Ruy Fabiano Jornalista
O adolescente Carlos Rodrigues Júnior, de 15 anos, foi morto há três dias numa delegacia em Bauru, São Paulo, depois de ser brutalmente torturado com 30 choques elétricos. Ele fora detido horas antes por seis policiais militares. Segundo o médico Ivan Segura, diretor do Instituto Médico Legal de Bauru, dois choques no mamilo esquerdo ocasionaram a morte do rapaz por falência cardíaca e respiratória. Chocante? Banal.
A cena se repete diariamente em centenas e centenas de delegacias de todo o país. Quando um ou outro caso chega à mídia, como é o deste, produz (ou não) espasmos de indignação, que podem apenar (ou não) os personagens diretamente envolvidos no episódio, gerando uma ou outra demissão. Ou não.
São, quando tomadas, providências isoladas, pontuais, que não vão ao cerne do problema, nem questionam a anomalia cultural que dá sustentação a essas aberrações. São acidentes de percurso.
Há dias, em Abaetetuba, Pará, a menor L., de 15 anos, foi colocada numa cela na companhia de 20 homens, que a violentaram diariamente, num período de 26 dias, trocando comida por sexo. Uma delegada e uma juíza, informadas do absurdo, a mantiveram onde estava. A menina, da janela da cadeia, que dá para a rua, pedia socorro aos passantes, que, acostumados àquilo, não se comoviam.
Eis, porém, que alguém inadvertidamente se comoveu e encaminhou a denúncia a uma ONG, que pôs a boca no trombone, mobilizando a opinião pública nacional. Entrou então em cena todo o repertório de espantos e indignações desses momentos.
A menor foi solta. Constatou-se que, além do absurdo de estar presa com adultos, sendo menor, e com homens, sendo mulher, acrescia o fato de nada ter feito que justificasse uma detenção. Era inocente — nada menos. Mesmo, porém, que fosse culpada de algum delito, por mais grave que fosse, não poderia ser submetida ao que foi. E a responsabilidade dos agentes do Estado não seria menor.
Na tentativa, no entanto, de atenuá-la, o delegado-geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benalussy, argumentou que ela era débil mental. Antes, outra autoridade policial já a havia chamado de prostituta. Os argumentos agravam ainda mais a situação, pois equivalem a confissões gravíssimas. É então assim que o Estado brasileiro trata prostitutas e pessoas com deficiência mental?
A governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, diante dos fatos, viu-se obrigada a demitir o seu delegado-geral, não sem antes elogiá-lo e quase lhe pedir desculpas em público.
São casos emblemáticos. Mostram deformação cultural não removida pela Lei Áurea, que em 2008 completará 120 anos. O que diferencia os tempos de hoje dos da escravidão é que a supressão de direitos humanos não se restringe mais a uma raça, mas a um vasto grupo social carente, que abrange todas as raças.
Quando as torturas e violências físicas e morais recaem sobre alguém da classe média para cima, a história é outra. Bem outra. Veja-se, por exemplo, o que ocorre com as vítimas da repressão política do regime militar de 64. Tendo ou não sido atingidas por maus-tratos físicos (há casos alegados de constrangimento intelectual), têm sido contempladas com indenizações, algumas bem razoáveis, e pensões vitalícias.
Não se questiona a justeza do procedimento. Não é o que está aqui em pauta. O de que se trata é a disparidade de tratamento para situações equivalentes. Isonomia. Entre nós, porém, isonomia depende de saldo médio. A família do adolescente Carlos Rodrigues Junior não será indenizada, nem terá direito a pensão vitalícia do Estado, assim como à menor L., de Abaetetuba, só restará migrar, com a família, para escapar às ameaças de morte.
A propósito, foi divulgado ontem, em Brasília, o Relatório de Desenvolvimento Juvenil 2007, estudo elaborado pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, com base em dados do IBGE e dos ministérios da Saúde e da Educação. Entre outros dados alarmantes sobre a violência em nosso país, informa que o Brasil é o terceiro do mundo em assassinatos de jovens. Perde apenas para Venezuela e Colômbia.
Enquanto não se mexer nisso, com um choque de educação e cultura — e não com os choques elétricos que vitimaram o adolescente Carlos Rodrigues, em Bauru —, o país continuará mergulhado nas trevas do Terceiro Mundo.
artigo publicado no jornal Correio Braziliense, 20/12/2007
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