Foto: Clarence Williams/Los Angeles Times via Getty Images
Infiltrados pela polícia participam de protestos para torná-los violentos e ajudar a moldar a opinião pública contra os manifestantes e suas demandas.
QUANDO Harry, George, Tom e Joe chegaram no galpão que os manifestantes haviam alugado no entorno da cidade de Filadélfia, os organizadores logo ficaram desconfiados. Os homens se identificavam como “carpinteiros do sindicato” da região de Scranton, na Pensilvânia, especializados em construir palanques – exatamente o tipo de ajuda de que os manifestantes precisavam. Eles estavam se preparando para a Convenção Nacional do Partido Republicano do ano 2000, em que o partido iria indicar George W. Bush como candidato. Do outro lado do país, organizadores aliados planejavam manifestações semelhantes para a Convenção Nacional do Partido Democrata, em Los Angeles.
À época, uma das marcas registradas do movimento por justiça social eram os bonecos. Os organizadores tinham realizado com sucesso manifestações em Seattle, em novembro de 1999, contra a Organização Mundial do Comércio, e em Washington, D.C., em abril de 2000, contra o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, e conseguiram influenciar as políticas da globalização. Enormes bonecos de papel machê, levados pelas ruas em carros individuais, davam um ar festivo que ensejava uma cobertura favorável da mídia e contrastava a narrativa das autoridades de que os manifestantes eram niilistas interessados em depredar propriedade privada.
Os quatro carpinteiros eram habilidosos com o martelo, mas vários sinais de que podiam ser na verdade infiltrados deixavam os manifestantes em alerta. Durante as conversas, “eles não eram muito politizados ou bem informados”, recorda-se Kris Hermes, um organizador, no livro “Crashing the Party” [“Invadindo a Festa”, sem tradução em português], onde resgata suas memórias do incidente. Eles eram mais velhos e mais musculosos que a maior parte dos manifestantes, escreve ele, e insistiam em tomar cerveja enquanto trabalhavam, embora os organizadores tivessem proibido bebidas alcoólicas no galpão. Nas reuniões e nos debates, eles afirmavam o direito dos manifestantes de depredar propriedade privada e resistir fisicamente às prisões. A intencional falta de hierarquia do movimento deixava pouco espaço para que os organizadores tomassem medidas para sanar suas suspeitas de infiltração, embora estivessem ficando mais hábeis em identificar esse tipo de agente provocador.
Em 1º de agosto, o primeiro dia da convenção do Partido Republicano, policiais cercaram o galpão, conhecido como “Ministério da Propaganda com Bonecos” (“Ministry of Puppetganda”, um trocadilho irônico com o órgão nazista), realizaram detenções em massa, e confiscaram bonecos, carros, placas, e outros materiais que seriam usados nas manifestações. A polícia mentiu, e declarou publicamente que os organizadores vinham planejando manifestações violentas, além de insinuar que haveria materiais de confecção de bombas escondidos no galpão. Essa detenção antecedeu outras prisões em massa de líderes de protestos ao longo da semana, seguidas de espancamentos dentro da cadeia e até de uma fiança arbitrada em 1 milhão de dólares.
Quando o mandato para a busca no galpão foi revelado, finalmente se confirmou que Harry, George, Tom e Joe eram policiais estaduais que tinham sido designados para se infiltrarem no grupo e criarem um pretexto para a incursão. Todas as denúncias contra os bonequeiros acabaram sendo arquivadas, e a saga viria a custar milhões de dólares à cidade em acordos judiciais indenizatórios (boa parte da atuação jurídica foi capitaneada pelo advogado radical Larry Krasner, que hoje é promotor público no distrito da Filadélfia).
É um fato histórico, como ilustrado por esse episódio, que as forças de segurança frequentemente se infiltram em movimentos políticos progressistas usando agentes provocadores para instigar as pessoas a se envolverem em violência. Também é um fato histórico que, com menos frequência, os próprios provocadores cometem atos de violência.
A imprensa dá pouca atenção a esses infiltrados, por uma série de razões. Por um lado, as corporações de mídia nunca se mostraram muito interessadas em questionar a ação dos governos diante de insurreições ou grandes manifestações, a não ser que essa ação passe demais dos limites ou se dirija aos próprios agentes das mídias. Além disso, a questão dos provocadores também envolve a perspectiva dos manifestantes e organizadores dos movimentos, pois pode levar a uma paranoia que prejudica a solidariedade e a mobilização. Essa questão normalmente se mistura com o tema dos “agitadores externos“, e é usada pelas autoridades, ou por outros oponentes dos manifestantes, para deslegitimar a indignação que está sendo demonstrada – isso dá motivo a alguns manifestantes ou a seus apoiadores para minimizar a existência dos infiltrados.
A intensidade da discussão sobre protestos que se tornam violentos, bem como as consequências extremas de ficar do lado errado da opinião pública, deixam pouco espaço para um debate com mais nuances. Se esse diálogo fosse possível, seria simples discutir a diferença entre a indignação de uma multidão e as ações que ela acaba praticando. Uma multidão indignada que permanece não violenta e não se envolve em depredação de propriedade privada não é menos legitimamente indignada do que outra que o faça. A única diferença, frequentemente, é se essa indignação é desencadeada e estimulada, e como.
Nos protestos que aconteceram semana passada pelos EUA, quem estava claramente estimulando a violência não era um manifestante, nem um infiltrado de direita, mas a própria polícia. A cada manifestação, as pessoas puderam observar que os saques e a depredação só começavam depois que a polícia passava a atacar e agredir a multidão, ou a atirar gás lacrimogêneo ou balas de borracha contra ela. Em outros casos, bastou a ação de um manifestante para incendiar a multidão. Diante da natureza caótica dos protestos, é possível que todas as pessoas sendo responsabilizadas pela depredação tenham de fato desempenhado algum papel. Porém, à medida que as insurreições continuam, com o presidente Donald Trump convocando métodos cada vez mais violentos de repressão, é importante ter em mente o possível papel dos policiais infiltrados nos protestos.
EM 2008, Franceso Cossiga, uma das figuras políticas mais importantes na Itália pós-Segunda Guerra, permitiu um vislumbre da visão de mundo das pessoas no comando de governos que enfrentam protestos de grande escala.
Cossiga foi primeiro-ministro, e depois presidente da Itália. Antes disso, no final dos anos 70, esteve à frente do Ministério do Interior. Ao longo desse período, ficou conhecido pela brutalidade com que reprimiu as manifestações estudantis de esquerda. Eis como o New York Times noticiou a situação em 1977: “Extremistas entre os estudantes provocaram o caos em várias cidades italianas com uma onda de tiroteios e depredação”.
Quando o governo de Silvio Berlusconi enfrentou protestos semelhantes, Cossiga o encorajou a se valer das suas técnicas:
[Eles] deveriam fazer o que fiz quando fui ministro do interior. (…) Retirar a polícia das ruas e das universidades, infiltrar o movimento com agentes provocadores preparados para tudo [grifo nosso], e deixar os manifestantes destruírem lojas, queimarem carros e colocarem fogo nas cidades por dez dias. Então, encorajada pelo apoio popular (…) a polícia não deveria ter compaixão, e mandar todos para o hospital. Não apenas prendê-los, porque os promotores iriam libertá-los logo em seguida, mas espancar todos eles e os professores que os encorajam.
O NYT aparentemente mencionou a possibilidade de que infiltrados do governo estivessem por trás de parte da violência, mas apenas uma vez – e não como um fato, mas como acusação de “partidos e veículos de esquerda”.
Cossiga foi professor de Direito Constitucional e era da ala centrista do Partido Democrata Cristão. Quando se tornou primeiro-ministro, em 1979, durante a presidência de Jimmy Carter, o embaixador dos EUA na Itália considerou isso um “excelente progresso“, e Cossiga manteve estreito relacionamento com o país. Não há uma linha direta entre Cossiga e os atuais protestos nos EUA. Mas o exemplo dele demonstra que não é nenhuma teoria conspiratória delirante acreditar que o uso de agentes infiltrados seja legitimado por figuras públicas respeitáveis – mesmo as que se mostram mais circunspectas sobre o assunto.
O MAIS BEM documentado uso de infiltrados pelo governo dos EUA aconteceu durante o Programa de Contrainteligência do FBI, o COINTELPRO, entre 1956 e 1971. Esses documentos estão disponíveis porque um grupo de cidadãos invadiu um escritório do FBI na Pensilvânia – por coincidência, bem perto do galpão invadido pela polícia em 2000 – e roubou os arquivos, que depois foram repassados para a imprensa. Isso, por sua vez, levou a uma investigação parlamentar, que revelou ainda mais informações.
Em um famoso exemplo de maio de 1970, um informante que agia em nome da polícia de Tuscaloosa e do FBI queimou um prédio da Universidade do Alabama durante protestos contra o massacre cometido por forças policiais na Universidade Estadual de Kent. A polícia declarou que os manifestantes se reunindo de forma ilícita e prendeu 150 deles.
Em outro caso conhecido, um homem apelidado de “Tommy, o Viajante” visitou diversas faculdades do Estado de Nova York, apresentando-se como membro radical da organização Estudantes por uma Sociedade Democrática. Ele encorajava seus acólitos a sequestrarem parlamentares e oferecia treinamento na fabricação de coquetéis Molotov. Dois alunos do Hobart College levaram a cabo suas sugestões e bombardearam o prédio da ROTC do campus. Em algum momento, finalmente se descobriu que seu nome completo era Tommy Tongyai, e que ele trabalhava tanto para a polícia local, quanto para o FBI.
A lista a partir daí é longa. Um membro da John Birch Society, uma organização política de extrema-direita, que se tornou informante do FBI, ajudou a montar bombas-relógio e colocá-las em um caminhão do Exército. Um informante do FBI na organização política radical Weather Underground participou do atentado à bomba em uma escola pública de Cincinnati. Um importante membro da organização Veteranos do Vietnã Contra a Guerra – que também era informante do FBI – pressionava por “tiros e bombas”, e sua instigação aparentemente levou mesmo a um atentado a bomba e a uma ameaça de atentado. Um informante do FBI em Seattle levou de carro um jovem negro chamado Larry Ward até o escritório de uma imobiliária que praticava discriminação de moradias, e o encorajou a colocar uma bomba lá; a polícia estava aguardando e matou Ward. Treze Panteras Negras foram acusados de planejar explodir a Estátua da Liberdade depois de receberem 30 bananas de dinamite de um informante do FBI. Quando 28 pessoas invadiram um prédio público federal para destruir arquivos em 1971, um informante do FBI se gabou, dizendo: “ensinei a eles tudo o que sabiam”. Os 28 foram liberados depois que o papel dele se revelou.
O FBI também permitia que informantes em organizações de direita se envolvessem em violência contra ativistas progressistas. Gary Thomas Rowe, que se infiltrou na Ku Klux Klan em 1960, avisou o FBI com três semanas de antecedência que a Klan estava planejando ataques aos Freedom Riders, que estavam chegando do Alabama pelo Norte. O FBI permaneceu inerte e permitiu que os ataques acontecessem. A polícia local deu à Klan 15 minutos para atacar os ativistas. Durante aqueles 15 minutos, os supremacistas brancos – incluindo Rowe – colocaram fogo no ônibus dos Freedom Riders para tentar queimá-los vivos.
Rowe também pode ter desempenhado um papel no conhecido atentado a bomba à Igreja Batista da 16th Street em Birmingham, no Alabama, em 1963, que matou quatro meninas. Ele estava no carro com três outros membros da Klan em 1965, quando eles perseguiram e assassinaram Viola Liuzzo, uma mãe com cinco filhos, de Detroit, que havia viajado para Selma. Rowe foi dispensado de testemunhar contra seus compatriotas, e foi nomeado na função de delegado, U.S. Marshall, pelo procurador-geral no governo Lyndon Johnson.
Informantes da polícia local sem conexões aparentes com o FBI também entraram em cena. Um xerife suplente foi matriculado como aluno na universidade SUNY de Buffalo, e ajudava os estudantes a construírem e testarem bombas. Outro informante se fingia de estudante na Faculdade Estadual do Nordeste do Illinois, conduzia manifestações do movimento Estudantes por uma Sociedade Democrática, e encorajava-os a sabotar veículos militares.
Logo depois que o COINTELPRO foi desmascarado, em 1971, o FBI anunciou que estava suspendendo todas as atividades desse tipo. Mark Felt, o diretor-assistente do FBI que hoje se sabe ter sido o “Garganta Profunda”, fonte dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein no escândalo Watergate, declarou posteriormente que o órgão não tinha feito qualquer esforço para assegurar que “os valores constitucionais estivessem sendo protegidos”.
Permanece em aberto a dúvida se o FBI realmente teria interrompido essas atividades, e quando. Em 1975, um informante contou ao The New York Times que havia se envolvido em atividades ao estilo do COINTELPRO até sua saída, no ano anterior. Essas atividades incluíram instigar um grupo maoísta a explodir um ônibus na convenção de 1972 do Partido Republicano em Miami.
De qualquer forma, as forças policiais nos EUA continuaram usando as mesmas estratégias. Em 1978, um agente infiltrado encorajou dois jovens ativistas desafortunados a tomar o controle de uma torre de televisão em Porto Rico. Quando chegaram, foram mortos a tiros por 10 policiais. De forma ainda mais reveladora, quando o governo de Porto Rico pediu ao FBI que investigasse o que aconteceu, o órgão declarou não ter encontrado problemas. Um alto oficial do FBI posteriormente chamou essa postura de “acobertamento”.
Depois do 11 de setembro, o FBI retomou em grande estilo suas práticas de instigação de atos violentos – embora fossem em geral muito mais cuidadosos para intervir antes que a violência efetivamente ocorresse. Quando o jornalista (e colaborador do Intercept) Trevor Aaronson analisou as denúncias por terrorismo internacional nos EUA na década seguinte aos ataques, ele encontrou cinco exemplos de planos reais. Em contraste, porém, 150 pessoas foram indiciadas em operações de flagrante preparado que só existiram em decorrência do encorajamento do próprio FBI e de seus informantes. Segundo Aaronson, “o FBI é muito melhor em criar terroristas do que em pegar terroristas”.
As mesmas táticas foram usadas para criar supostos esquemas terroristas domésticos. Em 2008, o ativista ambiental Eric McDavid foi condenado a 20 anos de prisão por planejar causar danos à represa Nimbus, na Califórnia. Oito anos depois, um juiz ordenou sua libertação porque o FBI teria ocultado informações relativas a um informante do governo. Em 2012, o FBI e seu informante essencialmente inventaram sem qualquer fundamento um plano para explodir uma ponte em Cleveland, e arrastaram para ele cinco ativistas do movimento Occupy.
Mais recentemente, o Departamento de Contraterrorismo do FBI inventou um movimento que se chamaria “Black Identity Extremism“, Extremismo de Identidade Negra. Como descrito num relatório do FBI, a ameaça pelo movimento imaginário soa incrivelmente semelhante à que seria representada pelas organizações negras no período do COINTELPRO. A Organização Nacional de Executivos de Segurança Negros declarou que isso “ressuscita o legado historicamente negativo dos líderes afro-americanos do movimento pelos direitos civis que foram inconstitucionalmente alvo de ataques pelas forças de segurança federais, estaduais e municipais”.
O que nos traz aos dias atuais. Por um lado, essa história não significa que o FBI ou as polícias locais estejam neste momento agindo como provocadores durante as atuais mobilizações. Mas significa que esse tipo de atividades é claramente um caminho que se apresenta às forças policiais americanas com intenção de minar os protestos e promover a escalada da violência.
Tradução: Deborah Leão
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