Muitos deputados federais dedicaram seus votos, neste domingo (17), durante a votação da abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a Deus e à família. Mas um deles, o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), fez uma dedicatória diferente:
“Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de [Duque de] Caxias, pelas Forças Armadas, o meu voto é sim”
O coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra comandou, entre 1971 e 1974, o Doi-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, regime de exceção que comandou o país de 1964 a 1985.
Ustra - morto em outubro de 2015, aos 83 anos, em decorrência de um câncer e de problemas cardíacos - havia sido denunciado dois meses antes pela Procuradoria-Geral da República pela tortura e morte do militante político Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PC do B (Partido Comunista do Brasil). Mas o Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou a denúncia com base na Lei de Anistia.
Danielli foi capturado por agentes da ditadura no dia 28 de dezembro de 1972, no bairro Vila Mariana, em São Paulo. Levado ao Doi-Codi passou três dias sendo torturado por três equipes que se revezavam. Ele não resistiu aos ferimentos, morreu nas dependências do órgão comandado por Ustra e terminou enterrado pelo Exército como indigente numa vala comum do Cemitério de Perus. A versão do governo militar, à época, foi de que Danielli havia morrido numa troca de tiros.
Apesar da denúncia envolvendo a morte de Danielli e das outras 60 mortes ocorridas no Doi-Codi entre 1970 e 1974, Ustra nunca sofreu sanção penal. A justificativa apresentada pelo juiz federal responsável pelo caso é de que a Lei de Anistia, de 1979, produziu uma “pacificação social” em torno do assunto não pode ser revista.
“Não se trata, aqui, de acobertar atos terríveis cometidos no passado, mas, sim, de pontuar que a pacificação social se dá, por vezes, a duras penas, nem que para isso haja o custo, elevado, da sensação de 'impunidade' àqueles que sofreram na própria carne os desmandos da opressão”
Em 2008, uma decisão da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, deu ganho de causa à ação civil declaratória movida pela militante de esquerda Maria Amélia de Almeida Teles, torturada por Ustra. A sentença não tem efeito penal, por causa da Lei de Anistia, mas reconhece Ustra como “torturador”. O coronel recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo, mas a 1ª Câmara de Direito Privado manteve a decisão.
Bolsonaro se referiu a Ustra como “o pavor de Dilma” porque o coronel chefiou um dos principais órgãos de repressão de um regime que submeteu a presidente a 22 dias de tortura, em janeiro de 1970. A presidente pertencia à organização guerrilheira VAR-Palmares (Vanguarda Popular Revolucionária), que recorria a sequestros e roubos para financiar a luta armada contra o governo militar.
O deputado é cotado para a Presidência da República com percentual que varia entre 6% e 8%, de acordo com pesquisa Datafolha. No extrato da população cuja renda é superior a 10 salários mínimos (5% da população brasileira), entretanto, Bolsonaro tem 20% das intenções de voto.
Questionamentos à Lei de Anistia
A Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia) foi adotada por meio de um acordo entre opositores do regime e o governo militar, então comandado pelo general João Baptista Figueiredo. Por ela, dissidentes exilados no exterior voltariam ao Brasil sem constrangimentos legais, mesmo se envolvidos com a luta armada. E os militares também seriam eximidos de responsabilidades. O acordo anistiava precisamente “crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Sua adoção foi criticada, posteriormente, por três razões principais:
Críticas
AUTO-PERDÃO
É comum que governos violadores e regimes autoritários aprovem leis para proteger seus próprios agentes. A auto-anistia é, entretanto, um recurso criticado pela ONU.
CRIMES IMPRESCRITÍVEIS
Graves violações de direitos humanos podem ser classificadas em tribunais internacionais como crimes de lesa humanidade e, portanto, não são passíveis de perdão legal.
CRIME CONTINUADO
A Justiça de Países como o Chile e a Argentina diz que, enquanto um corpo de desaparecido político não reaparece, continua em andamento o crime de desaparição forçada ou de ocultação de cadáver. Como o crime está em andamento no tempo presente, escapa às leis de anistia.
Pacificação é questionável
O fato de Bolsonaro evocar o nome de Ustra num momento simbólico como a votação de um processo de impeachment, transmitido ao vivo em todo o país, e as reações que isso provocou relativizam a ideia de que a Lei de Anistia tenha “pacificado” a sociedade. O tema continua sensível.
O advogado Pedro Dallari, presidente da Comissão Nacional da Verdade, instituída em maio de 2012 para apurar graves crimes de direitos humanos entre 1946 e 1985, disse ao Nexo que “é evidentemente lamentável o discurso de Bolsonaro, pois o relatório da comissão já mostrou cabalmente que Ustra e outros militares estiveram envolvidos em torturas e outras graves violações”. Para Dallari, “essa teoria negacionista só reforça a necessidade de que se faça justiça”.
Ele ressalva, entretanto, que “é preciso dar a devida dimensão ao discurso do deputado”. Para o presidente da comissão, “não há setores relevantes da sociedade que defendam a ditadura, mas apenas bolsões caricatos e pouco expressivos”.
Dallari afirma que, enquanto as próprias Forças Armadas não se pronunciarem definitivamente sobre os crimes cometidos na ditadura, correrão o risco de serem sempre estigmatizadas.
ESTAVA ERRADO: A primeira versão desse texto dizia que o coronel do Exército Brilhante Ustra era "acusado de tortura". Na verdade, uma decisão de outubro de 2008, proferida pelo juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo, deu ganho de causa à ação civil declaratória movida pela militante de esquerda Maria Amélia de Almeida Teles, torturada por Ustra. A sentença não tem efeito penal, por causa da Lei de Anistia, mas reconhece Ustra como "torturador". O coronel recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo, mas a 1ª Câmara de Direito Privado manteve a decisão. A informação foi corrigida às 14h10 de 19 de abril de 2016.
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