As múltiplas faces da violência
Waldemar Oliveira Filho*
“A violência só findará quando houver justiça social”; “A paz não convive com a pobreza”; “O tráfico de drogas e a disseminação do ‘crack’ são os principais responsáveis pelo crescimento da violência”; “Enquanto a polícia for despreparada, não haverá segurança em Salvador”. Ditas por autoridades públicas, estudiosos e jornalistas, essas quatro frases tornaram-se sentenças conclusivas reproduzidas à exaustão por todos que seriamente encetam o debate sobre a violência em Salvador. Mas, será que estes pronunciamentos realmente explicam as causas, ou a origem, da violência em nossa cidade? E, ainda, que tipo de reflexão se faz necessária para compreendermos este flagelo e encontrar soluções para além das medidas paliativas?
Toda forma de agir traz em si uma forma de pensar. Toda forma de pensar é condicionada. Até aqui, acredito que não exista discordância; o problema está em desvendar a quais condicionamentos, ou princípio de inteligibilidade, submetem-se as formas de pensar esse tema tão complexo que é a violência. Em específico, trata-se de problematizar a equação entre o pensar (produção de verdade), o agir (exercício do poder), bem como analisar seus elementos resultantes: o significado da noção de violência e as políticas de segurança pública.
Ademais, no caso soteropolitano, não há escapatória: é preciso aprofundar as reflexões sobre a manifestação dos conflitos sem nunca abdicar da análise do nosso próprio pensar. Dito de outra maneira, para que não se repitam os fracassos anteriores, antes de tudo, nos cabe projetar um “olhar crítico” sobre as explicações que justificaram a conduta do Estado no âmbito da segurança pública ao longo dos últimos anos.
Nesse sentido: o que é mesmo aquilo que chamamos de violência? Se escutarmos, com atenção, os discursos oficiais, bem como o conjunto de opiniões manifestadas diariamente nos meios de comunicação, será fácil extrair uma resposta. A violência seria um fenômeno social, provocada por alguma conturbação da ordem, seja por aqueles que se rebelam contra a pobreza, seja por quem se valendo do seu poder de polícia faz uso de força desproporcional na repressão ao crime. Ou, sem rodeios: a violência soteropolitana se exemplifica nas ações de tráfico, furto, roubo (os chamados “assaltos”) e nos assassinatos/extermínios de jovens negros e pobres da periferia, por policiais ou gangues rivais. Portanto, sob o prisma estatal e midiático, a violência estaria atrelada a duas grandes causas, quais sejam a miséria e o abuso de autoridade.
A rigor, percebe-se que esse discurso explicativo da violência fundamenta suas sentenças conclusivas em duas formas específicas de expressão de comportamentos e de ações que transgridem normas, leis e arranjos sociais de convivência e que se constituem, muitas vezes, em ações e movimentos anti-sociais.
A primeira forma seria aquela que Gey Espinheira (talvez o maior estudioso da violência em Salvador) soube tipificar como “violência programada de caráter econômico não institucional”; e manifesta-se através do crime organizado – desde quadrilhas ou gangues de bairros, até as redes nacionais e internacionais que estruturam uma economia criminosa: tráfico de drogas, de armas, de gente; furtos e roubos/assaltos – bem como se materializa em redes de corrupção de pessoas vinculadas aos sistemas públicos e privados. São incluídos também nesse tipo de violência os transgressores isolados, autônomos, que buscam, como os demais, fins lucrativos ou preenchimento de alguma necessidade: são os assaltantes, estupradores etc.
Por sua vez, a segunda forma, intitulada de “violência institucional”, abarca o campo institucional do Estado, mais particularmente o da segurança pública, envolvendo as polícias Militar e Civil, mas também todo o segmento do Judiciário, sobretudo o setor ligado aos presídios e suas ramificações.
Contudo, em que pese o Estado e a mídia se posicionarem dessa forma – considerando duplamente os matizes sociais e institucionais da violência – há um grande desvio nesse raciocínio. Conceber a violência como uma construção social, concreta, não deve implicar em negligenciar os seus aspectos históricos e subjetivos. Do contrário, estaremos incidindo num equívoco de pensamento que, de maneira inelutável, nos levaria a encarar os conflitos sociais como decorrência exclusiva da conjuntura social. Talvez seja esta visão imediatista, que não contempla nossos antecedentes históricos, nem o caráter subjetivo da violência, uma das razões centrais para a falta de políticas públicas integrais e eficazes.
A violência é algo em constante construção, está disseminada por toda a teia social envolvendo os elementos mais diversos da nossa formação cultural e psicológica. Há, portanto, que se ponderar o atual padrão de sociabilidade, em certa medida violento, em função do arranjo civilizatório que foi sendo moldado por nossa sociedade mestiça – diga-se de passagem, profundamente desigual e racista. Em tempo, devemos entender a violência como um processo e não como um sujeito autônomo – a violência – substancializada como sujeito próprio. A violência, dessa maneira, pode eclodir e permanecer de variadas formas, pois não se pode pensar a violência sem referi-la aos contextos e situações particulares em que ela acontece e, nesse sentido, só se pode pensá-la no plural e em múltiplas facetas. E, certamente, é preciso se afastar da perspectiva que entende a violência como um evento extraordinário na vida diária para, em contrapartida, concebê-la como parte constante da vida cotidiana de uma unidade social específica.
Para efeito das políticas públicas, a violência deve ser entendida em dois sentidos conceituais e em duas dimensões específicas que se cruzam. O primeiro aspecto diz respeito à violência da estrutura da sociedade brasileira, ou seja, em sentido sócio-histórico, é imperioso considerar o desenvolvimento das instituições de controle social, dominação política – Estado, governo etc.
Da mesma forma, levar em conta a exploração, as desigualdades econômicas, o desemprego exacerbado, a miséria, a invisibilidade imposta a certos segmentos sociais, a corrupção e o clientelismo político no surgimento e manutenção desse tipo de violência, descrita por Gey Espinheira como vertical, violência que gera violência e encontra-se associada por alguns nexos com outros contextos da vida política do país. É a violência que se reproduz intensa e extensivamente na capilaridade e nas relações sociais de nossa sociedade.
O segundo sentido se apresenta como subproduto negativo do primeiro: a violência do nosso dia-a-dia ou cotidiana, violência das relações entre as pessoas, violência doméstica, banal e gratuita; em tempo, a violência como componente cultural naturalizado.
À guisa de conclusão inconclusa, espera-se que ao abordar o tema da violência, a sociedade e o Estado comprometam-se com a identificação de políticas e programas voltados para promover os fatores de sociabilidade, bem como prevenir a cultura da dominação, da discriminação e da intolerância. Superar os “lugares comuns” no debate sobre a prevenção da violência é, decerto, o primeiro passo para que isso ocorra.
*Waldemar Oliveira Filho é bacharel em Direito (UCSAL), pós-graduando em Direitos Humanos (Univerisdade de Coimbra – Portugal) e ativista em movimentos sociais.
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