Cel PM RR Wilson Odirley Valla
1. INTRODUÇÃO.
Conforme já fora salientado na exposição anterior, em face da sanha punitiva que tomou conta da sociedade, capitaneada pela pressão da mídia sensacionalista, além de outras medidas discutíveis, passou-se a considerar inconveniente a permanência nas fileiras da Corporação de praças que se encontram submetidas a IPM ou a processo criminal na Justiça Militar estadual, desprezando-se as regras de procedimentos expressas na legislação própria e no Regulamento Disciplinar em vigor. Insiste-se que a esfera administrativa é completamente autônoma, ou seja, age independente da vontade e das decisões emanadas do Poder Judiciário. Efetivamente esta é a regra geral, mas quando se tratar de aplicação de punição disciplinar praticada em conexão com o crime militar certas regras específicas e próprias devem ser observadas, as quais são exclusivas do direto administrativo castrense.
Ao contrário de algumas insinuações ou apreciações críticas em relação ao posicionamento firmado anteriormente, também partilho da idéia de que os infratores devem ser punidos e sem exceção, porém com o devido respeito aos direitos e prerrogativas atribuídos aos integrantes da Corporação, ainda que acusados em algum tipo de processo. Vale lembrar que os ensinamentos da Deontologia Policial-Militar exigem de quem comanda espírito de justiça. E justiça se faz com a observância da lei, ou seja, com vistas aos relevantes interesses do princípio da legalidade, como um dos mais expressivos princípios da administração pública, na qual a administração militar está inserida.
2. PARTICULARIDADES DO DIREITO DISCIPLINAR MILITAR
a. A forma diferenciada de tratamento dos servidores civis dos militares
Na verdade, a lei não deve permitir a impunidade em qualquer área do Direito. As penas, se necessário, devem ser severas, inclusive com a perda do cargo, posto, patente, graduação, liberdade, bens, prerrogativas, o que for necessário. A sociedade não aceita que o Estado seja representado por pessoas que não respeitam a lei e não obedecem as ordens previamente estabelecidas. Assim, o processo administrativo pode ser célere e efetivo, mas com a observância dos princípios legais, sem que isso signifique a quebra dos poderes outorgados à administração, que detém o poder/dever de punir de forma exemplar todos os infratores, independentemente das posições que ocupam na escala hierárquica.
Mas, a punição efetiva deve ter como fundamento o respeito aos preceitos constitucionais. Ao comentar tais preceitos no processo administrativo militar, Dênerson Dias Rosa, alerta: "Todavia, a questão de punições militares não pode ser disciplinada tão somente com vistas a manter-se sempre a hierarquia e a disciplina, mesmo porque, se estes princípios militares são normas constitucionais, há duas normas que em verdade são princípios constitucionais que em qualquer situação devem ser respeitados e atendidos: a ‘presunção de inocência’ e o ‘direito ao contraditório e à ampla defesa’”. (O princípio constitucional da ampla defesa e o processo administrativo disciplinar militar, p. 02).
Ainda segundo o esclarecido estudioso, "Mesmo havendo a necessidade de procedimentos sumários para manter-se o controle hierárquico da tropa, estes institutos (Presunção de inocência e o Direito ao contraditório e à ampla defesa) devem ser sempre respeitados, caso contrário não se estaria em um Estado de Direito”. O art. 5º da norma fundamental estabeleceu garantias que se aplicam ao processo judicial e administrativo, aliás, exigências já assimiladas em quase todos os setores da Corporação, exceto a presunção da inocência que encontra certa resistência, como, aliás, acontece com uma parcela significativa da sociedade. Além disso, o ato processual ou administrativo, para ter assegurado seus efeitos, deve também preencher as formalidades e os demais requisitos estabelecidos em lei e seus regulamentos, os quais expressam as peculiaridades decorrentes da atividade.
A Constituição Federal, à luz do princípio da supremacia constitucional, encontra-se no vértice do ordenamento jurídico, e é a Lei Suprema de um País, na qual todas as normas infraconstitucionais buscam o seu fundamento de validade, incluindo-se a qualificação expresssa dos princípios da disciplina e hierarquia como base da organização institucional das forças militares e auxiliares, devido à natureza especial da atividade militar.
Corroborando com isso, em relação às particularidades da investidura militar, cabe destacar, reproduzindo parte do conteúdo do parecer nº 008/2003-PGE, de 30 de dezembro de 2002, e acolhido, na íntegra, pelo Procurador-Geral do Estado. No referido parecer, na página 7 e subseqüentes, é colocado de forma inequívoca o seguinte:
Agora cabe analisar porque a Constituição (tanto Federal como Estadual), tratou de forma diferenciada os servidores civis dos militares. A redação originária da Constituição da República incluía no mesmo título de ‘servidores públicos’ os chamados ‘servidores civis’ e os ‘servidores militares’ (Título III, Capítulo VII – Da Administração Pública), separando as normas pertinentes a cada qual em seções (Seção II – Dos servidores públicos civis e Seção III – Dos servidores públicos militares).
Essa situação foi alterada por ocasião da promulgação da Emenda Constitucional nº 18, de 06.02.1998, que excluiu da condição de servidores públicos os militares. (Grifou-se). Eis o seu teor:
‘Art 2º - A Seção II do Capítulo VII do Título III da Constituição passa a denominar-se ‘DOS SERVIDORES PÚBLICOS’ e a Seção III do Capítulo VII do Título III da CF/88 passa a denominar-se ‘DOS MILITARES DOS ESTADOS, DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS.’
Assim, a partir dessa Emenda Constitucional, conforme leciona CARMEM LÚCUA ANTUNES ROCHA, iniciou-se a mudança na concepção constitucional do tema ao excluir ‘da condição de espécie servidores públicos, os militares, afastados, então, dos princípios que regem os servidores civis, únicos, agora, a serem considerados sob a designação de ‘servidores públicos’, (in Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos, Editora Saraiva, SP, 1999, p. 85).
No mesmo sentido, temos o ensinamento de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO que, ao referir-se aos servidores públicos civis e militares, menciona que ‘essa é a primeira classificação dos servidores públicos e obedece a dois ramos básicos de funções públicas: a civil e a militar. É a Constituição Federal que separa os dois agrupamentos, traçando normas específicas para cada um deles. As regras aplicáveis aos servidores públicos civis se encontram entre os art. 39 a 41 da CF. De acordo com o novo sistema introduzido pela Emenda Constitucional nº 18/98, há o grupo dos militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios (art. 42 e parágrafos, CF) e o dos militares das Forças Armadas, integrantes da União Federal (art. 142, § 3º, CF). (in Manual de Direito Administrativo, 4ª edição, Lúmen Júris, RJ, 1999, p. 402).
Assim, para os militares dos Estados os direitos, prerrogativas e obrigações decorrem diretamente da Constituição Federal (art. 42) e da Constituição Estadual (art. 45). (Grifou-se).
Por sua vez, o art. 45, § 6º prevê que é a lei que vai estabelecer sobre os direitos, garantias e as vantagens dos militares estaduais.
E, com meridiana clareza, conclui a Procuradora do Estado Dra. ARIANA DE N. PETROVSKY GEVAERD que a legislação que regulamenta a matéria é a Lei Estadual nº 1.943, de 23/06/54 (Código da Polícia Militar do Estado do Paraná), isto é, a legislação específica, peculiar ou própria relativa à Polícia Militar. Pois bem, tais disposições estão expressas no § 4º do art. 1º da referida lei: “Os deveres, responsabilidades, direitos, recompensas e prerrogativas dos militares da Corporação, são regulados pelo presente Código”. Portanto, disposições perfeitamente acolhidas pela Constituição Federal e, como tal, garantidoras da singularidade dos militares estaduais diante da lei.
Para o melhor entendimento das relações entre o crime militar, transgressão disciplinar e as cominações das respectivas penas torna-se imprescindível a interpretação sistêmica das normas constitucionais, bem como, daquelas infraconstitucionais especificas e próprias. A interpretação sistêmica da lei, segundo Ada Pellegrini Grinover, é necessária para determinar o seu significado e fixar o seu alcance, como ela mesma diz: “Os dispositivos legais não têm existência isolada, mas se inserem, organicamente, em um ordenamento jurídico, em recíproca dependência com as demais regras de direito que o integram, de modo que, para serem entendidas, devem ser examinadas em suas relações com as demais normas que compõem aquele ordenamento e à luz dos princípios gerais que o informam” (Teoria Geral do Processo, p. 101).
A primeira dificuldade acontece pela interpretação literal da Súmula nº 18 do STF que, em alguns casos, além de interpretada é até reproduzida erroneamente. A bem da verdade, o seu enunciado – “Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público”, foi decorrente da interpretação do art. 200 da Lei Federal nº 1.711, de 28/10/52 (Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União), cujo teor vigente era o seguinte: “As cominações civis, penais e disciplinares poderão cumular-se, sendo umas e outras independentes entre si, bem assim as instâncias civil, penal e administrativa”.
No entanto, a Lei Federal nº 8.112, de 11/12/90 (Novo Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União), em seu art. 125 manteve o mesmo regramento em relação a cumulatividade das sanções civis, penais e administrativas das cominações, porém, o art. 126 trouxe uma novidade, inclusive em relação ao que o STF já havia se pronunciado, ou seja: “A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria”. Para tanto, não há mais o que se discutir sobre falta residual a ser apurada, nem punição administrativa a ser imposta ao servidor público civil quando ocorrer a absolvição criminal nas condições previstas no art. 126 do referido estatuto.
a. Situações específicas de tratamento dos militares e seus reflexos no direito disciplinar militar
Além disso, outras situações, em razão de suas peculiaridades, a Constituição e a legislação infraconstitucional trataram de forma diferenciada os militares dos servidores públicos. Vale a pena recordá-las.
1) Constituição Federal/88. (Com as modificações introduzidas pela EC nº 18, de 1998).
Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.
Art. 125. ...............................................................................................................................................
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vitima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficias e da graduação das praças. (Dispositivo já alterado pela EC 045/04, o que nada muda com relação à jurisprudência já firmada sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças).
Art. 142. ...............................................................................................................................................
§ 2º - Não caberá "habeas-corpus" em relação a punições disciplinares militares.
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:
I - .........................................................................................................................................................
VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra;
VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior;
X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.
Observe-se que, diferentemente do que é estabelecido para o civil, a própria Constituição assegura ao oficial o julgamento nas condições do inciso VI do art. 142, isto é, depois de condenado na justiça comum ou militar à pena privativa de liberdade superior a dois anos. Convém lembrar que esse julgamento começa com processo judicialiforme, conhecido na vida castrense como Conselho de Justificação. É de se ressaltar que o oficial, tanto das forças armadas quanto das forças auxiliares, com tal prerrogativa não detém apenas a estabilidade, mas a vitaliciedade. Já, para a praça o tratamento é diferenciado: enquanto a condenação à pena privativa de liberdade, por tempo superior a dois anos, importa sua exclusão automática das forças armadas, para a praça das polícias militares e dos corpos de bombeiros, segundo a interpretação dada quanto à ressalva estabelecida no § 4º do art. 125 da própria norma constitucional, no caso de condenação por crime militar definido em lei, assunto já sumulado pelo STF, a praça somente poderá ser excluída após o tribunal competente ter decidido pela perda da respectiva graduação, mediante processo autônomo e específico. Conforme já precedentes, o referido tribunal poderá, também, decidir de forma contrária, isto é, pela possibilidade de a praça permanecer na Corporação, considerando todos os elementos de seu passado ao fato que originou a condenação.
Não obstante, a Súmula n° 673 do STF tenha dado, em razão da polêmica sobre a aplicação da perda da graduação das praças, uma interpretação de caráter geral, afirmando que “o art. 125, § 4º, da constituição, não impede a perda da graduação de militar mediante procedimento administrativo”, tal decisão implica reconhecer que a prática de ato incompatível com a função militar pode acarretar a perda da graduação como sanção administrativa, principalmente no caso de transgressões disciplinares puras e para aquelas em conexão com a prática de crime julgados pela justiça comum. Nestes casos tem o Comandante o poder discricionário, o qual lhe dá legitimidade indiscutível para instaurar o processo administrativo com vistas à aplicação de punição disciplinar, incluindo-se a exclusão. Mesmo assim, convém ressaltar, que tal processo deverá ser revisto no caso de absolvição pela inexistência do fato ou da sua autoria. Situação, aliás, da doutrina e da jurisprudência agora objetivamente assentada aos militares via § 3º do art. 14 do RDE, cuja aprovação se deu pelo Decreto federal nº 4.346, de 26/08/02. Em relação àquelas transgressões militares praticadas em conexão com o crime militar, segundo os cânones da legislação em vigor, independentemente do enunciado retromencionado, existem sim particularidades a serem observadas no direito administrativo militar.
2) Lei Federal nº 6.880, de 09/12/80. (Estatuto dos Militares).
Art. 42. A violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específicas.
§ 1º A violação dos preceitos da ética militar será tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer.
§ 2° No concurso de crime militar e de contravenção ou transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, será aplicada somente a pena relativa ao crime.
Ao se comparar a forma da cominação de penas pela violação das regras contidas no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis e aquelas previstas para a violação dos deveres militares notam-se diferenças marcantes, cujos detalhes se encontram na regulamentação específica, isto é, no Regulamento Disciplinar de cada força singular, porém, todas em conformidade com o § 2º, art. 42 do referido Estatuto. Tal acontece, repetindo, porque a transgressão disciplinar militar não se equipara à transgressão do servidor público civil, por mais grave que seja a respectiva infração funcional. Tanto é assim que, dependendo do grau da ofensa ou violação, uma transgressão disciplinar militar poderá ser considerada como crime militar e uma infração penal militar poderá ser descaracterizada para transgressão. Desta pode resultar em pena privativa da liberdade, como a prisão e a detenção disciplinar até 30 (trinta dias). Essa singularidade não ocorre na transgressão disciplinar do servidor público civil. Aí se tratam de normas que não transcendem os limites da própria administração. Portanto, o Regulamento Disciplinar como o Código Penal Militar tutelam os mesmos bens jurídicos, traduzidos no dever militar, e o legislador quis deixar de forma indubitável, na legislação estatutária e disciplinar castrense, que a ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência é o dever jurídico.
3) Decreto Federal nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. (Regulamento Disciplinar do Exército).
Art. 14. Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.
§ 1o Quando a conduta praticada estiver tipificada em lei como crime ou contravenção penal, não se caracterizará transgressão disciplinar.
§ 2o As responsabilidades nas esferas cível, criminal e administrativa são independentes entre si e podem ser apuradas concomitantemente.
§ 3o As responsabilidades cível e administrativa do militar serão afastadas no caso de absolvição criminal, com sentença transitada em julgado, que negue a existência do fato ou da sua autoria.
§ 4o No concurso de crime e transgressão disciplinar, quando forem da mesma natureza, esta é absorvida por aquele e aplica-se somente a pena relativa ao crime.
§ 5o Na hipótese do § 4o, a autoridade competente para aplicar a pena disciplinar deve aguardar o pronunciamento da Justiça, para posterior avaliação da questão no âmbito administrativo.
§ 6o Quando, por ocasião do julgamento do crime, este for descaracterizado para transgressão ou a denúncia for rejeitada, a falta cometida deverá ser apreciada, para efeito de punição, pela autoridade a que estiver subordinado o faltoso.
4) Lei estadual nº 1.943, de 23/06/54. (Código da Polícia Militar).
Art. 1º. ..................................................................................................................................................
§ 5º Consideram-se subsidiários deste Código os regulamentos da Corporação, o RDE e o Regulamento de Continências, Honras e Sinais de Respeito das Forças Armadas. (A definição de RDE está expressa na alínea “q” do art. 304).
Art 106. A inobservância ou negligência no cumprimento do dever militar, na sua simples manifestação, constitui transgressão prevista nos regulamentos disciplinares. A violação desse dever é crime militar, consoante os códigos e leis penais.
Parágrafo Único. No concurso de crime militar e transgressão disciplinar é somente aplicada a pena relativa ao crime.
Art. 109. A inobservância, falta de exação ou negligência no cumprimento dos deveres especificados em lei e regulamentos, acarreta responsabilidade funcional, pecuniária, disciplinar ou penal, consoante a legislação em vigor.
Como se pode observar, tanto o Estatuto dos Militares como o Código da Polícia Militar estão assentados nos mesmos pressupostos do poder vinculado ao tratarem do concurso de crime militar e transgressão disciplinar militar. Por outro lado, o próprio Regulamento Disciplinar do Exército - Decreto Federal nº 4.346, de 26/08/02 – curvando-se à imposição do § 2º do art. 42 da Lei Federal nº 6.880, de 09/12/80, limitou, pela vinculação expressa, a competência da autoridade para aplicar a pena disciplinar através do art. 14 e seus parágrafos, determinando os elementos e requisitos necessários à sua formalização. Assim, o Poder vinculado estabelece para o agente público inteira limitação ao enunciado da lei em todas as suas especificações, sob pena de praticar ato nulo ao desviar-se do padrão imposto. Pelo princípio da legalidade o administrador deve observar, de forma fidedigna, todos os requisitos expressos na lei como da essência do ato vinculado. Sua inobservância mediante omissão ou diversificação na sua substância, nos motivos, na finalidade, no tempo, na forma ou no modo indicados torna o ato inválido, podendo, assim, ser reconhecido pela Administração ou pelo Judiciário, se o requerer o interessado. Logo, se o Comandante aplicar pena disciplinar em desacordo com as regras impostas pelo parágrafo único do art. 106 da Lei 1943/54 e pelo art. 14 do RDE estará praticando excesso de poder. E nem poderia ser diferente, não sendo aceitável que o ato praticado com abuso de poder seja mantido sob a proteção da lei apenas porque se trata de disciplina militar.
A aplicação sistêmica dos princípios constantes nos dispositivos apontados não admite outra interpretação de foro íntimo, que não seja a taxatividade da própria legislação. Desta forma a lei deve funcionar como balizamento mínimo e máximo na atuação disciplinar do Comandante. Por outro lado, para os funcionários civis a situação é diferente, daí certa confusão em relação aos militares, particularmente quando se persiste na aplicação literal e isolada das Súmulas nº 18 e 673 do STF.
Assim, a não observância das regras às quais está sujeito o militar poderá levá-lo a um processo-crime, ou a um processo administrativo ou, conforme o caso, a ambos. No primeiro caso, o militar poderá perder a sua liberdade, como ocorre com qualquer pessoa que venha a praticar um ilícito previsto no Código Penal e nas Leis Especiais. No processo administrativo a conseqüência mais grave é perda do posto ou da graduação, mas em qualquer situação, até que se prove o contrário, deverá ser considerado inocente. Assim preceitua a Constituição Federal.
O que autor quis colocar para a discussão com o artigo “Aplicação de punição disciplinar de exclusão de praças sujeitas a inquérito policial-militar ou a processo na Justiça Militar Estadual”? Resposta: apenas o óbvio, diante do que a lei expressamente determina. Resumindo, em outras palavras.
1) Tem sido comum, em diversos inquéritos policiais-militares (IPM), o encarregado concluir ter havido cometimento de transgressão disciplinar pelo(s) indiciado(s). Nesse caso, tem sido regra na Corporação aplicar, imediatamente, a punição disciplinar correspondente, sem aguardar o pronunciamento da Justiça Militar sobre a solução do inquérito. Significativa parcela da oficialidade da Corporação ainda não recepcionou ou não aceita a questão do princípio da relação de dependência da transgressão disciplinar ao crime militar, persistindo o entendimento de que autoridade administrativa deve possuir total discricionariedade e autonomia para impor sanção aos seus subordinados.
2) A legislação pertinente – Código Penal Militar (CPM) e o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) – este aplicado na Corporação por imposição do § 5º do art. 1º da Lei estadual nº 1.943/54, mostra que há uma estreita relação entre o crime militar e a transgressão disciplinar. Essa ligação fica bem clara no art. 106 da citada lei e no art. 14 do RDE, pelos quais se verifica que a diferença está basicamente nas circunstâncias em que a violação dos preceitos, deveres e obrigações foi cometida. É fácil constatar a proximidade entre algumas transgressões constantes no Anexo I do RDE e os crimes previstos no CPM. A relação é de quantidade e não de qualidade. Aliás, a relação de qualidade da transgressão disciplinar acontece quando o militar pratica crime de natureza comum.
3) Para que se possa uniformizar o procedimento no âmbito da Corporação, quanto ao entendimento sobre qual a atitude correta e perfeitamente legal, deve-se levar em conta as seguintes considerações:
a) a transgressão disciplinar é a inobservância ou negligência no cumprimento do dever militar, na sua simples manifestação. A violação desse dever é crime militar, consoante os códigos e leis penais (Art. 106, Lei 1943/54). Já para o RDE é qualquer violação dos preceitos de ética, dos deveres e das obrigações militares, na sua manifestação elementar e simples, distinguindo-se do crime, militar ou comum, que consiste na ofensa a esses mesmos preceitos, deveres e obrigações, mas na sua expressão complexa e acentuadamente anormal. Ambas as definições são equivalentes, como, também, ambas as legislações expressam a ressalva de que no concurso de crime militar e transgressão disciplinar é somente aplicada a pena relativa ao crime;
b) um fato considerado transgressão disciplinar pelo encarregado do IPM pode vir a ser enquadrado como infração penal pela Justiça Militar estadual e vice-versa;
c) um fato considerado transgressão disciplinar pelo encarregado do IPM pode não sê-lo pela Justiça Militar estadual e vice-versa;
d) um militar punido por um fato considerado inicialmente transgressão disciplinar, fato este posteriormente enquadrado como crime militar, terá sido punido duplamente pela mesma falta;
e) ao final de um IPM, a aplicação de punição relativa a uma transgressão disciplinar da mesma natureza de um crime – crime militar - cometido pelo mesmo militar, contraria expressamente o parágrafo único do art 106 do Código da Polícia Militar e o § 4º do art. 14 do RDE; e
f) um fato, cuja apuração exija a instauração de IPM ou sindicância, já terá normalmente um grande lapso de tempo entre o cometimento do mesmo e a aplicação da punição correspondente – § 5º do art. 14 do RDE. Na hipótese do § 4º, a autoridade competente para aplicar a pena disciplinar deve aguardar o pronunciamento da Justiça, para posterior avaliação da questão no âmbito administrativo, evitando-se que o militar seja punido injustamente ou duplamente pela mesma falta.
4) Na eventualidade de condenação pela prática de crime militar definido em lei, o STF, em reiteradas decisões, já se manifestou que a perda da graduação das praças das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares, em decisão de 2º grau, não ocorre mais como pena acessória da condenação criminal à prisão superior a dois anos prevista no artigo 102 do Código Penal Militar (CPM), mas em procedimento autônomo (Conselho de Disciplina) que corre perante o Tribunal de Justiça ou do Tribunal de Justiça Militar, no Estado onde este existir.
Tais orientações constam inclusive da diretriz do comandante do Exército emitida pela Nota n° 008/A2 - Circular - de 20 de junho de 2000. Como se vê, o direito administrativo militar possui particularidades que o afastam do direito administrativo aplicado aos funcionários públicos civis. Embora o direito administrativo militar seja um ramo autônomo do direito, possuindo seus próprios fundamentos e princípios, estes possuem estreitas relações com o direito penal militar, sendo que muitas faltas administrativas podem levar a um processo crime perante o Juiz de Direito e os Conselhos que compõem a Justiça Militar estadual. Por isso os processos administrativos, a exemplo da Sindicância, Conselhos de Justificação e de Disciplina, subordinam-se às regras estatutárias, não podendo extrapolar os limites estabelecidos na legislação específica estadual que fixa os direitos, deveres, responsabilidade e prerrogativas, e no caso específico do Paraná é a Lei nº 1.943/54. Além disso, os processos administrativos, segundo determinação constitucional, devem possibilitar todos os recursos a eles inerentes. No caso específico, o sobrestamento do processo administrativo, quando o fato gerador também for crime de natureza militar, aguardando a solução do processo deste último, é a medida recursal que certamente evitará distintas decisões, ou a revisão, para se corrigir a injustiça ou ilegalidade na aplicação de sanção administrativa, no caso da absolvição judicial que negue a existência do fato ou da sua autoria, independente da jurisdição.
A prudência da Administração no aguardo da solução do IPM pela justiça castrense está relacionada também à imposição constitucional de que a Justiça Militar estadual destina-se ao julgamento dos militares dos estados nos crimes militares definidos em lei (Art. 125, § 4º, da C F). Com base nessa exigência constitucional positiva, frise-se, um ex-militar estadual, portanto, já na condição de civil não mais poderá ser julgado perante a Justiça Castrense estadual. Houve, portanto, a intenção explícita do legislador constituinte impedir que o civil fosse processado e julgado pela Justiça Militar estadual. Caso isso aconteça poderá propor um habeas corpus para trancamento da ação penal militar, aliás, esta também é a recomendação de renomados juristas que militam no campo do Direito Administrativo. Os militares federais são julgados perante a Justiça Militar Federal, a qual poderá julgar civis caso estes venham a praticar algum crime militar, próprio ou impróprio, no interior de uma Organização Militar (OM), em uma área sujeita a administração militar ou em co-autoria com outro militar. Mesmo assim, os comandos das forças armadas cumprem as disposições expressas na legislação, preservando o direito do militar em ser julgado em foro militar pela prática de crime militar, aguardando o pronunciamento da Justiça, para posterior avaliação da questão no âmbito administrativo. Igual direito para os militares paranaenses está previsto na alínea “i” do art. 112 do Código da Polícia Militar. Não fosse assim a própria lei não determinaria, para os crimes de deserção e insubmissão, que somente depois de submetida à inspeção de saúde e, quando julgada apta para o serviço militar será a praça reincluída e, a partir daí, reiniciado o respectivo processo na Justiça castrense.
Assim, repito, essa precipitação administrativa tem causado dificuldade na aplicação da legislação penal militar, sem contar na perda de tempo, de recursos humanos, materiais e financeiros despendidos inutilmente, pois inúmeros processos na Justiça Militar estadual simplesmente são arquivados porque administrativamente as praças já foram punidas ou excluídas da Corporação, como aconteceu, há alguns anos atrás, com aqueles bombeiros-militares que participaram de um início de greve (motim) nas instalações do Corpo de Bombeiros do litoral, apenas para citar este exemplo. Além disso, perpetua-se a sensação de impunidade, dando a falsa impressão de que a Justiça Militar não funciona, pois no fundo torna-se um bom negócio para quem é acusado da prática de um crime militar ver-se apenas sancionado administrativamente. É conveniente lembrar que o art. 392 do CPPM quando faz restrição ao licenciamento do militar sub-judice, pretende evitar que o indiciado venha a furtar-se aos atos processuais. Portanto, o militar estadual que praticar crime militar, exceto os dolosos contra a vida, deve ser submetido a julgamento em foro especial e, se condenado à pena privativa da liberdade, recolhido em prisão especial e submetido ao procedimento específico para a perda da patente ou da graduação, cuja confirmação pelo Tribunal de Justiça implica, aí sim, na exclusão e transferência para um presídio comum. Nesse sentido, o Egrégio Superior Tribunal Militar assim decidiu: “Causa sérios transtornos à Justiça Militar o Licenciamento de Praças indiciadas em inquérito policial militar ou que responde a processo no foro castrense”. (Correição Parcial nº 13.957).
3. CONCLUSÃO
Diante do exposto, frise-se, não existe fundamento que permita aplicação de punição relativa a uma transgressão disciplinar da mesma natureza de um crime – crime militar - cometido pelo mesmo militar, visto que contraria expressamente o parágrafo único do art 106 do Código da Polícia Militar e o § 4º do art. 14 do RDE. Entretanto, em nenhum momento, pelo artigo divulgado anteriormente buscou-se suprimir da administração militar seu legítimo direito de punir o militar faltoso com os princípios de hierarquia e disciplina, conforme entendimento de alguns, e nem facilitar a permanência de maus profissionais nas fileiras da força. Mas, a punição não deve ser arbitrária, sendo necessário assegurar ao militar, além da ampla defesa e do contraditório, em atendimento ao art. 5º, inciso LV, da CF, também a presunção da inocência, o processo legal com os meios e recursos a ele inerentes, respeitando, em decorrência do princípio da legalidade, os direitos, deveres, responsabilidades e prerrogativas previstos no Código da Polícia Militar e, por imposição deste, seguir as regras estabelecidas na legislação subsidiária em vigor, que no caso ainda é o RDE.
A não observância destes princípios significa o desrespeito às regras do jogo, "rules of the game", que em um Estado Democrático de Direito, como observa Luiz Flávio Gomes é previamente estabelecido, e se aplica a todos os cidadãos, sejam eles civis ou militares, tanto na esfera judicial como na administrativa.
Para finalizar, a solução das polícias militares passa, necessariamente, por medidas mais amplas, embora a sanção, por infração ao dever profissional, seja um procedimento indispensável de saneamento interno. Inicia com o processo de seleção direcionado àqueles possuidores de qualidades morais, psicológicas e físicas adequadas e que sejam submetidos à formação profissional competente, contínua e meticulosa, com atenção especial às questões do dever profissional, da ética e dos direitos humanos. Do mesmo modo, a aptidão e o desempenho devem ser avaliados periodicamente mediante um eficiente sistema de controle e que esteja próximo do homem. É o mínimo desejável. Para completar, com o respaldo de numa política de pessoal que cultive a auto-estima e incentive o policial a permanecer e a fazer carreira honesta na corporação, sobretudo, inspirada na força dos exemplos de competência e integridade daqueles que comandam os vários segmentos das corporações milicianas. Somente assim se poderá falar em uma nova polícia, na qual os desvios funcionais passariam a se constitui na exceção, ao contrário do que vem acontecendo já há algum tempo nas corporações milicianas.
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