Essa e a verdadeira cara da nossa Segurança Publica

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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

AGRESSÃO FEITA POR POLICIAIS MILITARES

ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PODER JUDICIÁRIO
COMARCA DA CAPITAL
JUÍZO DE DIREITO DA 10ª VARA DE FAZENDA PÚBLICA
Processo n° 2003.001.089702-6
SENTENÇA
I
Vistos etc…
Trata-se de ação ordinária visando à reparação de danos morais, por responsabilidade civil, movida por MARCELO DA SILVA BARBOSA em face do ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
Diz o autor que, em 24 de junho de 2001, teria sido agredido por policiais militares do Batalhão de Operações Especiais – BOPE, por ocasião de uma Blitz por eles realizada quando do encerramento do evento Artes de Portas Abertas, no Morro dos Prazeres, em Santa Tereza. Em virtude disso, pleiteia a condenação do Estado do Rio de Janeiro, com base no art. 37, § 6 º da CRFB, a indenizá-lo pelos danos morais que sofrera, por conta da conduta danosa praticada pelos agentes estatais (fls. 02/08).
Com a inicial vieram os documentos de fls. 09/27.
Contestação às fls. 33/43, onde o réu alegou como defesa, em síntese, que os atos lesivos narrados na inicial não foram por si ocasionados, além da inexistência de elementos de prova nos autos suficientes a lhe imputar qualquer responsabilidade no evento, na medida em que não foram identificados pelo autor os agente responsáveis pela suposta agressão. Aduz, outrossim, que na eventualidade da sua condenação, que se opere a redução dos valores pretendidos pelo autor, por entender serem eles excessivos.
Com a contestação vieram os documentos de fls. 44/108.
Réplica às fls. 111/112, onde o autor reforça suas razões.
Saneador às fls. 117, onde foi designada Audiência, que acabou não realizada, por não ter havido prova oral a ser produzida (fls. 121).
Memoriais oferecidos por ambas as partes às fls. 123/125 e 128/129, respectivamente, onde elas reafirmam suas razões.
Parecer do Ministério Público às fls. 131/132, opinando pela improcedência do pedido.
II
É o relatório. Fundamento e decido.
Trata-se de demanda cuja questão de fundo é relativa à configuração ou não da responsabilidade civil do Município do Rio de Janeiro pelos danos experimentados pelo autor.
A disciplina jurídica aplicável às hipóteses de responsabilidade civil do Estado está prevista no art. 37, § 6 º da Constituição da República. Esse artigo consagrou a responsabilidade objetiva do Estado, baseada na teoria do Risco Administrativo. Segundo ela, basta a configuração de três elementos para que se erija o dever jurídico sucessivo de indenizar, quais sejam: a conduta danosa (comissiva ou omissiva); o dano (material ou moral); e o nexo de causalidade correlacionando o dano à conduta. Prescinde-se, nessa modalidade de responsabilidade, da perquirição acerca do elemento culpa.
Faculta-se, neste âmbito, à Administração eximir-se da responsabilidade acaso demonstre ter havido uma das hipóteses de exclusão do próprio nexo causal, como o caso fortuito e a força maior, e o fato exclusivo da vítima ou de terceiro.
No caso ora sub judice, encontram-se demonstrados e suficientemente comprovados os elementos que materializam o dever de indenizar, isto é, a responsabilidade civil do Estado, motivo pelo qual deve ser imposta sua condenação.
Com efeito. Pela análise dos autos, vê-se configurar todos os três elementos da responsabilidade civil objetiva, cuja disciplina se aplica a esta caso.
Principiando-se pelo elemento conduta danosa, este, apesar do entendimento em sentido contrário do ilustre membro do parquet, no parecer exarado às fls. 131/132 , resta suficientemente configurado nos autos.
De fato, entendeu o Ministério Público que a pretensão autoral não deveria ser acolhida, por não ter o autor logrado êxito em provar que os danos por ele sofridos foram efetivamente causados por policiais do BOPE. Diz o parquet, encampando a tese defensiva do Estado, que uma vez que o autor não pôde identificar seus agressores, isto implicaria dizer que o próprio fato administrativo supostamente ensejador da responsabilidade, isto é, a conduta danosa, restava não demonstrada.
Tal entender, entretanto, é equivocado.
Sua equivocidade reside na simplificação que faz do fenômeno produção-valoração da prova em juízo, quer dizer, na visão restrita que impõe ao fenômeno probatório, sobretudo quanto à utilização de técnicas valorativas pelo julgador.
É que, no campo probatório, o Direito Processual, no dizer de CÂNDIDO DINAMARCO, “opera em torno de certezas, probabilidades e riscos, sendo que as próprias “certezas” não passam de probabilidades muito qualificadas e jamais são absolutas porque o espírito humano não é capaz de captar com fidelidade e segurança todos os aspectos das realidades que o circundam.” (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, São Paulo., Malheiros, 2001, Vol. III, pág. 115.)
Sendo assim, o Direito utiliza-se de artifícios, isto é, de meios para lidar com esses juízos de certeza e probabilidade, com fins de tornar-se fluído às injunções fáticas do mundo fenomênico, possibilitando que determinadas situações possam ser objeto de um julgamento pelo Judiciário.
Como exemplo desses meios, há as denominadas presunções, que são processos racionais pelos quais, do conhecimento de um determinado fato, infere-se com razoável probabilidade, a existência de um outro.
CÂNDIDO DINAMARCO traça com proficiência os contornos desse fenômeno:
“A experiência pessoal do homem e a cultura dos povos mostram que existem relações razoavelmente constantes entre a ocorrência de certos fatos e a de outros, o que permite formular juízos probabilísticos sempre que se tenha conhecimento daqueles. Daí por que o homem presume, apoiado na observação daquilo que ordinariamente acontece. O momento inicial desse processo psicológico é o conhecimento de um fato base, ou indício revelador da presença de outro fato. Seu momento final, ou seu resultado, é a aceitação de um outro fato, sem dele ter um conhecimento direto.” (Dinamarco, op. cit., Pág. 113.)
Tais presunções podem ser legais, quando estabelecidas em lei (praesumptiones legis), ou judiciais (praesumptiones hominis), quando estabelecidas pelos magistrados, por ocasião de suas decisões.
Visam elas, em regra, a facilitar a prova de determinados fatos, cuja prova direta se mostra extremamente difícil. As presunções judiciais também são chamadas de indícios e os juízos realizados em cima dessas presunções são considerados indiciários.
O direito processual penal, já de há muito traz uma regra específica acerca da chamada prova indiciária. Diz o art. 239 do Código de Processo Penal:
“Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.”
O Código de Processo Civil, não obstante não ter regra expressa, contempla o uso das presunções judiciais em seu art. 335, ao possibilitar ao juiz a utilização, em seus julgamentos, das chamadas regra de experiência comum:
“Art.335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.”
As regras de experiência comum vão ser o elemento norteador da utilização do raciocínio indutivo operado na formação da presunção ou da prova indiciária.
No caso em exame, o autor não conseguiu apontar, com precisão, aqueles soldados que lhe agrediram, verbal e fisicamente, mas isso não importa concluir que ele não tenha sido agredido por soldados da Polícia Militar.
Ao revés, a conjugação dos elementos contidos nos autos aponta com bastante firmeza para a conclusão que o autor foi realmente agredido por Policiais, na ocasião em que narra que foi.
Vale dizer, a despeito de não ter havido nos autos elementos que comprovassem diretamente o momento da agressão, por via indireta, isto é, pela utilização de uma raciocínio indutivo-presuntivo, com base nas regras da experiência comum, e nas demais circunstâncias contidas nos autos, chega-se à conclusão de que ela aconteceu.
Com efeito, o autor, em sua inicial, narra que voltava para casa, em companhia de amigos, quando foi parado por uma Blitz de Policiais do BOPE. Esse fato é perfeitamente comprovado nos autos, como se extrai da combinação dos depoimentos das testemunhas Hélio Carlos de Lima e Flávia da Silva Pereira, obtidos no bojo do Inquérito Policial Militar instaurado para apurar os fatos (fls.104 e 105).
Pelo depoimento do Sr. Hélio Carlos Lima nesse mesmo inquérito (fls. 104), comprova-se que o autor permaneceu só em companhia dos policiais militares, enquanto que os demais ocupantes da Kombi foram dispensados. Após isso, segundo esse mesmo depoimento, o autor teria aparecido com hematomas no rosto, dizendo que havia sido agredido pelos tais policiais. Esse fato é corroborado pelo depoimento da Sr. ª Flávia da Silva Pereira (fls. 105), que dia que ao autor apareceu dentro de uma Kombi, “com o olho inchado”.
A presença da polícia naquele local também restou comprovada, tanto pela declaração da Polícia Militar às fls. 101, que informa que no “mesmo dia desenvolvia-se a Operação Tornado pelo BOPE e pelo BPChq” e que na Operação Tornado “o efetivo do BOPE efetuou incursão no local, enquanto o efetivo do BPChq efetuou abordagens a veículos e pessoas que deixavam o local, inclusive os participantes do evento cultural”, quanto pelo depoimento do Comandante do BOPE (Sr. Venâncio Moura) à imprensa, na reportagem de fls. 27, e também pelos depoimentos do Sr. Hélio Carlos de Lima e da Sr ª Flávia da Silva Pereira (fls. 104 e 105).
Estão, pois fixadas, as premissas fáticas que autorizam a praesumptio hominis, quer dizer, restam provados os fatos “secundários” que se ligam à existência do fato principal.
Pois bem, a situação é esta: Um indivíduo é parado numa Blitz junto a outras pessoas. Num determinado momento, todas são liberadas, exceto ele. Aqui cabe uma pergunta – por quê? -. Logo depois, esse mesmo indivíduo aparece apresentado hematomas no rosto e dizendo que foi agredido pelos policiais. Isso é verossímil? Evidente. Além disso, após a agressão, esse mesmo indivíduo se dirige, na companhia de testemunhas, a uma Delegacia de Polícia, para noticiar o fato. Faz o registro de ocorrência, se submete a exame de corpo de delito, presta informações a jornais, participa de inquérito policial militar, enfim, se expõe, manifestando interesse de ver punidos seus agressores. Tal atitude não se coadunaria com a de alguém que realmente não tivesse sido agredido nas condições que foi, ou pelo menos, não seria verossímil que assim o fosse.
Deveras, e aqui entram as regras comuns da experiência (CPC, art. 335), é sabido que a sociedade em geral não desfruta mais de confiança nos órgãos policiais. Não é raro ver-se notícias apontando policiais civis e militares como integrantes de quadrilhas de corrupção, drogas e até mesmo grupos de extermínio. Já foi época em que as instituições policiais gozavam de prestígio e confiança da população. Da mesma forma é sabido pelo homem comum que não raro certos maus policiais utilizam-se das Blitzes para promoverem o achacamento de investigados, exigirem propina e, às vezes, agredir.
Ademais, não é de se estranhar que as testemunhas que originariamente compareceram à Delegacia Policial juntamente com o autor, na noite da agressão, para prestar depoimento, tenham, posteriormente, mudado seus relatos, passando algumas a sustentar que nada presenciaram. Com efeito, o medo de represálias por conta dos maus policiais (assim considerados, por que não há como tê-los como bons, se saem pelas noites agredindo inocentes ou quem quer que seja, dado que a todos é devido um tratamento condigno com a preservação da sua dignidade), explica tal proceder.
E por outro lado, não se pode deixar de se atribuir valor probando às reportagens jornalísticas acostadas aos autos (fls. 23 e 27), principalmente a veiculada no Jornal do Brasil, no dia 27 de junho de 2001 (fls. 27), que é minudenciosa no relato do acontecido, tendo colhido diversos depoimentos de pessoas que afirmaram ter presenciado os fatos.
Por tudo isso, não é de estranhar que o autor tenha sido agredido por policiais numa Blitz. Aliás, os fatos apontam fortemente para isso, motivo pelo qual tenho que a referida agressão realmente ocorreu, nos moldes que foi narrada pelo autor na inicial. Comprovada está, portanto, a conduta danosa do Estado.
Quanto às lesões físicas sofridas pelo autor, dúvida não há quanto à sua ocorrência, na medida em que suficientemente demonstradas pelo exame de corpo de delito de fls. 14/15.
O nexo de causalidade também resta comprovado, na medida em que as agressões sofridas pelo autor partiram da conduta de policiais militares, que atuavam em razão das suas funções, os quais, à luz do artigo 42 da Constituição da República, são agentes públicos estaduais, pelo que há a perfeita subsunção ao requisito do artigo 37 § 6 º da CRFB, que dispõe que “As pessoas jurídicas de direito público (…) responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade causarem a terceiros (…)”
Quanto ao dano moral, para a sua discussão, deve-se ter em mente que um dos mais importantes valores instituídos pelo ordenamento jurídico constitucional pátrio é o da proteção à dignidade da pessoa humana – CRFB, art. 1 º, III.
De fato, a Constituição de 88 inaugurou um novo sistema jurídico que elegeu como centro de atuação, proteção e tutela, os valores da pessoa humana. A tal ponto isso é verdade, que alguns chegam a considerar o princípio da dignidade pessoal (dignidade como valor fundamental da República) como sendo uma verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade (Gustavo Tepedino, A Parte Geral do Novo Código Civil, Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional, 1 ª ed., Renovar, 2002, p. XXIII.)
Vale dizer, portanto, que toda lesão perpetrada contra o direito subjetivo constitucional da dignidade, gera o dever de indenizar. É o que nos diz o inciso X, do art. 5 º da CRFB, verbis: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação.”
No mesmo sentido é o texto do art. 12 do Código Civil, verbis: “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”
No caso em análise, não há como negar que a autor teve sua esfera subjetiva, sua dignidade, violadas. Muito ao revés, viu-se vítima de injusta agressão perpetrada por quem deveria funcionar para garantir sua segurança e integridade, isto é, a polícia, causando-lhe sofrimento, angústia, além de humilhação e indignação.
Acrescente-se que a concepção atual acerca da responsabilidade por dano moral orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato da violação. É a noção do danum in re ipsa, pela qual verificado o evento danoso, surge a necessidade da reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil.
Destarte, merece o autor ampla reparação pelos danos que lhe foram causados, quer por aquilo de que foi vítima, quer como medida punitivo-pedagógica a ser aplicada ao réu, tendo em vista a torpeza da conduta de seus agentes.
Para a fixação do quantum do dano moral, deve-se levar em conta, diversos aspectos como por exemplo, o grau de torpeza da conduta, a gravidade do dano, a capacidade financeira do ofensor e da vítima, seu caráter punitivo etc., tudo, tendo como base de ponderação os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Nesse contexto, considero como consentâneo com esses critérios o valor pretendido pelo autor – o equivalente a R$ 20.000,00 (vinte mil reais) -, na medida em que, in casu, a conduta lesiva é extremamente reprovável, haja vista ter sido praticada por policiais militares, que são agentes públicos responsáveis pela segurança e bem estar da população; ter sido de grande intensidade a dor moral sofrida, na medida em que o autor foi agredido física e moralmente, sem ter tido chance de reação; e a necessidade de se punir exemplarmente o réu, com fins de que ele passe a ser mais rigoroso na escolha daqueles que irão exercer cargos que envolvam o uso da força estatal, assim como diligenciar melhor seu sistema interno de investigação e punição de seus maus agentes.
III
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido para condenar o réu a pagar ao autor o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), corrigidos monetariamente a partir da publicação dessa sentença; e juros de mora contados da data do evento danoso (24/06/2001), à razão de 0,5 % ao mês até 11/01/2003 e, após isso, à razão de 1 % ao mês, nos termos do artigo 406 do CC e do Enunciado de n º 20 do CJF.
Condeno o réu nas custas e honorários advocatícios que fixo em R$ 500,00 (quinhentos reais), nos termos do artigo 20, § 4 º do CPC.
Submeta-se a sentença ao duplo grau obrigatório, em virtude do disposto no artigo 475 do CPC, como condição para o seu trânsito em julgado.
P.R.I..
Rio de Janeiro, 24 de junho de 2005.
RICARDO COUTO DE CASTRO
JUIZ DE DIREITO

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