Quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017
A ilegalidade da prisão baseada no testemunho de policiais
Durou 15 minutos a audiência que condenou Felipe, 21, a um ano e oito meses de prisão por tráfico de drogas. Únicas testemunhas, dois policiais militares responsáveis pela prisão em flagrante foram ouvidos por dois minutos cada um no Fórum Criminal da Barra Funda, em SP. O réu, primário, falou por três minutos e negou o crime. Palavra contra palavra, sem investigação prévia nem produção de provas.
Essa não é, nem de longe, uma exceção da prática de condenação no Brasil. A palavra de dois agentes do Estado têm um incrível peso e goza de uma validade antidemocrática, pois que coloca as armas em flagrante disparidade. Pena que a validade desse tipo de testemunho encontre guarida inclusive em Sumula do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A Súmula 70 diz:
PROCESSO PENAL. PROVA ORAL. TESTEMUNHO EXCLUSIVAMENTE POLICIAL. VALIDADE.
“O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.”
Como assim? O Código de Processo Penal diz em seu artigo 155 o seguinte:
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Destaque para “não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Isto é, o testemunho policial não pode fundamentar a decisão do magistrado, pois é um elemento informativo colhido na investigação.
Você pode até argumentar que o juiz não pode fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, mas pode em caso de prisão em flagrante.
Pode? Não!
Se com elementos informativos de investigação o magistrado não pode fundamentar sua decisão, menos ainda ele pode fundamentar com testemunhos de uma prisão em flagrante, onde só o que o acusado tem é a sua palavra contra a de dois agentes do Estado – e se o acusado tiver todas as características de um delinquente, etiquetado pelo controle social que considera esse ou aquele “com cara de criminoso”, então a palavra desse cidadão não vale um centavo de real. Credibilidade alguma.
Como falamos, há um flagrante desequilíbrio das armas quando a única prova do cometimento de um crime é o testemunho de quem conduziu o acusado à cadeia, pois a condução já indica o teor do interesse dos agentes do Estado – principalmente se houve a plantação de drogas e armas para esconder a ilegalidade do ação policial na determinada operação.
A prova pressupõe procedimento contraditório e não há contraditório possível onde somente o que existe é a palavra dos envolvidos: um negro, pobre, da favela, levado por dois agentes do Estado para uma delegacia, vai contradizer como, o quê? Contraditório não é só a oportunidade de poder falar sua versão, mas a possibilidade de, efetivamente, influenciar na decisão do magistrado.
Além do mais, o testemunho de dois agentes do Estado, que efetuaram a prisão, está comprometido igualmente como comprometidos estão os testemunhos de alguém que tem interesse na causa, que tem inimizade como acusado. Levaram o acusado preso, vão dizer que levaram por engano, que o rapaz não tinha nada, não fez nada? Papai Noel não existe!
Não é democracia viver num país onde a restrita prova oral de alguém é o bastante para encarcerar um cidadão que, para todos os efeitos, protegidos pela Constituição Federal, goza da Presunção de Inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
A súmula 70 do TJ/RJ e toda a prática comum de condenação, em especial de usuários de drogas em nosso país, é inconstitucional e arbitrária – e enquanto você lia esse artigo, com certeza alguém acabou de ser condenado por esta razão que acabamos de combater.
Wagner Francesco é Teólogo com pesquisa em áreas de Direito Penal e Processual Penal.
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