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Internações psiquiátricas e a tortura na ditadura militar

31 de agosto de 2010 - 10h57 

Internações psiquiátricas e a tortura na ditadura militar


Os primeiros anos do processo de retomada da soberania popular no país incluíram a luta incansável e, em muitos casos, interminável pela localização de milhares de presos políticos torturados durante o regime ditatorial.

As histórias relatadas pelos opositores do regime militar, após a Lei da Anistia (de agosto de 1979), davam o tom da crueldade transformada na tortura e perseguição política de centenas de jovens brasileiros.

Em meio ao cenário de resgate da cidadania, Guedes conta que reencontrou o cunhado e ex-líder do movimento estudantil da região do triângulo mineiro, Cirilo Barbosa, trancafiado em um manicômio – a 75km do Rio de Janeiro.

Cirilo havia ficado preso por quase duas décadas no maior hospital psiquiátrico do país, a Casa Doutor Eiras, em Paracambi – conhecida também como Fazenda de Paracambi.

“Ele foi um preso político assim como aconteceu com milhares de pessoas. Uma grande maioria dos hospitalizados, durante a ditadura militar, na realidade eram presos políticos torturados. Muitos foram assassinados” explicou.

O médico afirma que uma prática constante dos regimes autoritários é o aprisionamento de pessoas contrárias àquela forma de poder em instituições psiquiátricas.

“O Cirilo era um poeta, foi líder estudantil, presidente da entidade secundarista de Araguari – no triângulo mineiro – e assumia a condição de ghost-writer (escritor fantasma) de diversos políticos da região. Vindo de uma família comunista, era muito estigmatizado”.

Apesar da perseguição política, o médico conta que o cunhado começou a apresentar sintomas de esquizofrenia anteriores à internação. A condição de portador de transtorno mental serviu apenas como argumento para a prisão de Cirilo.

Uma prisão camuflada de hospital

Com aproximadamente 450 mil metros quadrados, a Casa de Saúde Doutor Eiras era conhecida como um verdadeiro depósito de gente. “Paracambi era uma grande fazenda e os pacientes viviam soltos como animais lá dentro. Eles comiam com as mãos e muitas vezes como cães, apenas com as bocas. Eram completamente isolados por cercas eletrificadas. Aquilo era uma prisão e muitos eram presos políticos”.

Guedes lembra que além do cárcere físico, o químico era ainda mais terrível. “Os pacientes eram transformados em cobaias e tratados como ratinhos. Hoje os efeitos colaterais desses medicamentos são muito mais conhecidos do que naquela época e trabalhados com muito mais ciência”.

Os efeitos dos longos anos de tortura deixaram sequelas irreversíveis e agravaram o estado de saúde de Cirilo. “Ele passou por repetidas sessões de eletrochoques e choques químicos. Atualmente ele é vítima principalmente do massacre que a antiga estrutura psiquiátrica provocou. Como muitos ex-presos políticos, Cirilo tem sequelas da tortura e dos tratamentos equivocados aos quais foi submetido”.

A liberdade

Desde que foi resgatado pela família, ainda no início da década de 1980, Cirilo vive praticamente como um cidadão comum, com a diferença de ter que seguir o tratamento médico. Atualmente ele vive em Juiz de Fora com o cunhado e a irmã, Nair Barbosa Guedes.

Mesmo com o diagnóstico de esquizofrenia, Cirilo tem todas as condições de realizar o tratamento fora dos hospitais. “Você pode tratar um esquizofrênico, sem nenhum problema desospitalizado. O que você não consegue é tratar um psicopata criminoso tão facilmente sem internação. As situações são muito diferentes. Há casos que necessitam de estruturas muito mais competentes”.

Segundo o médico, desde a desospitalização, Cirilo nunca mais necessitou de internações psiquiátricas. “A grande maioria das pessoas desospitalizadas não voltam à condição de internados porque na verdade nunca necessitaram de internação. A maioria era internada por causa do preconceito, e não porque realmente necessitavam de isolamento”.

Além da atenção da família, Guedes fala que o clima de uma cidade de interior contribui para a evolução de Cirilo que pode transitar com liberdade pelas ruas da cidade.

“Ele anda pela cidade toda, junto com os profissionais do Caps (Centro de Atendimento Psicossocial) e sozinho. Dizer que ele não sofre com a doença é ‘dourar a pílula’. É claro que sofre, como todos nós sofremos, mas ao mesmo tempo ele vive com uma felicidade extrema com a liberdade”, explica Guedes.

No caminho da desospitalização

Além da experiência familiar, o médico conta que durante os anos de exílio na França trabalhou diretamente com pacientes internados em duas instituições psiquiátricas.

Ele lembra que as condições de tratamento eram similares às dos presos políticos no Brasil. “Era uma coisa impressionante. Alguns profissionais começaram um movimento e eu participei deste processo”.

Guedes relata uma situação que marcou sua experiência na França e que pode ser usada para uma argumentação favorável à desospitalização. Ele conta que um dia estava chegando ao trabalho e de repente ouviu um forte estrondo vindo de uma das celas dos pacientes.

Quando se aproximou, percebeu que vários funcionários da instituição haviam sido dominados por um interno que estava “tomado por uma força hercúlea e uma grande revolta”. Guedes, então estudante de medicina, deu uma ordem para que todos se levantassem e saiu caminhando e conversando com o paciente pelas alamedas do hospital.

“Naquele momento eu o libertei. Ele estava preso, oprimido, então se tornou uma fera. Todo ser tem uma fera dentro de si. Quando ele é encarcerado, torturado, no caso dos pacientes psiquiátricos com eletrochoques, choques químicos, desaparece o ser humano e brota o animal. Bastou uma postura de diálogo para que tudo mudasse. Este paciente nunca mais voltou para o cárcere e terminou desospitalizado, com uma convivência normal com a família”.

Preconceito

O médico – que ressalta não ter especialidade em psiquiatria – afirma que o preconceito contra a loucura é uma das maiores barreiras para a desospitalização. Ele diz que durante o período que liderou o pioneiro programa de DST/Aids na cidade de Santos vivenciou diretamente o preconceito contra as duas doenças.

“Em Santos, os Naps (Núcleos de Assistência Psicossocial) e Craids (Centros de Referência em Aids) – outra doença com elevado nível de preconceito – eram muito próximas porque ambas eram muito estigmatizadas”.

Ele fala que o Programa de Aids no Brasil – reconhecido como um dos melhores do mundo – foi implantado à imagem e semelhança do programa desenvolvido em Santos, durante a gestão do médico sanitarista David Capistrano Filho. “Nós respeitávamos o paciente HIV positivo, oferecíamos condições de tratamento e revertemos uma realidade de pânico. Quando você não conhece alguma coisa, aquilo se torna um monstro, e esse também é o caso da saúde mental”.

Guedes explica que ao contrário do vírus HIV, que é um agente externo que se instala no corpo, a loucura é um agente interno que está presente em todo ser humano. “Todo ser humano é – pelo menos em algum momento – recipiente de algum estado de loucura. “Felizmente, o que predomina na grande maioria das situações é a sanidade”.

Lei da Reforma Psiquiátrica

O médico se define como um defensor da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/2001). “A sociedade precisa avançar. A revolução não é importante apenas pelas questões sociais, mas também pelas questões internas de todo ser”.

Ele pondera que no começo da reforma no país, muitas famílias receberam os pacientes sem nenhuma condição de tratá-los, mas diz que este e outros desafios deverão ser superados. “Eu sei que o Temporão (ministro da Saúde José Gomes Temporão), que é um grande companheiro da luta anti-manicomial, está realizando movimentos importantes para que isso chegue na ponta da linha”.

Guedes completa que apesar das dificuldades o retorno do antigo modelo de instituições psiquiátricas é um retrocesso. “Precisamos transformar teorias em práticas, o que significa novos investimentos. É muito mais simples ter uma fazenda como a de Paracambi e jogar todo mundo lá dentro e ir torturando e matando todos aos poucos. Defendo a reforma psiquiátrica no Brasil com conhecimento de causa, porque vivi essa experiência dentro da minha própria casa”.
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