Elas se alimentam de radicalismos, ocorrem em todo o mundo e em diferentes épocas. Como herança, frequentemente, deixam guerras, golpes de Estado e regimes totalitários.
Greve de caminhoneiros é carga pesada contra a democracia porque transporta o explosivo potencial de paralisar a economia de um país – sobretudo se ele for por demais dependente do sistema rodoviário para fazer funcionar os seus mais diversos setores da sociedade. Essa quebra da atividade econômica, por sua vez, torna-se o mais inflamável combustível de crises políticas e sociais que, quando atingem o ápice, levam ao embrutecimento das ações e à radicalização ideológica. As nações se tornam uma Torre de Babel, na qual muita gente fala muito, sem saber o que está falando, e muita gente entende pouco, sem saber o que está entendendo. Vem o espanto e a irracionalidade similares à enigmática epidemia que tirou ou obnubilou a visão de quase todos os habitantes de uma cidade, magistralmente descrita por José Saramago em “Ensaio sobre a cegueira”. De profundas e agudas crises sociais vem o caos!
Houve um tempo em que sociólogos e cientistas políticos usavam e abusavam da seguinte fala: crise a gente sabe como começa mas não sabe como acaba. Hoje, com a jornada humana tendo atravessado vinte e um séculos, sabemos sim como as crises, alimentadas pelo radicalismo, terminam – sempre mal, muito mal, com a formação de governos autoritários e totalitários, seja para o país que as gerou, seja para outros países vizinhos ou até mesmo distantes. A Grande Depressão nos EUA, tragicamente coroada no dia 24 de outubro de 1929 com o crash da New York Stock Exchange (bolsa de valores Nova York), é bom exemplo disso. Da noite para o dia, ricos se tornaram pobres, pobres se viram miseráveis, miseráveis morreram de fome. Ermprego era agulha em palheiro. Os americanos comeram o pão que o diabo amassou. A recuperação começou a surgir em 1933 quando o presidente Franklin Delano Roosevelt adotou medidas da política econômica conhecida como New Deal, pouco depois racionalizada por John Keynes na obra “Teoria geral do emprego, do juro e da moeda”. Os EUA se salvaram, mas a crise deixou uma queda de 18% no PIB mundial. Mais: transformou a década de 1930 na Europa, mal saída do baque da Primeira Guerra, em berço de ideologias extremistas e influenciou diretamente o surgimento do nazismo e a deflagração do segundo conflito mundial.
Pois é, crises têm garras longas que alcançam à distância.
Voltemos agora à América Latina, voltemos a duas greves de caminhoneiros, não no Brasil mas no Chile. Corria no início da década de 1970 o governo do presidente socialista Salvador Allende, eleito pelo voto popular mas atolado até o pescoço na Torre de Babel que já citamos acima. A economia naufragava, o tecido social virara peneira e as ideologias se confrontavam de forma irreconciliável. Caminhoneiros desligaram o motor de seus caminhões por 26 dias em 1972. Repetiram a dose em agosto de 1973. No mês seguinte, Allende morria sob o bombardeio de militares golpistas ao Palácio de La Moneda. Triste 11 de setembro. O general Augusto Pinochet usurpou o poder e dele só saiu em 1990. Reinaram no Chile a repressão, a tortura e o assassinato de quem se opunha à ditadura. Da crise nasceram execuções e chacinas. Não se sabe ao certo quantos chilenos foram executados no Estádio Nacional, nas primeiras horas após o golpe. Lá esteve o poeta e guitarrista Victor Jara, imortalizado em clássicos como “Te recuerdo amanda”. Militares deceparam-lhe as mãos. Ele sangrou até morrer.
Fechemos mais o foco na América do Sul, pronto, retornamos agora ao Brasil. E voltamos para falar de uma crise econômica, política e social que se traduziu na maior mixórdia e no maior mistifório que, até então, jamais tinham sido vistos no País. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, o seu vice, João Goulart (expoente do getulismo), foi empossado na Presidência da República, contrariando todas as manobras contrárias de civis e militares que o consideravam um líder comunista – na verdade, só tomou posse porque o presidencialismo foi transformado em parlamentarismo, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro. O regime presidencial foi retomado em 1963 quando 80% dos brasileiros que foram às urnas em um plebiscito disseram “sim” a Jango na função constitucional de presidente. Daí para frente, ao que se assistiu foram crises e mais crises econômicas e sociais, intolerância em todos os setores da sociedade, radicalismo elevado à última potência, greves de funcionários de diversos setores, locautes bem disfarçados e locautes mal maquiados. Era o caos. Jango queria instaurar uma espécie de república sindicalista e ingenuamente sonhara que os sindicatos se entenderiam.
Na noite de 13 de março de 1964 ele discursou (ao lado da jovem, bonita e elegante primeira-dama Maria Thereza Fontella) na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Lançou as chamadas “reformas de base” e foi aplaudido e vaiado por cerca de 200 mil pessoas. Carlos Lacerda era o seu mais feroz adversário. Juca Chaves compôs então uma música: “Dona Maria Thereza/ diga a seu João Goulart/ lugar de feijão é na mesa/ Lacerda é noutro lugar”(não é nem preciso dizer com que palavra chula rima Lacerda). Dezoito dias depois, um golpe militar, com amplo apoio de lideranças civis, apeou Jango do poder. O Brasil mergulhou, assim, nas trevas da ditadura fardada, por 21 anos, com censura à imprensa e a suspensão de habeas corpus e das garantias fundamentais. Instalaram-se os porões de tortura e, neles, oponentes políticos eram mortos como se fossem moscas. Olhos foram vazados, corpos foram jogados ao mar, cadáveres foram sepultados clandestinamente.
Pois bem, como afirmamos, crises radicais e extremadas, que começam agudas mas cronificam, frequentemente acabam mal. Para aqueles que, nos dias atuais, ainda acham que greves são inegociáveis, e também para aqueles que por ignorância ou má-fé pregam o retorno de uma ditadura, espera-se que todas as crises aqui expostas sirvam para fazer pensar. E que tais aventureiros mudem de ideia – ou seja, coloquem-nas no lugar.
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