verdadeiro ladrão te controla com dinheiro
E, certamente, no passado, tinha até navio negreiro
Nos trouxeram para cá, presos em correntes
Desconsiderados, não nos tratavam como gente
A luta pelo voto e pela liberdade de expressão
Do quilombo com orgulho,
eu vou gritar que eu sou negão (…)
Foi batendo forte no braço esquerdo, gritando que era negão, que Aranha se rebelou contra a torcida gremista, que o xingava de macaco na noite de 28 de agosto de 2014. O Santos vencia o Grêmio por 2 a 0, o goleiro ganhava tempo no chão já no fim do jogo, quando pelo menos uma dezena de torcedores gremistas começou a despejar as injúrias raciais. O goleiro pediu a interrupção do jogo ao árbitro, mas não foi atendido. Aos operadores de câmera que o cercavam, implorou por um flagra que fosse, para provar que não estava mentindo. Conseguiu.
Não se pôde ouvir a voz, mas se pôde ler os lábios de Patrícia Moreira, 23 anos: ‘’MA-CA-CO”. A energia do pulmão de Patrícia machuca tanto quanto o silêncio da menina ao lado, impassível.
Ao deixar o campo, Aranha desabafou.
— Da outra vez que viemos aqui jogar a Copa do Brasil, estava passando no telão uma campanha contra o racismo. Não é à toa. Eu tava no gol ali — a torcida xingar, pegar no pé é normal — mas começaram com palavras racistas: ‘preto fedido’, ‘seu preto’, ‘cambada de preto’, fiquei nervoso, mas até aí ainda tava me segurando. Aí começou aquele corinho de macaco, fizeram rápido e pouco, para não dar tempo de filmar. E eu falei para o câmera: ‘filma o cara de preto que tá lá’, ‘filma os outros que tão lá’, e o cara não virava a câmera. Eu fico nervoso. Desculpa a palavra, eu fico puto mesmo dessas coisas acontecerem aqui. Dói, dóói… Eu virei para a torcida, bati no braço e disse: “eu sou preto, sim”. “Sou negão, sim”. Todo mundo que vem jogar aqui sabe — não são todos os torcedores — mas sempre tem uns racistas aqui no meio. (Aranha, goleiro do Santos, ao final do jogo do dia 28/08/2014)
Aranha denunciou Patrícia à polícia, que abriu inquérito para investigar o caso. A garota jurou que não era racista. O episódio ganhou repercussão internacional; a pressão sobre a direção gremista nunca fora tão forte. Acuado, o presidente Fábio Koff tentou escapar: “Temos nossos regulamentos internos, não se deve discriminar raça ou religião e não aceitamos qualquer tipo de preconceito”. Não adiantou. Uma semana depois, o Grêmio estava expulso da Copa do Brasil, decisão aplaudida até mesmo pelo presidente da FIFA. A pecha de torcida mais racista do Brasil colava forte no gigante de 111 anos.
— O que fez a direção no caso do Aranha? A direção do clube entregou as imagens e disse, claramente, nós não vamos esconder. Até por que não tinha alternativa. Só que na sequência surgiram dirigentes – pessoas que ocuparam cargos importantes no clube e ainda fazem parte do conselho deliberativo – com outro tipo de argumento. Disseram que o Aranha fez um teatro, que “valorizou” os xingamentos para prejudicar o Grêmio e tal. Isso produziu uma ideia de que os insultos foram isolados e que aquilo não tinha nada a ver com o Grêmio. E que o Aranha, em vez de ser uma vítima, era uma espécie de um algoz do Grêmio. É o gremismo acima de qualquer coisa. É isso que explica as vaias ao Aranha no jogo posterior. (…) A dificuldade para lidar com o racismo agora é a mesma que eles tiveram lá na década de 40. (Arlei Damo, antropólogo)
O RACISMO NÃO TERMINA,
O MACACO VIRA BRANCA DE NEVE
O MACACO VIRA BRANCA DE NEVE
O jogo posterior, a que Damo se refere, é o último capítulo já escrito dessa saga. Agora pelo campeonato brasileiro, menos de um mês depois, Aranha voltava a enfrentar o Grêmio. Em vez de ser insultado como macaco, era chamado de ‘Branca de Neve’, ‘Alemão’. A maioria do estádio o vaiou do início ao fim, e ele, magoado, deixou mais uma vez o campo sem levar gol, mesmo que se sentindo goleado.
A partir daí, o debate fica nas palavras do amigo Igor Natusch, jornalista e gremista indignado. Espero que a reportagem acima ajude a dar elementos para todos, gremistas ou não, responderem as perguntas elaboradas ao final do texto. Quiçá, assim, parta justamente da torcida gremista a virada de um jogo que estamos perdendo há tempos, aquele que acredita que os negros são sujeitos menores.
Enquanto seguirmos discutindo o acessório, seguiremos de mãos dadas com o racismo (por Igor Natusch)
Enquanto seguirmos discutindo o acessório, seguiremos de mãos dadas com o racismo (por Igor Natusch)
Muitas e muitas são as vozes que se erguem para supostamente defender o Grêmio das acusações de ser um clube e/ou uma torcida racista. Algo potencializado desde a última quinta-feira, quando a Arena dedicou-se a vaiar incansavelmente o goleiro Aranha, que denunciou (como todo mundo sabe) atos racistas por ele sofridos em partida contra o Grêmio. Infelizmente, penso serem poucas as figuras que agem no sentido de ir além das palavras, de colocar o Grêmio em uma trilha que efetivamente repudie o racismo como a coisa abominável que é, que demonstrem com ações que o Grêmio e seu torcedor se recusam a ter qualquer coisa a ver com semelhante vergonha da humanidade. O ultraje – muitas vezes mera exacerbação de questões que eu julgo muito menores que o tema central, que é o racismo – tem servido de desculpa para omissão, para que o gremista tente vestir o papel de vítima que pouco ou nada cabe a ele nessa história, em prejuízo dele próprio e de toda a sociedade.
A seguir, listo algumas das colocações que mais ouvi nos últimos dias por parte de gremistas, e exponho a resposta que eu daria a cada uma delas.
“A vaia não foi por racismo, foi porque Aranha prejudicou o Grêmio.”
Sim, acredito que é verdade. Penso que poucos foram os que conscientemente vaiaram Aranha por ele ser negro, que conscientemente exerceram racismo: a maioria queria apenas reproduzir o sentimento de ultraje pela situação do Grêmio, que atribuem parcial ou totalmente a posturas adotadas por Aranha. O diabo é que o racismo, essa chaga maldita que até hoje sangra na consciência brasileira, muitas vezes não precisa de intenção para se manifestar. E penso que foi o que ocorreu: sem desejarem o racismo e sem pretenderem reforçá-lo, os torcedores gremistas que vaiaram Aranha ainda assim acabaram invocando o racismo, reforçando-o junto à imagem do clube e o exercendo ativamente. Vaiar a pessoa que foi alvo de racismo, no local e nas circunstâncias em que foi alvo de racismo, soará como racismo no mundo inteiro, em qualquer ponto de vista, independente de quanto o gremista falar e gritar e insistir que não é bem isso. Vaiar é uma escolha: lide-se com as consequências.
“O Grêmio foi alvo de generalização. Aranha não aceitou fazer uma campanha com o Grêmio. Fomos punidos e ficamos com raiva do Aranha. Estão ignorando tudo isso!”
Não ignoro os fatos entre a quinta-feira fatídica onde Aranha foi insultado e esta outra quinta-feira, da semana passada, onde foi vaiado. Considero eles significativos na formação de um sentimento gremista de desconforto e indignação. Do mesmo modo que não ignorava, por ex, que havia no “macaco” gritado contra colorados intenções que transcendem o puro ato racista. Minha questão é: esses elementos não incidem sobre o EFEITO da vaia, o EFEITO de xingar de macaco. Não esvaziam os gestos cometidos de uma carga que é inerentemente racista, independente dos motivos que os animem. A vaia não tem nota de rodapé. O grito “macaco” idem. Ambos carregam, nas circunstâncias, um efeito racista em si. Por isso critico a vaia, mesmo compreendendo que ela longe está de ser um gesto que só gremistas cometeriam, por ex. E não porque ache que a torcida gremista é racista. Mas porque opta por atitudes que reproduzem racismo e, assim fazendo, o amplificam. Erra por assumir papel de caixa de ressonância e apegar-se a ele.
“Estão dizendo que TODO GREMISTA é racista, e isso é injusto!”
É uma consequência do ato primeiro, que foi o racismo contra Aranha. E uma opinião que vem sendo reforçada pelo fracasso do gremista não-racista em posicionar-se da forma que um não-racista tem a obrigação moral de assumir – ou seja, de repúdio inequívoco e sem ressalvas ao racismo. A torcida reage à generalização com o que, para mim, fica na pura vitimização. Gestos de repúdio ao racismo (que ocorreram) se perderam na medida em que a torcida considerou-se atacada. E o racismo, que é o marco zero da história. virou detalhe. “O racismo contra Aranha foi condenável, MAS…” Eu acho que é fundamental eliminar esse “mas”. Porque só deixando o “mas” de lado será possível agir quanto ao racismo, que infelizmente sentia-se (e periga ainda sentir-se) à vontade na Arena.
“Querem acabar com a graça do futebol!”
Eis um ponto importante para mim. Há uma discussão adjacente ao racismo contido (como eu creio) ou não contido (como outros creem) na vaia contra Aranha: até que ponto está tudo liberado num estádio de futebol? O que há de tão mágico e especial em um estádio que nos permita ser racista, homofóbico, misógino, machista, agressivo, injuriante, depredador e brutal sem maiores consequências? Que essas coisas manifestam-se livremente no estádio, todos sabemos; a questão é se desejamos que sigam se manifestando e mais, se é saudável para nossa sociedade e para nossa civilidade que se manifestem como tem sido hoje, praticamente sem barreiras e escudadas na aceitação comum. Que sentido há em eu ser contra o racismo no dia a dia, mas achar OK cantarem “chora macaco imundo” num estádio de futebol? Que lógica anima meu repúdio à homofobia na sociedade se, quando estou na arquibancada, chamo os adversários de “viado” e “puto” sem nenhum constrangimento? Qual é a explicação para eu ser simpático à causa feminista mas, quando na cancha, gritar que a bandeirinha só serve para fazer sexo ou achar graça quando o dirigente diz que ela deveria largar o futebol e viver de posar nua em revistas? Querer uma sociedade menos preconceituosa e ao mesmo tempo defender o estádio como um templo da sociopatia – eis algo que, para mim, não faz sentido algum. Se a “graça” do futebol está em servir de amplificador para algumas das mazelas mais repugnantes da sociedade, então penso que o futebol precisa MESMO reinventar-se.
“Mas EU não sou racista!”
Muito bem. E o que tens feito de acordo com essa posição? Onde tens saído do reino da palavra (dizer e insistir que não é racista) para o da ação (demonstrar, com gestos e posicionamentos, que não é racista)? Na última quinta-feira, por ex, a torcida gremista teve a chance de AGIR, ao invés de apenas falar. Poderia desarmar injustiças, calar a boca dos que generalizam, atuar de forma decisiva para tirar do Grêmio uma pecha extremamente desagradável. O que fez? Optou pelo clubismo. Achou que tinha que ser explícita quanto a seu desconforto para com Aranha, ao invés de ser explícita quanto a seu desconforto em relação ao racismo. Ignorou o problema social gravíssimo em nome do direito de vaiar quem dele foi vítima. É uma escolha – e como todas as escolhas, tem sua consequência. A consequência foi cristalizar no imaginário do futebol que a torcida gremista é racista – já que, quando pode se posicionar a favor do negro ofendido e agir acima do clubismo, optou pela vaia. Falar não adianta: o Grêmio agora é a MULHER DE CÉSAR e tem que mostrar sua virtude, ao invés de simplesmente apregoá-la. Então reforço a pergunta, direcionada ao gremista não-racista: o que tens feito para mostrar que não és racista e que teu clube do coração não é racista? De que forma a tua ação casa com teu discurso?
Termino a exposição sobre o assunto (que sinceramente anda me chateando bastante e que eu só insisto em abordar por questão de consciência) pedindo uma reflexão ao torcedor que hoje sente-se ofendido por Aranha, injustiçado por virar símbolo do racismo, indignado por ter sido excluído da Copa do Brasil, revoltado com a exposição negativa em âmbito nacional. Isso tudo veio do nada, torcedor? Simplesmente escolheram o Grêmio como vítima, resolveram que seria esse clube sem manchas em seu passado a carregar a cruz do racismo brasileiro por toda a eternidade – ou o Grêmio carrega sim a mancha de uma convivência amistosa com gestos racistas, traz sim em sua história uma incansável crítica racista ao Internacional, permitiu sim durante tempo demais que o racismo fosse visto como coisa menor e, assim, ficasse cada vez mais à vontade dentro de si? Estão todos sujos, me dizem – e isso nos exime da necessidade de fazermos a faxina, de removermos a sujeira que atravanca nosso caminho? É válido apontar o erro do outro para seguir ignorando o erro em si? Enquanto seguirmos discutindo o acessório, seguiremos de mãos dadas com o racismo, fingindo que não temos nada a ver com ele. Uma postura totalmente contrária ao que eu espero de quem quer uma sociedade arejada de preconceitos – e contrária ao que espero de um gremista que deseja seu clube respirando um ar menos poluído, sem precisar gritar o tempo todo que não é racista, não é racista, de jeito nenhum. (texto do jornalista Igor Natusch publicado no site Trivela)
por Caetano Manenti
desde a década de 20, com jogadores de origem negra em suas equipes. Adão Lima, que
jogou no Grêmio de 1925 a 1935, é um dos exemplos. Na década de 40, Hélio e Mário
Carioca são outros casos de afro-descendentes nas equipes tricolores, assim como o
atacante Hermes da Conceição, que jogou no clube de 1947 a 1950.
Há exatos cem anos o ground da Baixada encontrava-se alagado, mas naquele domingo cinzento, todos queriam jogar. As longas caminhadas que os jovens faziam para poderem desfrutar de momentos esportivos com uma pelota encantava a todos na cidade, não importava se estes se deparavam com um pouco de barro ou algumas poças d’água num campo de futebol.
As equipes do Grêmio, o Porto-Alegrense da época, haviam acertado duas partidas contra o Nacional, a partida inicial – conhecida hoje como preliminar- seria disputada pelo “segundo quadro” e a partida principal valeria para o campeonato da Liga Porto-Alegrense.
O estado do gramado chegou a ser motivo de discussão devido aos adiamentos das partidas. Uma resolução permitiria então, a transferência dos jogos para o domingo seguinte. No entanto, o capitão do segundo quadro do Nacional exigiu que a partida fosse realizada.
Então, de comum acordo, o Sr. Mendonça, juiz do Internacional, escolhido para os matches daria condições para que as partidas se realizassem.
A primeira partida terminou com resultado de 9×2 para o Grêmio e a segunda com o placar de 8×0, mesmo com a interrupção aos 28 minutos da segunda etapa, devido falta de luz natural.
Mas não são os scores, muito menos a partida principal o foco deste texto.
A equipe que entrou em campo na partida preliminar era formada basicamente por jogadores, associados do clube do ano vigente e do ano anterior (1911 e 1912). E lá estava ele: Antunes.
Antunes não foi apenas um dos jogadores a vencer o Nacional, mas sim, o primeiro negro a vestir a camisa do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense.
Segundo meus estudos, seu nome completo seria Armando Luiz Antunes, um negro, associado do Grêmio, o maior clube da cidade.
Gaúchos. Peço que acompanhem com atenção esse relato de um colorado frequentador dos Grenais na década de setenta no estádio Olímpico. O que vou lhes contar não aconteceu uma vez não.
Naqueles tempos era possibilitado que cerca de trinta por cento da capacidade do estádio fosse ocupado pela torcida adversária. Hoje é cinco por cento. O estádio Olímpico ainda não estava com a arquibancada superior completa. Obra que se concluiu em 1977.
A torcida do INTER ocupava a parte da geral que dava os lados da Av. Dr. Carlos Barbosa. Éramos entre dez a quinze mil colorados. O estádio do grêmio possui seis grandes postes ou torres de iluminação. Três para o lado da citada avenida e os outros no lado oposto. Era o início dos anos setenta, ai por 72 ou 74. Na época adolescente presenciei um dos fatos mais nojentos e baixos já vistos num estádio de futebol, eu e mais 40 mil pessoas. Simplesmente presenciamos um ato racista. Ato que ocorria com o beneplácito do Grêmio. Sim, com o beneplácito. Vejam o motivo: Entre duas dessas torres de iluminação era estendido um cabo (não sei o material). Por esse cabo faziam transitar por sobre a cabeça dos colorados um boneco. Era um macaco. Trazia o boneco um cacho de bananas atado nas mãos. Esse acinte, essa manifestação racista e odiosa ia e vinha por sobre os colorados. É isso acontecia dentro da estrutura do estádio Olímpico, pertencente ao clube Grêmio, portanto, o clube permitia, pode se pensar que até auxiliasse. Na época não havia este controle e fiscalização que ocorre hoje. Esse fato histórico associava o clube com o racismo. Não é apenas uma manifestação individual de alguns torcedores. Todos os clubes possuem torcedores racistas. Não era apenas, como a pouco se via, à manifestação majoritária de uma importante torcida organizada do Grêmio, a Geral que entoava aos berros alucinados o cântico racista que todos conhecemos: “Chora macaco imundo (…)”. Nesse ponto desconheço torcidas que tenham esse comportamento com tanta qualidade e permanência no tempo. Não podemos chamar aquilo que ocorria no estádio Olímpico de brincadeira. O clube Grêmio estava metido naquilo de corpo inteiro. Eu sou testemunha.
Lembrei disso ao meu pai. Ele com seus mais de oitenta anos chorou. Perguntou-me por que faziam aquilo? Não tive resposta para lhe dar. Até hoje não tenho. A mídia gaúcha sempre se calou quanto ao tema ou, no máximo, tratou superficialmente e ainda buscando também no S. C. INTERNACIONAL alguma mácula relacionada com o tema. Não importa em qual dos clubes um afro jogou antes, o que importa é que o INTERNACIONAL, já em 1930, era um clube popular, de massa, da massa preta, parda e pobre do RS. Somente muito depois o mesmo aconteceu com o Grêmio. Tem muito de desconhecimento e falta de informação sobre essa parte importante da história do futebol gaúcho.
Então não esqueçam mais do macaquinho do Olímpico, ele continua a passar sobre nossas cabeças desafiador. Temos de vencê-lo.
Como são apenas 66 anos (2018 a 1952) dessa contratação ainda é possível encontrar pessoas vivas que fraquentavam os jogos ou jogaram na dupla grenal e podem validar essa história.
E Rudi Batista, se por um lado é triste gremistas tentar retirar a macula ou melhor, rótulo forçado e tendencioso de clube intolerante, por outro lado é lamentável colorados embarcar no gancho difamatório movido por um clubismo camuflado por indignação até porque o Internacional não nasceu como um clube de inclusão, muito menos de negros e apenas se tornou o “clube do povo” através de uma tentativa de se aproximar da camada popular porto alegrense com o intuito de visgar o seleiro negro emergente no futebol gaúcho
No Internacional, o primeiro jogador negro foi Dirceu Alves. O meia-direita vestiu camisa colorada por volta de 1925 – a FGF (Federação Gaúcha de Futebol) atesta 1928, segundo Gerchmann -, conforme confirmação do site oficial do clube. No Brasil, existe uma disputa entre Bangu, Vasco da Gama e até a Ponte Preta sobre qual clube primeiro teria admitido em seus quadros um atleta negro. O clube campineiro alega que foi fundado em 1900 por Miguel do Carmo, jogador negro.