Cenas de violência policial contra estudantes paulistas mostram mais uma vez que Estado brasileiro não dá sinais de caminhar no sentido de respeitar o direito de protesto
As ruas de São Paulo já conhecem bem o script: o poder público anuncia uma medida controversa, manifestantes se lançam em protestos, e na sequência vem a tropa de choque. Uma relação dialética bastante conhecida, mas indesejável, que invariavelmente culmina em uma série de violações ao direito de protesto e, quase sempre, em nenhuma responsabilização de seus autores.
Foi assim nos protestos contra a Copa do Mundo, foi assim nos protestos contra o aumento da tarifa do transporte público, e está sendo assim nos protestos dos estudantes secundaristas contra a proposta de reorganização escolar feita pelo governo de São Paulo.
Diante do comunicado feito da noite para o dia de que o número de escolas públicas no estado seria reduzido e que milhares de alunos seriam realocados para escolas mais distantes, a reação foi natural: uma onda de ocupações de escolas em todo o estado – quase 200 segundo dados oficiais – e a deflagração de protestos de rua e bloqueios de grandes vias da capital.
A queixa dos estudantes é a de que a medida foi imposta sem o devido diálogo ao longo de sua formulação. Eles afirmam não terem sido consultados nem tido a oportunidade de expressar suas opiniões e de participar da construção da proposta, da qual a maioria parece discordar. A partir disso, iniciaram a jornada de protestos.
A ocupação do espaço público como estratégia de reivindicação voltou a se tornar uma prática corriqueira no Brasil depois das manifestações que tomaram o país em junho de 2013. E assim como ocorreu naquela época, o Estado brasileiro parece ainda não saber lidar com o direito legítimo de se manifestar, adotando uma única postura frente aos protestos: acabar com eles.
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A Polícia Militar tem desempenhado um papel chave na estratégia de sufocar manifestações, utilizando técnicas repressivas, desproporcionais e muitas vezes perigosas não apenas para os manifestantes, mas para toda a população.
O tratamento dispensado aos estudantes paulistas não tem sido diferente. O que se tem visto é o emprego de um contingente excessivo de policiais, que se utilizam de bombas de gás e balas de borracha contra manifestantes, com muitos deles sendo detidos sem aparente motivo. O agravante dessa vez é que todos esses episódios vêm acontecendo com jovens na maioria das vezes com menos de 18 anos.
Vale ainda ressaltar que, para além da violência física, há outras violações acontecendo. Advogados têm sido impedidos de acompanhar estudantes detidos; comunicadores têm sido impedidos de cobrir ações policiais contra manifestantes.
É extremamente preocupante que o Estado responda com esse nível de truculência a estudantes que reivindicam seu direito à educação e à participação nos rumos de uma política pública que afeta suas vidas diretamente. O direito de manifestação é um importante instrumento de luta social, responsável por grandes mudanças ao redor do mundo em incontáveis momentos da história - ainda que não seja um direito absoluto, devendo ser balanceado com outros direitos, como o de ir e vir.
No entanto, é preciso reconhecer que está na natureza de um protesto chamar a atenção da parte da população não envolvida com o tema, causar reflexão, e até mesmo incômodo – e isso só se faz com a ruptura parcial do estado de normalidade de uma cidade.
A tropa de choque da Polícia Militar interveio de maneira violenta em todas as manifestações dos estudantes em São Paulo ocorridas nos últimos dias. Em entrevista à imprensa no dia primeiro de dezembro, o secretário de segurança pública de São Paulo, Alexandre de Morais, afirmou que "a função da Secretaria da Segurança Pública e da polícia nesses acontecimentos é garantir que não haja dano ao patrimônio público" e que o governo não iria "permitir que fiquem agora obstruindo as vias principais de São Paulo".
Declarações como esta demonstram que muitas autoridades parecem não considerar a obrigação do Estado em garantir o direito de manifestação e do papel dos agentes de segurança pública em zelar pela segurança dos manifestantes e demais pessoas presentes em um local de protesto. Na prática, isso costuma resultar em violações das mais diversas, como mostra a grande quantidade de vídeos e fotos que inundaram a internet na última semana.
O direito internacional cada vez mais compreende que a obstrução do trânsito não deve ensejar a repressão de protestos. Ao contrário: nesses casos, o Estado tem o dever de desenvolver planos de operação e procedimentos que irão facilitar o exercício do direito de reunião, incluindo redirecionar o tráfego de pedestres e veículos em certas áreas. Um exemplo vem da Espanha, em que a corte constitucional do país proferiu decisão determinando que "em uma sociedade democrática o espaço urbano não é somente uma área para circulação, mas também para participação".
O anúncio realizado pelo governador Geraldo Alckmin suspendendo a reorganização das escolas demonstra o poder de mobilização e sensibilização que os protestos exercem sobre a sociedade e sobre a política do nosso país. Demonstra também a importância do envolvimento da população na elaboração de políticas públicas e o quanto essa prática se refletiria em políticas mais sensíveis às reais necessidades de todos que serão afetados por elas.
Se cada vez mais a população brasileira se utiliza do direito de protesto como estratégia de cobrar e pressionar políticos pelas mudanças que acreditam serem necessárias para o país, é passada a hora do Estado preparar os seus agentes de segurança para lidarem com essa forma de participação social no sentido de garanti-lo e preservá-lo. É só dessa forma que as cenas que temos visto na última semana - em que adolescentes de 15 anos são feridos por protestar pelo direito à educação - não voltem a se repetir.
Paula Martins é diretora-executiva da ARTIGO 19, uma organização internacional de direitos humanos que atua na defesa e promoção da liberdade de expressão e do acesso à informação pública
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