Essa e a verdadeira cara da nossa Segurança Publica

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Um editorial fascista

 Ilustração de Heitor Vilela

Um editorial fascista


Gilberto Calil

Muitos se surpreenderam com a truculência e cinismo do editorial do jornal Folha de S. Paulo do dia 2 de setembro (“Fascistas à solta”[1]), mesmo dentre os que conhecem a história da colaboração sistemática do Grupo Folha com a repressão política durante a ditadura, chegando mesmo a ceder veículos para que o aparato repressivo executasse suas operações. A surpresa advém do fato de que o jornal Folha de S. Paulo vinha desde os anos 1980 investindo na difusão de uma imagem “democrática” que permitisse o apagamento de seus vínculos com a ditadura da percepção de seus leitores. Para isto, apoiou o processos de transição, assumindo a defesa das “Diretas Já”, ainda que sempre se opondo às propostas de democratização mais ampla e radical. Além disto, difundiu a imagem de pluralismo abrindo espaço a alguns colunistas críticos e eventualmente até de esquerda. Com isto, claramente criava uma imagem pública distinta de seu concorrente O Estado de S. Paulo. Sua linha editorial, no entanto, não mudou substancialmente, e isto pode ser percebido com clareza em momentos de maior questionamento do status quo. Isto ficou explícito em junho de 2013.

O jornal propôs e praticamente exigiu a criminalização dos protestos em um momento em que ainda eram restritos à cidade de São Paulo, mas quando o crescimento do movimento já era perceptível, com os três primeiros realizados entre 6 e 12 de junho de 2013. Quando o Movimento Passe Livre convocou o “Quarto Grande Protesto”, para o dia 14 de junho daquela ano, o jornal reagiu em tom agressivo, desqualificando as manifestações e seus promotores e exigindo repressão implacável. Seus promotores seriam “jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados” e que teriam a “intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista.[2] Para um jornal que se diz liberal, era necessário prestar tributo ao “direito de manifestação”, ainda que para chegar a uma conclusão que na prática o negava concretamente:

“O direito de manifestação é sagrado, mas não está acima da liberdade de ir e vir –menos ainda quando o primeiro é reclamado por poucos milhares de manifestantes e a segunda é negada a milhões. É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais. Não basta, porém, exigir que organizadores informem à Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), 30 dias antes, o local da manifestação. A depender de horário e número previsto de participantes, o poder público deveria vetar as potencialmente mais perturbadoras e indicar locais alternativos”.[3]

As condições arbitrariamente inventadas pelo jornal, nitidamente irrealistas – como a comunicação trinta dias antes e a previsão do número de manifestantes – parecem simplesmente patéticas, mas assumiam significado distinto considerando sua articulação com os discursos emitidos pela Secretaria de Segurança Pública, que justificavam a repressão com base em pretextos artificialmente criados, muito especialmente a exigência de comunicação prévia do trajeto.

É interessante observar como um momento de contestação da ordem vigente leva à unificação do discurso dos distintos porta-vozes dos interesses das classes dominantes. O jornal O Estado de S. Paulo, explicitamente conservador, manifestava-se em termos praticamente idênticos aos da Folha:

“No terceiro dia de protesto contra o aumento da tarifa dos transportes coletivos, os baderneiros que o promovem ultrapassaram, ontem, todos os limites e, daqui para a frente, ou as autoridades determinam que a polícia aja com maior rigor do que vem fazendo ou a capital paulista ficará entregue à desordem, o que é inaceitável.

A reação do governador Geraldo Alckmin e do prefeito Fernando Haddad – este apesar de algumas reticências – à fúria e ao comportamento irresponsável dos manifestantes indica que, finalmente, eles se dispõem a endurecer o jogo. A atitude excessivamente moderada do governador já cansava a população. Não importa se ele estava convencido de que a moderação era a atitude mais adequada, ou se, por cálculo político, evitou parecer truculento. O fato é que a população quer o fim da baderna – e isso depende do rigor das autoridades”.[4]

“Por um ponto final nisso” nas palavras da Folha, impor o “fim da baderna” nos termos do Estadão, o que em conjunto ambos diziam é que a repressão (que já fora violenta nos primeiros protestos) tinha que ser radicalizada, ao mesmo tempo que as manifestações eram deslegitimadas e que se pavimentava o caminho para sua criminalização. A sequência da história é bem conhecida: a manifestação de 14 de junho foi a maior até então, a violência da repressão foi enorme, mas sua repercussão determinou uma reação em cadeia que propiciou a nacionalização dos protestos. Naquele momento, a tática do esmagamento pela repressão fracassou, obrigando a imprensa corporativa a lançar mão de recursos mais sofisticados, voltados à disputa dos rumos das manifestações, para o que foi necessário voltar atrás em seu discurso inicial e reconhecer a legitimidade das manifestações, propondo no entanto rumos distintos.[5]

Consolidar o Golpe, impedir os protestos

A consolidação do golpe institucional no último dia 31 de agosto deu-se em contexto de nítida desmobilização. O Partido dos Trabalhadores e a Central Única dos Trabalhadores não convocaram grandes manifestações para acompanhar o processo e há claros indícios de que houve um acordo entre PT e PMDB para que parlamentares ligados a Renan Calheiros e ao presidente golpista votassem pela preservação dos direitos políticos de Dilma Rousseff logo depois da votação do impeachment.

Para surpresa geral, no mesmo dia ocorreram manifestações espontâneas ou de “convocação relâmpago” em inúmeras cidades, com um perfil claramente distinto das manifestações que tinham se realizado antes da aprovação do impeachment pela Câmara dos Deputados. Várias pesquisas indicam que o perfil daquelas era marcado pelo predomínio de setores médios e com escassa participação de jovens. Agora, ainda que não se disponha de pesquisa, os inúmeros vídeos difundidos indicam se tratava de manifestações com perfil muito distinto, onde os jovens trabalhadores eram a ampla maioria, tal como em junho de 2013. Nos dois dias seguintes, novas manifestações, na maior parte dos casos reunindo maior número de manifestantes, e enfrentando brutal repressão.

São inúmeros os relatos e registros da truculência policial, Manifestantes cercados e atacados por bombas, fotógrafos com equipamentos destruídos, bares invadidos pela Polícia Militar, advogados espancados e a perda da visão de um olho de uma estudante. A repressão policial foi especialmente violenta nos estados governados pelo PMDB e pelo PSDB, e muito particularmente em São Paulo. Foi neste contexto que foi convocada uma grande manifestação para o dia 4 de setembro na Avenida Paulista.

O Editorial da Folha só pode ser compreendido em sua articulação com a Nota da Secretaria de Segurança Pública que pretendia proibir a realização desta manifestação, sempre simulando respeito ao direito de manifestação:

“Diante da ocorrência de protestos violentos, com atos de vandalismo, ocorridos ontem, a Secretaria de Segurança Pública reuniu nesta quinta feira, 1 de setembro, os comandos da Polícia Civil e Militar e vem a público reafirmar que respeita o direito de manifestação e está empenhada em garantir a segurança dos manifestantes

Ressalta que conforme determina a Constituição, é obrigatória a comunicação de local, hora e trajeto em que se realizarão os atos públicos (…) Por fim, a Secretaria alerta que não será permitida a realização de atos na Avenida Paulista”.[6]

Em resposta, em nota conjunta a Frente Povo Sem Medo e a Frente Brasil Popular, reafirmaram a realização da manifestação, repudiando a arbitrária proibição e transferindo o horário para as 15h, de forma a não chocar-se com a passagem da tocha paraolímpica. A Secretaria de Segurança Pública recuou e nestas condições autorizou a manifestação. A publicação do editorial deu-se antes deste recuo, e visava justamente legitimar tal proibição.

Quem são os fascistas

O editorial “Fascistas à solta” foge do padrão usual pela farta adjetivação e indisfarçável truculência. Parte do reconhecimento da “mais ampla liberdade de manifestação, desde que pacífica”, estabelecendo explícito nexo com a posição de 2013: “Desde as jornadas de junho de 2013, agentes provocadores caracterizados como ‘black blocs’ praticam depredações e outras formas de vandalismo e continuam impunes. Retomando o surrado mantra liberal-conservador de que “os extremos se confundem”, qualifica os militantes como “anarcóides” e os associa ao fascismo (!):

“Alegam ser adeptos de uma ideologia anarcoide que utiliza a “violência simbólica” como suposta tática política. Os extremos do espectro político se confundem de tal modo que o comportamento desses milicianos, dispostos a impor seu ponto de vista pela truculência e pela intimidação, merece antes o epíteto de fascista”.

Os três parágrafos finais precisam ser transcritos na íntegra:

“Desaparecidos de cena, os delinquentes voltaram a agir em meio aos protestos contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) nas noites de quarta-feira (31) e quinta-feira (1º) em São Paulo, atacando prédios no centro da cidade, entre eles a sede deste jornal.

Grupelhos extremistas costumam atrair psicóticos, simplórios e agentes duplos, mas quem manipula os cordéis? O que pretendem tais pescadores de águas turvas? Quem financia e treina essas patrulhas fascistoides? Está mais do que na hora de as autoridades agirem de modo sistemático a fim de desbaratá-las e submeter os responsáveis ao rigor da lei.

Democracias incapazes de reprimir os fanáticos da violência são candidatas a repetir a malfadada República de Weimar, na Alemanha dos anos 1930, tragada pela violência de rua até dar lugar à pior ditadura que jamais houve”.

Trata-se da mais explícita legitimação da repressão às manifestações em prol da consolidação do Golpe institucional. Embora a tentativa de associação entre “extrema-direita” e “extrema-esquerda” (ou “nazismo” e “comunismo”) tenha longa história nas teorias do totalitarismo desde o final da Segunda Guerra Mundial, o percurso aqui seguido dispensa quaisquer sutilezas, optando pelo procedimento de desqualificação que é típico do próprio fascismo. O linguajar agressivo e virulento e a farta adjetivação permeiam o texto. Para a Folha, basta apenas afirmar que os “anarcóides” seriam “extremistas” capazes de atrair “psicóticos” para “pescar em águas turvas”. Difícil aqui não lembrar dos discursos dos Médici ou Figueiredo… Difícil, igualmente, deixar de perceber a relação entre o tom do editorial e a multiplicação de manifestações fascistas nas redes sociais, como aquelas que comemoram a perda da visão de uma manifestante.[7]

Uma conclusão necessária

Há duas conclusões possíveis para esta reflexão. A primeira é necessária, mas insuficiente: a Folha de S. Paulo, como os veículos da mídia corporativa são agentes hegemônicos da classe dominante, cuja intervenção se evidencia de forma mais direta e explícita em situações de crise ou de confrontação social. A segunda toma isto como pressuposto, mas vai além: enquanto não construir instrumentos de comunicação eficientes e de amplo alcance, a esquerda permanecerá refém da mídia corporativa.[8] Por mais que esta se apresente “plural” e “aberta ao contraditório” em momentos de maior conciliação, sua natureza de instrumento hegemônico se evidenciará claramente nos momentos de crise – justamente quando a esquerda mais necessitaria contar com potentes instrumentos de produção hegemônica. Trata-se de uma tarefa difícil, mas inadiável.

 Notas

[1] “Fascistas à solta”. Folha de S. Paulo, 2.9.2013, p. 2.

[2] “Retomar a Paulista”. Folha de S. Paulo, 13.6.2013, p. 2.

[3] Idem.

[4] “Chegou a Hora do Basta”. O Estado de S. Paulo, 13.6.2013, p. 2.

[5][5] Discutimos isto em CALIL, Gilberto. “Embates e Disputas em torno das Jornadas de Junho”. Projeto História, S. Paulo, n. 47, Ago. 2013, p. 377-403.

[6] “Governo paulista proíbe protestos na Avenida Paulista neste domingo”. 1.9.2016. Folha de S. Paulo, 01 set. 2016. Disponível em http://bit.ly/2cvOJHQ.

[7] Apenas a título de exemplo, mencione-se a manifestação de professor universitário, que escreveu “De vez em quando tem notícia potencialmente boa. Uma garota ficou ferida na esbórnia pró-Dilma em São Paulo. Pode ficar cega. Se for petista, é uma boa notícia, mas não vai fazer muita diferença, já que são cegos como toupeiras”.. Disponível em http://bit.ly/2c2dmJZ

[8] Há doze anos, quando o lulopetismo encontrava-se em plena lua-de-mel com a mídia hegemônica, já apontávamos esta necessidade. Infelizmente, a despeito de iniciativas pontuais e isoladas, o quadro hoje não é melhor. CALIL, Gilberto & SILVA, Carla. “Apontamentos para uma política de comunicação contra-hegemônica”. Espaço Acadêmico, n. 37, junho 2004. Disponível em http://bit.ly/2cp7Sd3

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