27/11/18 por Leandro Barbosa, especial para Ponte
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Governo do Pará fala em 101 mortos em chacinas nos últimos 4 anos, mas entidades contabilizam 168; taxa de homicídios é de 77 em cada 100 mil habitantes
Suzana dos Anjos Amaral perdeu o filho em uma chacina no bairro Tapanã | Foto: Leandro Barbosa/Ponte Jornalismo
Suzana dos Anjos Amaral descobriu que seu filho havia sido vítima de uma chacina, no Bairro Tapanã, em Belém, dias depois de sua morte quando se deu conta que o número de assassinatos, durante os dias 4 e 5 de novembro de 2014, eram incomuns: 11 mortos. Até então, não havia nenhuma explicação sobre o homicídio. O que se sabia era que Márcio dos Santos Rodrigues, 21 anos, estava com outros dois amigos em uma moto em direção à casa de sua vó, quando passou entre uma viatura e dois motoqueiros. Em seguida, os três foram perseguidos. Ao passar em frente à casa de seus familiares ele saltou e, neste momento, o único tiro certeiro foi nele. Seus amigos fugiram e ficaram escondidos por horas em uma mata.
A morte de Márcio e dos outros, com idades que variavam entre 18 e 37 anos, ficou conhecida como Chacina de Belém, fruto das ações das milícias e de grupos de extermínio que buscavam vingar a execução de um dos seus parceiros da Rotam, o policial militar Antônio Figueiredo, conhecido como Cabo Pety, que levou 20 tiros em uma emboscada. Na ocasião, o policial já respondia uma ação criminal por homicídio. Neste dia, a capital paraense foi tomada pelo medo. Em diversas redes sociais o anúncio de vingança era explícito. E aconteceu.
“Meu filho estava indo desejar feliz aniversário para a vó e foi morto. A gente ia abrir um negócio juntos, mas impediram. Depois do que aconteceu fui atrás das famílias que também foram vítimas. Após ouvir os relatos das mães, chegou um dia que eu agradeci a Deus pela forma que meu filho foi embora. Era tanta maldade que elas contavam, que imaginar que o Márcio morreu com um tiro me deixava menos pior. Tem mãe que já ouviu seu filho sendo exterminado”, conta Suzana. Depois de perder o filho, ela virou ativista de direitos humanos e participa de grupos de apoio a outras mães que passam pela mesma situação, semelhante às Mães de Maio, que surgiu em São Paulo em resposta aos “Crimes de Maio”, quando quase 600 pessoas foram mortas em uma investida das forças de segurança contra ataques atribuídos à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).
Márcio no local onde trabalhava como supervisor de garçom; ele estava com dois amigos quando foi assassinado | Foto: arquivo pessoaL.
Em 8 de novembro de 2016, Suzana recebeu a amarga notícia do pedido de arquivamento da investigação do crime que vitimou o filho dela, feito pelo Ministério Público do Pará. Na alegação aceita pelo juiz Edmar Silva Pereira, a promotoria afirma que “não havia provas de autoria do assassinato de Márcio”. Neste ano, Suzana entrou com ação de indenização para tentar reparar a perda do filho e aguarda o julgamento, ainda sem previsão.
O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito para Apuração da Atuação de Grupos de Extermínio e Milícias no Estado do Pará, lançado em 2015, indicou que as ações que ocorreram em 2014, ou até mesmo em anos anteriores, não cessariam com a morte do Cabo. Como previsto, Belém tem sido cenário de diversas chacinas nos últimos anos. De acordo com a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup), outras duas chacinas ocorreram em 2017: a da Condor, onde foram registradas cinco mortes e 14 feridos; e do Eduardo Angelim, com cinco mortes e dois feridos. O uso das duas terminologias – milícias e grupos de extermínio -, segundo pesquisadores, é importante, porque estão inseridos nos grupos de extermínio, matadores de aluguel que podem ou não ser militares. As milícias são formadas por agentes do Estado, na ativa ou não, com participação de traficantes de facções criminosas.
Invisibilidade
Os números de mortos e feridos são questionados por organizações da sociedade civil que não concordam com o entendimento da Segup sobre a questão. De acordo com a assessoria de imprensa do órgão, “alguns episódios de mortes ocorridas no mesmo dia em Belém, não se classificam como chacinas por não terem ocorrido na mesma hora e lugar, ou por não haver confirmação de relação entre as mortes”.
Para Eliana Fonseca, da SDDH (Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos), que já foi ameaçada de morte por seu ativismo, o modus operandi das milícias e grupos de extermínio têm mudado desde que notaram que havia uma compreensão de suas atuações. “Conversando com familiares de diversas vítimas e testemunhas, percebemos que eles passaram a matar em horários, lugares e de formas diferentes”, explica.
Dados apresentados pelo Relatório da Situação dos Casos de Chacinas e Extermínio de Jovens Negros no Estado do Pará, de 2017, produzido pela Comissão de Direitos Humano da OAB do Pará, vai de encontro ao número apresentado pela Segup. Além dos casos apresentados pelo órgão, o documento apresenta outros episódios de intensa matança na capital paraense, por entender que “por vezes a dispersão das vítimas pode disfarçar a realização de uma chacina”. Sendo assim, os seguintes casos também foram analisados:
- Chacina do Guamá e Cremação: ocorrida nos dias 18 e 19 de janeiro de 2014, com o total de 7 mortes, tendo como principal suspeito o falecido “Cabo Pety e sua milícia”;
- Chacina de Belém: o relatório indica que a despeito de ela ter acontecido no dia 4 de novembro de 2014, o estado não levou em consideração o registro enorme de assassinatos que ocorreram no final de semana anterior. Nos dias um a três de novembro, 23 pessoas foram assassinadas. Se esse número for levado em conta, em cinco dias, 34 pessoas morreram e não 11, como os dados oficiais apontam. Márcio foi vítima dessa chacina, supostamente realizada para vingar a morte do Cabo Pety, apontado como mandante dos ataques do início do mesmo ano.
- Nova Chacina de Belém: ocorrida nos dias 20 e 21 de janeiro de 2017, após a morte de um soldado da Rotam, 29 pessoas foram assassinadas e outras 20 ficaram feriadas em diferentes bairros da cidade. A situação levou a ONG Human Rights Watch a emitir uma nota pedindo atenção das autoridades brasileiras sobre a onda de homicídios.
O relatório também apresenta um conjunto de notícias de episódios de intensa violência ocorridos no estado, que, em inúmeras vezes, superou em um fim de semana o número de mortos de países em guerra, no mesmo período.
Para a SDDH, além das chacinas apresentadas no relatório, houve uma a mais em 2014, da qual chamam de Chacina da Cidade Velha, que culminou na morte de cinco jovens, próximo a Praça Siqueira Campos, conhecida como Praça do Relógio, no Centro Histórico de Belém. Neste caso, a organização acompanhou algumas famílias que foram inseridas no programa de proteção à testemunha.
Chacinas recentes
Em abril deste ano, conforme noticiado pela Ponte, após a morte de uma policial militar 80 pessoas foram executadas na região metropolitana de Belém. No final de outubro, no Bairro Tapanã, 8 pessoas foram mortas e outras 3 ficaram feridas, após a morte de um sargento da PM. Fernando Pantoja Costa; Jacob Almeida Braga; Thiago Luiz Moraes dos Santos; Vinicius dos Santos; Manoel Evilasio Morais; Diego Borges; Sávio Miller Silva; e Davi Thiago, com idade entre 18 e 23 anos, foram executados em diferentes pontos da comunidade, por quatro homens que estavam em duas motos e de capacete. Três das vítimas chegaram a ser atendidas no local, mas não resistiram. O requinte de crueldade dos executores ficou evidenciado nos resultados periciais que deram conta, por exemplo, do caso de Manoel, que morreu com 4 tiros na região da cabeça.
Em coletiva de imprensa realizada na Delegacia-Geral de Polícia Civil, o delegado-geral Cláudio Galeno disse “que não se pode descartar a possibilidade de as mortes terem relação com o assassinato do sargento João Batista, [no dia 25 de outubro], no mesmo bairro. Ao mesmo tempo em que não podemos afirmar, não podemos também descartar a relação entre as mortes e a do policial militar. Existe a possibilidade de ter sido ação de milícia, de grupo criminoso, de facção criminosa”, explicou.
A SDDH em conjunto com a ONG Movimento de Emaús encaminhou um relatório à OEA (Organização dos Estados Americanos), que tem como função promover a observância e a defesa dos direitos humanos no continente americano, a fim de denunciar a matança que se estabelece em Belém – a capital paraense ocupa o 10º lugar no ranking das cidades mais violentas do mundo. Segundo a Segup, este ano já ocorreram 3.166 homicídios em todo o estado, desses, 745 aconteceram na capital paraense. No ano passado, no mesmo período, o número foi de 732. De acordo com o Atlas da Violência 2018, a cidade é a capital mais violenta do país com a taxa de 77 assassinatos para cada cem mil habitantes.
Embora a Segup apresente informações sobre mortes violentas no território, para o promotor de justiça militar Armando Brasil, os dados são sempre um desafio devido a interpretação do órgão sobre os homicídios e o que ele acha cabível apresentar. “É difícil conseguir esses dados tendo em vista que o próprio sistema de segurança pública do estado não os torna públicos. Alguns jornalistas fazem estimativas que, por sinal, são altas. Na terceira semana de abril, cerca de 60 pessoas foram assassinadas dentre policiais e bandidos”, afirma.
Entre vítimas e criminosos
A Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública e Defesa Social do Pará informou que de 2014 a setembro deste ano, somam-se cerca de 4.313 denúncias de crimes praticados por agentes de segurança, dentre os 35 mais comuns, também despontam os praticados por milicianos, como: extermínios, tentativa de homicídios, extorsão, invasão de domicílio, agressão, tortura, entre outros. Com base nas denúncias, nos últimos dois anos, o órgão conseguiu instaurar 1.151 processos, aproximadamente 30% do total.
De acordo com o Armando Brasil, há um total de 3 processos tramitando na Justiça Militar sobre milícias e alguns estão sob segredo de justiça a pedido da defesa. O promotor afirma que das chacinas que ocorreram desde 2014, cerca de 10 PMs estão sendo investigados ou processados. “O Pará precisa urgentemente de uma atenção do governo federal em razão da guerra que se instalou entre criminosos e milícias. A situação está pior que a dos outros estados da federação. Os milicianos e traficantes espalham o terror não só na periferia de Belém como no centro. O atual governo perdeu controle total da criminalidade no estado”, afirma o promotor.
Um dos papéis da Justiça Militar é promover a segurança de militares ameaçados e suas famílias, através do programa “PM Vítima”, do Comando Geral da PM. Armando explica que os policiais são encaminhados para o programa quando relatam ameaças do crime organizado. “Após o PM, relatar os fatos as rondas policiais são intensificadas próximo à residência do PM e, dependendo da situação, a corporação fornece a logística para a retirada da família desse policial para casa de parentes, contudo não há até hoje um programa de habitação por parte do governo do estado para a construção de vilas militares como nas forças armadas”, explica.
Em todo estado, de janeiro a 8 de novembro deste ano, de acordo com a Segup, “41 policiais militares foram mortos vítimas de crimes com característica de latrocínio e/ou execução no Pará. Dos 41 homicídios de PM’s, 24 estão com autoria presa, morta ou identificado, com mandato de prisão decretado, e 17 ainda estão em apuração, ou seja, ainda não esclarecidos”.
Em todo estado, de janeiro a 8 de novembro deste ano, de acordo com a Segup, “41 policiais militares foram mortos vítimas de crimes com característica de latrocínio e/ou execução no Pará. Dos 41 homicídios de PM’s, 24 estão com autoria presa, morta ou identificado, com mandato de prisão decretado, e 17 ainda estão em apuração, ou seja, ainda não esclarecidos”.
Fortalecimento da milícia
Andando pelo centro de Belém, uma conversa aleatória chama a atenção da reportagem. Uma jovem negra conversando com sua amiga disse em tom descontraído: “acabou a infância em que a lenda urbana era homem do saco, palhaço, agora as crianças da favela têm medo é do carro preto”. A situação remete à forma que as execuções ocorrem nas periferias da cidade. Nas versões das testemunhas, um detalhe que se repete é a utilização de carros nas cores prata, preto e branco ou homens encapuzados em motocicletas.
Além do medo que assombra a população, o centro de Belém apresenta outro fator: é comum ver policiais militares fazendo segurança em alguns comércios. Tal prática também se estende à região metropolitana. “No bairro do Guamá, por exemplo, foi detectada que a milícia utilizava câmeras para fazer a vigilância de algumas áreas, pois os estabelecimentos comerciais eram monitorados para evitar as ações de pequenos assaltantes e, quando isso ocorria, a milícia agia a fim de eliminar aqueles que desrespeitaram as ordens”, explica o geógrafo e pesquisador da área de segurança e geografia urbana, Aiala Colares.
Para Aiala, há uma relação direta do fortalecimento das milícias armadas com os serviços pagos pelos comerciantes dos bairros, pois a milícia oferece uma segurança privada. Um exemplo disso, antes da Chacina de Belém ser reconhecida, em 2014, para muitos o Cabo Pety, era tido como um herói do povo ou justiceiro. “Nesse sentido, comerciantes financiam milicianos a fim de se protegerem de assaltos em seus estabelecimentos. Desse modo, portanto, a milícia foi ocupando espaços, ganhando forma e conteúdo e estabelecendo relações de poder, condicionando territorialidades”, analisa o pesquisador.
Mas a situação se intensifica quando a milícia paraense se associa ao narcotráfico, indo além do contrabando, segurança privada e transporte alternativo, como vans e mototáxi. “Na metrópole de Belém, grupos milicianos estão sobrepostos em territórios do narcotráfico, aproveitando-se de vantagens econômicas da venda da droga. Dessa forma, pode-se defini-los enquanto narcomilícias. Assim, grupos armados de policiais e ex-policiais utilizam de táticas de treinamento e do corporativismo militar para obter vantagens, como: extorsão de traficantes e ‘aviãozinhos’, serviços prestados aos grandes traficantes ao executar sujeitos em débito ou em conflitos com o patrão do tráfico, ou então, transportando e até mesmo distribuindo drogas a pequenos traficantes obrigando-os a vendê-las sob a ameaça de morte, repassando o dinheiro da venda aos milicianos”, explica Aiala.
Todos os territórios do mapa abaixo, desenvolvido em pesquisa por Aiala Colares, têm presença de milicianos e grupos de extermínio. Segundo Aiala, é possível afirmar que já houve expansão para outros territórios. Aiala explica que narcomilícias são formadas por agentes (ou ex-agentes) de segurança pública que podem estar em exercício de suas atividades ou não, e que se utilizam do aparato do Estado para obter benefícios sobre o narcotráfico.
Levantamento feito pelo pesquisador Aiala Colares mostra dinâmica do crime em Belém: o tráfico e a milícia caminham lado a lado
De acordo com o mapeamento dos homicídios com características de execução em Belém feito pelo pesquisador, entre os anos de 2011 a 2016, há 14 áreas da cidade, que englobam diversas comunidades, já dominadas pelo crime organizado que se divide entre as facções parceiras FDN (Família do Norte) e CV (Comando Vermelho), e as milícias. “Acompanhando os números de mortes e a forma que matavam, foi possível perceber um conflito constante entre o tráfico e milícia em várias regiões. Ao todo, deve haver ao menos uns 7 grupos de milicianos em Belém. Uma vez que ganham força, as chacinas são como uma demonstração de poder”.
Um alívio para a dor
O governo paraense assumiu que havia milícias e grupos de extermínio no estado somente em 2014, na chacina em que Márcio foi assassinado. Neste mesmo ano, motivadas pela dor da perda de seus filhos, um grupo de mães passou a se reunir na ONG Movimento de Emaús. Segundo Celina Hamoy, advogada e coordenadora do CEDECA Emaús (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), uma das frentes de atuação da organização, explica que essa é uma das estratégias criadas para que essas mães possam se apoiar. “Teve um caso de uma mãe que ia ao cemitério para procurar outras mães que sofriam do mesmo drama. Imagina! Tudo isso é muito triste”, contou Celina.
Muitas famílias aguardam o respaldo das ONGs de direitos humanos para seguirem com os boletins de ocorrência e depoimentos. A impunidade dos criminosos somada às ameaças que as famílias, testemunhas e sobreviventes sofrem faz com que o medo seja, por vezes, o motivo de muitos optarem por abandonarem o processo e “simplesmente sumirem da cidade”, afirma, Eliana, da SDDH. “Aqui na organização temos a missão de acompanhar essas famílias. Algumas delas só falam comigo, devido a cumplicidade que acaba sendo criada. Mas mesmo assim, o medo leva algumas a simplesmente sumirem. Das que eu acompanho, pelo menos três foram embora”, afirma.
Suzana é uma das mães que participa das reuniões e tem estado à frente de várias iniciativas em prol do grupo. “O estado tem que nos dar alguma resposta, no mínimo uma assistência digna diante de toda a dor que a gente precisa encarar. Algumas mães adquirem doenças, pressão alta, depressão, e nem prioridade no atendimento no posto de saúde elas têm. O estado é obrigado a nos dar prioridade, assistência. Foram policiais que mataram os nossos filhos”, afirma.
Uma das formas que Suzana encontrou de manter a memória do filho, foi dar continuidade ao projeto social Mega Camaradas do Tapanã, voltado para crianças e adolescentes, que ele desenvolvia com a namorada no bairro onde vivia. “Eu tenho tentado priorizar a educação dessas crianças. É muito difícil manter tudo, mas com muito esforço a gente consegue. O estado já se ofereceu pra ajudar, mas pra isso eu não quero ajuda dele. Não vou sujar a memória do meu filho com o dinheiro de quem o matou”, critica.
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