05/07/16 por Fausto Salvadori
Num país que já sofria com a divisão artificial entre polícias Civil e Militar, GCMs bagunçaram ainda mais a situação ao virarem uma terceira polícia
Ilustração: Junião
A imagem de guardas civis municipais perseguindo carros e atirando em pessoas pode ter chegado somente agora ao noticiário nacional, mas está longe de ser uma novidade. Em diversas cidades da Grande São Paulo e do interior do estado, já faz tempo que os guardas municipais pegaram para si tarefas que deveriam ser dos policiais militares e, às vezes, até dos policiais civis.
Há municípios em que os guardas municipais patrulham as ruas com viaturas, cães e até helicópteros, apreendem drogas, fazem investigações, atiram em suspeitos e curtem ostentar um aparato de imagens de morte e masculinidade, na linha de grupos como a Rota da PM paulista ou o Bope dos cariocas, com direito a caveiras e armas de longos canos grossos e fumegantes.
Algo bem diferente do objetivo com que as guardas surgiram, lá nos anos 80. A Guarda Civil Metropolitana criada por Jânio Quadros para a capital paulista, em 1986, tinha funções bem mais corriqueiras e distantes do policiamento ostensivo. Orientar turistas estrangeiros que visitavam o Parque Ibirapuera ou ensinar história aos visitantes do Parque da Independência eram algumas delas. A Constituição Federal de 1988 também deu um papel bem limitado às guardas, o de proteger os “bens, serviços e instalações” dos municípios.
A transformação das guardas em uma espécie de polícia municipal foi uma gambiarra construída ao longo dos anos por diversos prefeitos para tentar atender a uma demanda constante dos seus eleitores por ações na área de segurança pública. Uma gambiarra que ganhou força com a Lei 13.022/2014, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, que ampliou as funções da corporação. Na prática, as guardas hoje “passam muito do limite constitucional de sua atuação”, contando com “tolerância ou autorização do prefeito”, como nota o procurador Luiz Antonio Guimarães Marrey. Em outras palavras, “acabam se convertendo em pequenas PMs em desvio de função, repetindo vícios da matriz copiada”, nas palavras do antropólogo Luiz Eduardo Soares.
E não se pode culpar os municípios por quererem ter suas próprias polícias. Imagine explicar a um morador de qualquer cidade, preocupado com os roubos e homicídios da sua vizinhança, que ele não pode tratar disso com o vereador do seu bairro ou com o prefeito, mas somente com o governador do Estado. Parece algo muito distante – e é. Por isso mesmo, é natural que os poderes municipais queiram ter uma voz mais ativa nas políticas de segurança, em vez de apenas aguardar as ações dos governadores, que é quem mandam nas polícias Civil e Militar.
Ah, se são mais pessoas para combater o crime, isso é solução e não problema, certo? Não exatamente. Acontece que já é consenso entre os estudiosos do tema que um dos grandes buracos da segurança pública do País é a divisão entre uma Polícia Militar que faz o policiamento das ruas e uma Civil encarregada de investigar os crimes, com todos os problemas que uma divisão tão artificial é capaz de provocar. Segundo essa visão, falta ao Brasil uma polícia de ciclo completo, ou seja, capaz de dar conta de todas as etapas do policiamento: prevenção, policiamento ostensivo e investigação (lembrando que a tal polícia de ciclo completo deve ser civil, já que o modelo brasileiro em que o policiamento de rua fica nas mãos de uma força auxiliar do Exército é uma jabuticaba que não existe em países democráticos).
Se a divisão das polícias que existe no Brasil em duas corporações com culturas e procedimentos diferentes, mais inclinadas a se odiarem do que a trabalharem juntas, já era um problema sério, imagine o que significa a criação de uma terceira polícia, que é no que as guardas civis acabaram se transformando. Não é uma rima, nem uma solução. Tudo o que o policiamento do Brasil não precisava era de mais polícias, com orientações diferentes, submetidas a autoridades diferentes (municipal uma, estadual as outras duas) para atuarem nas mesmas funções e ficarem batendo cabeça entre si.
Uma solução real? Vale a pena olhar com carinho para a PEC 51, proposta de emenda constitucional elaborada pelo mesmo Luiz Eduardo Soares, mencionado lá em cima, e apresentado no Senado por Lindbergh Farias (PT-SP). O projeto prevê refazer toda a arquitetura do policiamento no Brasil, estabelecendo o ciclo único de policiamento, unificando as carreiras e criando funções claras para União, Estados e municípios. Vai lá.
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