por Roberto Amaral — última modificação 15/07/2014 15h20
Ao negar a tortura, nossa oficialidade permanece ligada ao seu pior passado e se revela despreparada para o papel que lhes reserva a democracia. Por Roberto Amaral
Antonio Cruz / Agência Brasil
Celso Amorim ao lado dos comandantes das Forças Armadas em maio. O Ministério da Defesa, comandado por ele, aceitou os relatórios apresentados pelos chefes de Aeronáutica, Exército e Marinha
Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, respondendo a pedido de informações da Comissão Nacional da Verdade, declararam, em três relatórios, autônomos mas aparentemente escritos pelo mesmo redator, que não houve desvio de finalidade no uso de instalações militares durante a ditadura. Uma de duas: ou a declaração, pronunciamento oficial atendendo a pedido oficial de informações, é simplesmente cínica (portanto institucionalmente inaceitável), ou, pior ainda, é a aterradora confissão de que as torturas e os assassinatos não são considerados ‘desvio de finalidade’. Por uma razão muito simples: até as pedras do deserto sabem que houve tortura e assassinatos contra perseguidos políticos da ditadura. Torturas, assassinatos, ocultação de cadáveres levados a cabo em dependências do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.
Para refrescar a memória dos desmemoriados, cito, entre dezenas, três sítios militares do Rio de Janeiro nos quais a tortura e o assassinato de presos campeou: a Ilha das Flores, a Base Aérea do Galeão e a Polícia do Exército, o famigerado quartel da rua Barão de Mesquita nº 425, na Tijuca. Neste, entre outros, sequestrado, espancado, torturado até o último vagido e, afinal, empalado, morreu, assim assassinado, o meu amigo Mário Alves de Sousa Vieira, dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Deixou de gemer no dia 17 de janeiro de 1970, ano da graça do tricampeonato e do ‘Pra frente Brasil’, do ‘milagre econômico’ e da regência do general Médici, o presidente luciferino que (dizia ele) descansava ao final do dia ouvindo as sempre boas notícias do Jornal Nacional da Rede Globo então (isto é muitos anos antes da autocrítica) a emissora oficial do regime.
Antígona moderna, Dilma Alves, a companheira de Mário, não teve o direito de enterrar o marido. Até hoje – passados 44 anos! –sua família e seus amigos aguardam o corpo que lhes é devido.
Informo ao comandante da Aeronáutica que na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, (naquela altura sob o comando do brigadeiro João Paulo Burnier, inefável exemplo das ilimitadas possibilidades da degenerescência humana, foi torturado e assassinado, entre outros mártires, o quase menino Stuart Edgar Angel Jones (madrugada de 15 de maio de 1971); informo ao comandante do Exército que Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones, companheira de Stuart, uma menina, foi torturada, estuprada e assassinada (30 de novembro de 1973) nas dependências do Exército brasileiro, precisamente na Polícia do Exercito da rua Barão de Mesquita. Confiando na leitura dos comandantes da Aeronáutica e do Exército, ou de seus assessores, ou de seus familiares, seus filhos e filhas e amigos, noras e genros e netos, transcrevo o depoimento de João Luís, pai de Sônia:
"Sou João Luís de Morais, orgulhoso pai de Sônia Maria de Morais Angel Jones e não menos orgulhoso sogro de Stuart Edgard Jones, ambos sacrificados pela ditadura militar que se instalou neste país em 1964. Stuart foi torturado e assassinado pela Aeronáutica do Brasil. Preso, sofreu torturas no DOI-CODI da Barão de Mesquita e no CISA [O mal-afamado Centro de Informações da Aeronáutica, irmão siamês do CENIMAR e do DOI-CODI], sendo finalmente arrastado pelo pátio do Galeão, preso a um Jipe, tendo o cano de descarga dessa viatura introduzido em sua boca para que aspirasse os gases tóxicos; morreu envenenado por esses gases tóxicos. Sônia Maria foi torturada, estuprada e assassinada pelo Exército Brasileiro. Presa em Santos, foi trazida ao Rio para ajustar contas com o DOI-CODI do 1º Exército. Barbaramente seviciada durante 48 horas, foi transferida exangue por consequência de hemorragia interna para o DOI-CODI de SP, onde sofreu novas torturas e finalmente foi assassinada a tiros ditos de misericórdia. Nós não conseguimos responsabilizar as instituições e nem seus agentes e só nos restou fazer isto que estamos fazendo hoje e que faremos sempre, que é contar a verdadeira história da vida de Sônia Maria e de Stuart Angel."
Esse depoimento foi veiculado em rede nacional de rádio e de televisão pelo programa do Partido Socialista Brasileiro levado ao ar no dia 28 de novembro de 1987. Para satisfação de seus autores (o cineasta Silvio Tendler e este escriba) provocou a irritação do general Leônidas, então ministro do Exército, e do presidente José Sarney, sendo, contudo, decisivo, segundo depoimento do sempre saudoso Florestan Fernandes, para que a Constituinte qualificasse a tortura como crime imprescritível e inafiançável, acolhendo emenda do senador e constituinte Jamil Haddad. Tenho uma cópia do vídeo e ponho-a à disposição dos comandantes militares, embora saiba que os serviços de inteligência devem possui-la.
Para continuar dizendo, sem pejo, que não houve ‘desvio de finalidade’ os comandantes estão desafiados a provar que não houve os crimes denunciados, e feita a prova, não lhes sobrará outra alternativa senão processar por injúria, calúnia ou difamação seus denunciantes, entre os quais me incluo. Não o fazendo, estarão reconhecendo que não consideram a tortura e o assassinato ‘desvio de finalidade’, posto que houve sim tortura e assassinatos. A prática era conhecida pelas diversas linhas de comando, donde, por exemplo, a exoneração (por Geisel) do general comandante o II Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, após os assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, nas dependências do Destacamento de Operações Internas-Comando de Informações do II Exército (Rua Tomás Carvalhal, 1030, Paraíso). A tortura foi, por certo tempo, uma política de Estado executada por militares encastelados nos infames DOI-CODIs, muitos dos quais – num antecipado desmentido dos ‘relatórios’ – têm vindo a público para relatar, às vezes até com pormenores, o que fizeram naquela época de horror.
Em qualquer hipótese, a grei dos torturadores constitui percentual mínimo de militares. Por que com essa gente e seus crimes confundir-se, como se confunde hoje, conivente, toda a instituição militar?
Os ‘relatórios’ dos comandantes, lamentavelmente aceitos pelo Ministro da Defesa, que os encaminhou à Comissão da Verdade, encerram uma tragédia: o fato de as Forças Armadas de hoje (que gostaríamos que nada tivessem com as do terrorismo de Estado de ontem) assumirem como tal a responsabilidade ética, histórica e jurídica pelos crimes cometidos pela ditadura, a que não serviram. Quando não os denunciam, quando não permitem sua apuração, quando simplesmente negam sua existência tapando o sol com uma peneira esgarçada, deles, dos crimes de tortura e assassinato, e fraude e ocultação de cadáver, e obstrução à Justiça, tornam-se coniventes e corresponsáveis.
Trata-se de erro grave, pernicioso para a consolidação democrática e a recuperação do papel constitucional das Forças Armadas.
Sabem os militares que podem contar, em seu benefício, com a leniência de nossos tempos; mas sabem igualmente que serão réus condenados pelo tribunal da História, que não conhece nem sursis nem apelação. Da pena moral não há recurso.
O dramático, acima de tudo, é que essa solidariedade é pronunciada pelos mais altos escalões das Forças Armadas, os três comandantes militares respaldados pelo ministro da Defesa (que tem uma biografia para zelar) há exatos 50 anos distantes do golpe militar, e há 30 anos do fim da ditadura. É sabido que os atuais comandantes, assim como a esmagadora maioria dos integrantes que serviram naqueles tempos de horror nada tiveram com os crimes cometidos. Nenhum oficial superior de hoje estava na ativa naquele então. Por que então essa solidariedade? Há nela um comprometimento ideológico ou se trata, apenas, de um equino ésprit du corps?
O vexame (tratemos assim os ‘relatórios’) nos revela o corpo inteiro do anacronismo ideológico de nossas Forças Armadas, imunes às lições do tempo, às lições do mundo e às muitas lições de nossa própria experiência. O povo brasileiro aprendeu com a longa noite do terror, a tão duras penas vivida, o preço e o valor da democracia. Derruído o regime militar, ainda estamos construindo uma sociedade que pretendemos estruturalmente democrática e republicana, sem bolsões autoritários em condições de fraturar o processo constitucional (assim queremos): a história das velhas Forças Armadas do século passado é incompatível com a moderna democracia em construção, e que ainda intentamos consolidar, com muito cuidado, como quem carrega um andor de barro. Mas ocorre que, se as velhas forças sobrevivem nas lideranças de hoje, a nova oficialidade, limpa de preconceitos e parti pris, ainda não foi formada. Neste caso já perdemos pelo menos 30 anos.
Não obstante os clamorosos problemas que nos afligem, ainda gritando por solução, como as desigualdades econômicas e sociais, muito realizamos nesses últimos 30 anos, para além da simples mas fundamental reconstitucionalização e da redemocratização formal. O país, por seus meios, essencialmente graças ao trabalho de seu povo, cresceu, distribuiu renda e modernizou-se; avançou no cenário internacional e nele passou a exercer papel de sujeito; aumentou a escolaridade e obteve progressos na universalização da saúde, aqui com o SUS, não obstante suas conhecidas limitações; avançou nos campos científico e tecnológico, mas avançou principalmente quando logrou a consolidação da democracia (e eis o ponto nodal), esta na qual vivemos, com todos os seus problemas e limitações, mas sempre constituindo um estágio de civilização superior ao brumário da ditadura. Esse avanço, ou progresso, é tanto mais notável quando comparamos os anos vividos após 1985 com aqueles 50 anos que antecederam ao golpe militar de 1964, juncado por insurreições e golpes militares. Construímos de lá para cá um novo Estado, talvez um novo país, somos uma nova sociedade, mas, à falta de vontade política, ou força, ou condições objetivas, não nos foi dado conformar novas Forças Armadas, compatíveis com os novos tempos, ou seja, apartadas do passado. Como demonstram os últimos fatos, nossa oficialidade permanece com o cordão umbilical atado ao passado, ao seu pior passado.
A criação do Ministério da Defesa foi um ganho institucional, mas, lamentavelmente apenas isso. Não logrou derrubar as casamatas do corporativismo tacanho, nem a insularidade militar, nem o descompromisso do quartel com a vida real. A caserna continua pensando e agindo como ostra, fechada em si mesmo e principalmente limitada pela sua pobreza de visão. Míope, seu horizonte é curto.
A atualíssima e necessária e inadiável discussão em torno do papel reservado às Forças Armadas, e nelas com destaque a nova a formação de nossos (novos) oficiais, não é uma simples questão militar, isto é, reservada ao monólogo da caserna. Trata-se de desafio pertencente à sociedade brasileira e discuti-lo, indo ao seu cerne, o currículo das escolas de formação de oficiais, os regulamentos militares etc., é tarefa de todos nós, da imprensa, da academia, dos cientistas sociais, dos políticos e, finalmente, do Congresso.
Na medida em que, recusando-se a mirar o futuro, comprometem-se com um passado sombrio, ainda não totalmente desvelado, nossas atuais Forças Armadas se revelam despreparadas para o papel que lhes reserva a democracia. Aos homens de Estado – a quem cumpre ler o passado para construir o futuro, perseguindo o ideal desconhecido e impedindo a emergência do conhecido indesejável –, cabe a tarefa, ingente e agônica, de realizar a reforma adiada.
O papel de avestruz jamais contribuiu para resolver problemas, e simplesmente negá-los é forma irresponsável de potencializar sua periculosidade. Urge, pois, que as Forças Armadas revejam seu papel naqueles tempos de horror, para que se reintegrem às forças que propugnam por um Brasil democrático, justo e soberano.
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