VIOLÊNCIA NO RIO
Como a milícia se infiltrou na vida do Rio
Gangues cobram 'pedágio' da comunidade para que obtenham serviços básicos
Rio de Janeiro
A milícia, que parece estar por trás da metade dos assassinatos de nove pré-candidatos e vereadores na região da Baixada Fluminense nos últimos oito meses, atua há décadas no Rio de Janeiro e controla cerca de 170 regiões no Estado. Originalmente instituídas como patrulhas de segurança contra traficantes, estas gangues integradas então por policiais, bombeiros e agentes penitenciários, eram até bem vistas pela população e as autoridades. Hoje, explica o delegado Alexandre Herdy, titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas, “a única motivação deles é o lucro”.
Esse lucro não costuma vir das drogas, como no caso do tráfico, mas da extorsão dos moradores dos quais os milicianos cobram taxas por serviços básicos como água, gás, transporte alternativo, venda de imóveis, sinal clandestino de TV, Internet e, claro, segurança. A mensagem é clara: quem não paga não está seguro. O miliciano tenta representar o Estado dentro das favelas. “Pessoas com esse perfil, de cuidador da área, perceberam rapidamente que podiam ganhar dinheiro com isso. Começou com a ideia romântica de proteger a população, até o dinheiro chegar e entenderem a morte como negócio”, explica o delegado Giniton Lages, titular da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense, que investiga se a milícia está por trás dos assassinatos.
Os milicianos, que tradicionalmente têm mais poder na Zona Oeste da capital, estão hoje tentando penetrar na Baixada, deixando um rastro de violência em seu passo. O delegado Lages acompanha com o dedo o hipotético percurso que esses grupos estão fazendo para entrar na região, marcado com uma fileira de alfinetes vermelhos em um enorme mapa na parede. Cada alfinete é um morto. “A morte entra nesse cenário quando a pessoa da comunidade se opõe à milícia ou quando há um racha num grupo atuante nessa região”, explica Lages. Assim como na máfia, a morte é um recado. “Por isso matam com esses requintes de violência, à luz do dia, sabendo que há câmeras”, completa Lages.
Uma década atrás, os integrantes das milícias – hoje em dia com um perfil mais civil, mas que acolhe de ex-policiais a ex-narcotraficantes – posavam nas fotos de campanha com políticos de alto escalão, se candidatavam e até governavam. Em 2010, por exemplo, causou polêmica a divulgação de imagens e um vídeo gravado em 2007 onde o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) inaugurava uma rede de abastecimento de água junto a dois líderes do mais poderoso grupo paramilitar da cidade. Os colegas políticos, o então vereador Jerônimo Guimarães, do PMDB, e o deputado estadual Natalino Guimarães (ex-DEM), foram condenados, posteriormente, a dez anos de prisão, em um presídio de segurança máxima, por formação de quadrilha.
O compadrio começou a deixar de ser tão bem visto a partir de 2008, quando um grupo de milicianos torturou dois repórteres e um motorista do jornal fluminense O Dia que investigavam, precisamente, os vínculos entre milícia e candidatos em uma favela carioca. O escândalo, que estragou para sempre a vida das vítimas que tiveram que fugir do Rio, deixando tudo sem olhar para trás, marcou um antes e um depois na condescendência pública com os milicianos, que optaram pelos bastidores da vida política.
Desde aquele ano, mais de 1.100 integrantes da milícia foram presos, entre eles 219 policiais militares, um deputado estadual e 791 civis, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Rio. Também em 2008, foi concluída uma Comissão Parlamentar de Inquérito das Milícias na Assembleia do Rio, liderada pelo deputado estadual Marcelo Freixo, desde então ameaçado de morte, e que indiciou mais de 250 pessoas. O poder ainda visível da milícia se explica, segundo Freixo, porque as autoridades se concentraram em prender, mas não cortaram suas fontes de renda.
Para o delegado Lages, a entrada dos milicianos em áreas como a Baixada Fluminense se explica, em parte, pelo abandono do Estado. “Nos bolsões de pobreza há uma ineficiência total do Estado, inclusive na segurança. Na Baixada [onde mora cerca de 23% da população do Estado] tem menos policiamento que na Zona Sul”, explica o delegado. “Onde o Estado não consegue chegar, o crime acaba preenchendo o vácuo. Aqui impera o olho por olho. É nesse contexto que os criminosos prosperam.”
Com outras palavras, um morador de Caxias explica porque considera a milícia “um mal necessário”: “Os 'Direitos Humanos' tratam como cidadão o criminoso e um policial que dispara contra um ladrão tem que responder a um processo. Assim a polícia prefere não se envolver e surgem grupos que protegem a população e que fazem o trabalho sujo. É uma Justiça paralela, eu sei que não está correto, mas infelizmente é o que nos resta.”
O delegado, interrompido constantemente durante uma hora de entrevista com apelos dos seus colegas como “acabaram de atirar na gente” ou novos dados periciais sobre os supostos crimes políticos, não está muito otimista: "Os formadores de opinião que conduzem as reflexões no Brasil e no Rio não moram nos bolsões de pobreza. Me explica como eles vão compreender esta realidade?”.
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