Baltasar Garzón participou do Congresso Internacional de Direitos Humanos, em Florianópolis, e conversou com o DC sobre comissões da verdade, WikiLeaks e América Latina
Em 1998, o juiz espanhol Baltasar Garzón Real causou repercussão internacional ao expedir um mandado de prisão e extradição ao ex-ditador chileno Augusto Pinochet, que se recuperava em uma clínica médica de Londres após uma operação na hérnia. Foi uma decisão incomum no direito internacional, que causou um mal-estar entre os países envolvidos.
Pinochet não foi enviado para a Espanha para ser julgado por crimes contra cidadãos espanhóis no Chile, como queria Garzón, mas passou 503 dias preso em Londres antes de ser extraditado ao Chile, onde morreu em 2006.
Conhecido pelos espanhóis como "juiz-estrela", é um dos maiores estudiosos da atualidade sobre temas como crimes contra a humanidade, especialmente sob a ótica jurídica. Atua na Audiência Nacional, o tribunal penal de máxima instância da Espanha.
Em 2002, pediu permissão para investigar o antigo secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, pela suposta conexão com a Operação Condor - uma aliança entre EUA Unidos e governos militares da América Latina nos anos 1970, que fortaleceu ditaduras em países como Brasil, Chile, Uruguai e Argentina.
Condenou militares torturadores argentinos, investigou crimes na ditadura do general espanhol Francisco Franco, fez duros ataques ao governo dos EUA por prisões ilegais na base de Guantánamo. Em 2001, solicitou permissão para processar o então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi por sonegação de impostos.
Desde 2012, a equipe técnica de Garzón lidera a defesa do australiano Julian Assange, fundador do WikiLeaks, que se envolveu em um imbróglio internacional após divulgar documentos confidenciais e vídeos exclusivos das forças armadas dos EUA.
Baltasar Garzón esteve em Florianópolis e conversou com o Diário Catarinense durante o I Congresso Internacional de Direitos Humanos, evento que reuniu especialistas de várias partes do mundo na última semana.
Ele revelou amplo interesse pela política latino-americana e fez graves críticas às chamadas "auto anistias", promulgadas pelos próprios militares em países que passaram pelo processo de redemocratização nas últimas décadas.
Confira a entrevista:
Diário Catarinense - A revisão da Lei da Anistia (nº 6.683, de 1979), que perdoa crimes políticos cometidos tanto pelo governo militar quanto pelos seus opositores, recentemente se tornou um tema em debate no Brasil. É necessário fazê-la?
Garzón - Uma lei de anistia não pode favorecer aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Nesse sentido, creio que uma lei pode ser considerada boa quando dirigida àquelas pessoas que foram vítimas da repressão e sofreram cárcere por delitos de opinião, os chamados "crimes políticos". Não há nenhum sentido quando ela trata de proteger os próprios criadores da lei.
Este tipo de problema acontece onde as leis de anistia são criadas imediatamente após o fim da ditadura [como é o caso do Brasil], muitas vezes pelos próprios regimes que cometeram crimes. O que está claro é que a democracia não se consolida senão através da "revogação" destas leis de anistia, ou por mudanças que as façam privilegiar as vítimas, e não os torturadores.
DC - O Brasil criou sua Comissão da Verdade cerca de vinte anos depois do Chile, e quase trinta após a Argentina. Por quê? Como está o Brasil no mapa das comissões da verdade?
Garzón - O Brasil se encontra em uma situação de absoluta estabilidade democrática, o que o diferencia de alguns países em que a Comissão da Verdade surgiu imediatamente após o fim da ditadura. A forma que a Comissão da Verdade brasileira funciona está focada na justiça restaurativa, e não na retributiva - exclui-se a ação da Justiça Penal por momento, e concentra-se na busca pela verdade e na reparação às vítimas.
O que deve ocorrer, e já está ocorrendo, é que em algum momento estas conclusões se transformarão em elementos que responsabilizarão os culpados pelos seus crimes. Em países como o Chile, as comissão da verdade foram criadas a partir de um conjunto de elementos que logo foram vistos como um "elemento probatório" do processo de redemocratização e serviram para uma investigação imediata de crimes cometidos durante estes períodos.
DC - Em setembro, um tenente do Exército que atuou na Guerrilha do Araguaia (1967-1974) se recusou a comparecer a uma audiência da Comissão da Verdade e afirmou que não colabora "com o inimigo". Como fazer a apuração dos fatos com acusados que não aceitam a validade destas comissões?
Garzón - Este é o exemplo de como eles deveriam pedir desculpas à sociedade pelo que fizeram, ao subverter a ordem constitucional e violar os direitos humanos de tal maneira, mas não o assumem essa posição. O comparecimento, em minha opinião, deve ser obrigatório. A falta de cooperação é bastante comum também em outros países e, no meu ponto de vista, deveria transformar-se em uma realidade penal para quem tomou a decisão de não contribuir na reparação às vítimas.
DC - Mas uma parcela da sociedade, inclusive no Brasil, considera as comissões da verdade injustas...
Garzón - Um país que não assume a verdade corre grave risco de, em algum momento, cair no mesmo lugar. Não se deve perseguir a comissão como fez o indivíduo que a tratou por "inimigos", pois vivemos em uma democracia e os cidadãos têm direito a saberem a verdade.
É evidente que diversas pessoas apoiam a impunidade de indivíduos que não respeitaram os direitos humanos, e não acho que isso classifique tais pessoas como "más" ou "boas". Creio que trata-se de falta de informação. Quando se cria algo como a Comissão da Verdade, é muito importante explicar às pessoas, da forma mais pedagógica e clara possível, o que se pretende com ela.
DC - Sua equipe defende o fundador do WikiLeaks, Julian Assange. Como se deu essa aproximação? Por quê você topou assumir um caso tão complexo, de forma voluntária?Garzón - No caso de Assange, fica claro que há uma perseguição por parte dos EUA em virtude da divulgação de informações a respeito de aspectos da política exterior americana - incluindo algumas que evidenciavam atividades claramente ilícitas, como na Guerra do Iraque ou em processos relacionados à corrupção.
Como consequência do exercício da liberdade de expressão e do livre acesso à informação, gerou-se uma perseguição contra os responsáveis pela divulgação dos dados. É uma situação claramente contraditória aos direitos de um cidadão.
Ele me procurou em 2012 através de amigos em comum e por jornalistas. Me informaram que ele queria falar comigo, e que queria que eu cuidasse do caso. Respondi que precisávamos conversar, e o fizemos na embaixada do Equador em Londres [onde Assange ficou mais de dois anos para evitar uma extradição]. Fiz apenas duas exigências, que foi atuar com independência e gratuitamente, sem remuneração alguma.
Estamos trabalhando bem desde então, com uma grande equipe internacional de advogados tentando ajudá-lo a enfrentar tal injustiça.
Pinochet não foi enviado para a Espanha para ser julgado por crimes contra cidadãos espanhóis no Chile, como queria Garzón, mas passou 503 dias preso em Londres antes de ser extraditado ao Chile, onde morreu em 2006.
Conhecido pelos espanhóis como "juiz-estrela", é um dos maiores estudiosos da atualidade sobre temas como crimes contra a humanidade, especialmente sob a ótica jurídica. Atua na Audiência Nacional, o tribunal penal de máxima instância da Espanha.
Em 2002, pediu permissão para investigar o antigo secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, pela suposta conexão com a Operação Condor - uma aliança entre EUA Unidos e governos militares da América Latina nos anos 1970, que fortaleceu ditaduras em países como Brasil, Chile, Uruguai e Argentina.
Condenou militares torturadores argentinos, investigou crimes na ditadura do general espanhol Francisco Franco, fez duros ataques ao governo dos EUA por prisões ilegais na base de Guantánamo. Em 2001, solicitou permissão para processar o então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi por sonegação de impostos.
Desde 2012, a equipe técnica de Garzón lidera a defesa do australiano Julian Assange, fundador do WikiLeaks, que se envolveu em um imbróglio internacional após divulgar documentos confidenciais e vídeos exclusivos das forças armadas dos EUA.
Baltasar Garzón esteve em Florianópolis e conversou com o Diário Catarinense durante o I Congresso Internacional de Direitos Humanos, evento que reuniu especialistas de várias partes do mundo na última semana.
Ele revelou amplo interesse pela política latino-americana e fez graves críticas às chamadas "auto anistias", promulgadas pelos próprios militares em países que passaram pelo processo de redemocratização nas últimas décadas.
Confira a entrevista:
Diário Catarinense - A revisão da Lei da Anistia (nº 6.683, de 1979), que perdoa crimes políticos cometidos tanto pelo governo militar quanto pelos seus opositores, recentemente se tornou um tema em debate no Brasil. É necessário fazê-la?
Garzón - Uma lei de anistia não pode favorecer aqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Nesse sentido, creio que uma lei pode ser considerada boa quando dirigida àquelas pessoas que foram vítimas da repressão e sofreram cárcere por delitos de opinião, os chamados "crimes políticos". Não há nenhum sentido quando ela trata de proteger os próprios criadores da lei.
Este tipo de problema acontece onde as leis de anistia são criadas imediatamente após o fim da ditadura [como é o caso do Brasil], muitas vezes pelos próprios regimes que cometeram crimes. O que está claro é que a democracia não se consolida senão através da "revogação" destas leis de anistia, ou por mudanças que as façam privilegiar as vítimas, e não os torturadores.
DC - O Brasil criou sua Comissão da Verdade cerca de vinte anos depois do Chile, e quase trinta após a Argentina. Por quê? Como está o Brasil no mapa das comissões da verdade?
Garzón - O Brasil se encontra em uma situação de absoluta estabilidade democrática, o que o diferencia de alguns países em que a Comissão da Verdade surgiu imediatamente após o fim da ditadura. A forma que a Comissão da Verdade brasileira funciona está focada na justiça restaurativa, e não na retributiva - exclui-se a ação da Justiça Penal por momento, e concentra-se na busca pela verdade e na reparação às vítimas.
O que deve ocorrer, e já está ocorrendo, é que em algum momento estas conclusões se transformarão em elementos que responsabilizarão os culpados pelos seus crimes. Em países como o Chile, as comissão da verdade foram criadas a partir de um conjunto de elementos que logo foram vistos como um "elemento probatório" do processo de redemocratização e serviram para uma investigação imediata de crimes cometidos durante estes períodos.
DC - Em setembro, um tenente do Exército que atuou na Guerrilha do Araguaia (1967-1974) se recusou a comparecer a uma audiência da Comissão da Verdade e afirmou que não colabora "com o inimigo". Como fazer a apuração dos fatos com acusados que não aceitam a validade destas comissões?
Garzón - Este é o exemplo de como eles deveriam pedir desculpas à sociedade pelo que fizeram, ao subverter a ordem constitucional e violar os direitos humanos de tal maneira, mas não o assumem essa posição. O comparecimento, em minha opinião, deve ser obrigatório. A falta de cooperação é bastante comum também em outros países e, no meu ponto de vista, deveria transformar-se em uma realidade penal para quem tomou a decisão de não contribuir na reparação às vítimas.
DC - Mas uma parcela da sociedade, inclusive no Brasil, considera as comissões da verdade injustas...
Garzón - Um país que não assume a verdade corre grave risco de, em algum momento, cair no mesmo lugar. Não se deve perseguir a comissão como fez o indivíduo que a tratou por "inimigos", pois vivemos em uma democracia e os cidadãos têm direito a saberem a verdade.
É evidente que diversas pessoas apoiam a impunidade de indivíduos que não respeitaram os direitos humanos, e não acho que isso classifique tais pessoas como "más" ou "boas". Creio que trata-se de falta de informação. Quando se cria algo como a Comissão da Verdade, é muito importante explicar às pessoas, da forma mais pedagógica e clara possível, o que se pretende com ela.
DC - Sua equipe defende o fundador do WikiLeaks, Julian Assange. Como se deu essa aproximação? Por quê você topou assumir um caso tão complexo, de forma voluntária?Garzón - No caso de Assange, fica claro que há uma perseguição por parte dos EUA em virtude da divulgação de informações a respeito de aspectos da política exterior americana - incluindo algumas que evidenciavam atividades claramente ilícitas, como na Guerra do Iraque ou em processos relacionados à corrupção.
Como consequência do exercício da liberdade de expressão e do livre acesso à informação, gerou-se uma perseguição contra os responsáveis pela divulgação dos dados. É uma situação claramente contraditória aos direitos de um cidadão.
Ele me procurou em 2012 através de amigos em comum e por jornalistas. Me informaram que ele queria falar comigo, e que queria que eu cuidasse do caso. Respondi que precisávamos conversar, e o fizemos na embaixada do Equador em Londres [onde Assange ficou mais de dois anos para evitar uma extradição]. Fiz apenas duas exigências, que foi atuar com independência e gratuitamente, sem remuneração alguma.
Estamos trabalhando bem desde então, com uma grande equipe internacional de advogados tentando ajudá-lo a enfrentar tal injustiça.
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