Por Egydio Schwade
É justo e necessário o país se mobilizar pelos desaparecidos políticos da Ditadura no Brasil (1964-1984). Entretanto, por que não há o mesmo interesse na busca dos índios desaparecidos durante a Ditadura Militar por se oporem a política do governo sobre seus territórios? Em 1968, o Governo Militar invadiu com a rodovia BR-174, Manaus – Boa-Vista, o território Kiña (Waimiri-Atroari). Em 1975, pelo menos 2000 pessoas já haviam desaparecido, todos pertencentes ao povo Kiña. Isso porque se opunham ao processo de invasão de seu território imposto pelos militares.
O massacre ocorreu em etapas. Na primeira delas quem esteve a frente da construção da rodovia foi o Departamento de Estradas e Rodagem / Amazonas (DER/AM). Os relatórios mensais dos trabalhos sempre se faziam acompanhar com pedidos de armas e munição como este: “Vimos pelo presente, solicitar seu especial obséquio no sentido de ser expedida pelo S.F.I.D.T., uma autorização para compra de 6 revólveres “Taurus” calibre 38 duplo (…), 2 espingardas calibre 16, 53 caixas de cartuchos calibre 16, 16 caixas de balas calibre 38 longo, 25 caixas de cartuchos calibre 20, e 2 caixas de balas calibre 32 simples. Esclarecemos, outrosssim, que referida munição será uttilizada como medida de segurança e de certo modo manutenção (…)”. (Of.DER-AM/DG/No. 170/68 de 04 de abril de 1968. Ass. pelo Eng. Otávio Kopke de Magalhães Cordeiro, Diretor Geral, ao Major Luiz Gonzaga Ramalho de Castro).
Oficialmente a FUNAI era encarregada da política indigenista, mas logo ficou evidente que a a área Waimiri-Atroari ficaria sob o controle militar. A segunda etapa se inicia no ano seguinte. Em junho de 1968, o Pe. João Calleri, nomeado pela FUNAI para a direção dos trabalhos de atração, fez um plano minucioso para os primeiros contatos e posterior fixação dos índios fora do roteiro da BR-174. No entanto, foi obrigado pelo Major Mauro Carijó, Diretor do DER/AM, a mudar o seu plano o que causou a trágica morte do Pe Caleri e seus auxiliares, em outubro de 1968. Isso possibilitou uma intensa campanha de repúdio aos Waimiri-Atroari criando uma situação favorável à intervenção militar brutal.
O Governador do Amazonas, Danilo Areosa, pedia providencias para garantir “a construção da estrada através do território indígena, a qualquer custo”, considerando o índio um inútil, que precisava “ser transformado em ser humano útil à Pátria”. E prosseguia: “os silvícolas ocupam as áreas mais ricas de nosso Estado, impedindo a sua exploração, com prejuízos incalculáveis para a receita nacional, impossibilitando a captação de maiores recursos para a prestação de serviços públicos”. (A Critica / Manaus 27 de novembro de 1968). Seu colega, Governador de Roraima, Fernando Ramos Pereira, completou: “Sou de opinião que uma área rica como essa não pode se dar ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o seu desenvolvimento”. (Resist. Waimiri-Atroari / Marewa / Itacoatiaria / 1983, pg 6).
No final de 1968 o Comando Militar da Amazônia instalou um quartel no Igarapé Sto. Antonio do Abonari, que passou a controlar a vida e o destino dos índios. A partir daí a FUNAI se tornou apenas um joguete do Governo Militar a serviço do 6º BEC – Batalhão de Engenharia e Construção. O abastecimento de armas e munição ficou a cargo do Exército, não demandando mais autorização especial. Trabalhadores, soldados e funcionários da FUNAI invadiam a área indígena enpunhando armas e utilizado-as contra os índios. Revólveres, metralhadoras, cercas elétricas, bombas, dinamite e gás letal, foram algumas das armas utilizadas pelo Exécito na guerra contra os índios durante a
construção da BR-174.
construção da BR-174.
Entre 1972 e 1975 a população Kiña reduziu de 3.000 (estimativa do P. Calleri em 1968, confirmada por levantamento mais minucioso da FUNAI em 1972) para menos de 1.000 pessoas, sem que a FUNAI e os militares apresentassem as causas dessa depopulação. Esses 2.000 Kiña desapareceram sem que fosse feito um só registro de morte. Durante o processo de alfabetização desenvolvido por nós e continuado pelo lingüista Márcio Silva, os Waimiri-Atroari tiveram, em curto período, uma das raras oportunidades de revalarem o que o seu povo sofreu durante a Ditadura, sofrimento que nenhum outro segmento da sociedade brasileira passou.
Desapareceram nove aldeias na margem esquerda do Médio Rio Alalaú; pelo menos seis aldeias no Vale do Igarapé Sto. Antonio do Abonari; uma na margem direita do Baixo Rio Alalaú; três na margem direita do Médio Alalaú; as aldeias do Rio Branquinho, que não aparecem nos relatórios da FUNAI; e pelo menos cinco aldeias localizadas sobre a Umá, um varadouro que ligava o Baixo Rio Camanau, (proximidades do Rio Negro) ao território dos índios Wai Wai, na fronteira guianense. Pelo menos uma delas foi massacrada por bombardeio de gás letal, com apenas um sobrevivente (Sobreviventes dessas cinco aldeias foram nossos alunos em Yawará / Sul de Roraima). A partir do 2º semestre de 1974 as estatísticas da FUNAI começaram a referir números entre 600 e 1000 pessoas e, em 1981, restavam apenas 354.
Em 1987 o Governo Federal passou o comando da política indigenista à responsabilidade da empresa Eletronorte que apenas mudou de estratégia, continuando o controle das informações e a política de isolamento dos índios como ao tempo dos militares.
Essa é uma das histórias envolvendo os povos indígenas e a Ditadura Militar no Brasil. Casos semelhantes podem ser observados com os índios Krenhakarore do Peixoto de Azevedo no Mato Grosso, os Kané (tapayuna ou Beiços-de-pau) do rio Arinos no Mato Grosso, os Suruí e os Cinta Larga de Rondônia e Mato Grosso e outros. No entanto, nenhum desses homens, mulheres e crianças é citado nas relações dos desaparecidos da Ditadura.
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