Nada de novo no front

As raras denúncias de tortura que conseguem sair dos muros dos quartéis também costumam não ir adiante. Os agressores só podem ser julgados criminalmente em tribunais militares, sem responsabilização na justiça federal, que avalia os pedidos de indenizações que ficam a cargo da União. “O crime é julgado pela justiça militar, a reparação por danos morais é na esfera cível”, explica o advogado Everaldo Patriota, vice-presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB. Ou seja, quem acaba arcando com a indenização à tortura praticada nos quartéis é o governo federal.

Questionada sobre os casos em que a União foi condenada a indenizar vítimas de tortura cometidas por militares, a AGU respondeu que “não comenta casos em tramitação judicial, muito menos estratégias processuais, inclusive na relação com os órgãos representados”.

Em março de 2018, com base em um inquérito aberto pelo Ministério Público Militar, o Ministério Público Federal, o MPF, apresentou uma ação civil contra a União por danos morais coletivos pela prática de tortura e perseguição ideológica contra recrutas do 41º Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército em Jataí, no interior de Goiás, a cerca de 320 km de Goiânia.

Na ação civil, o órgão destacou “uma sequência de evasivas e respostas contraditórias” nas respostas do Exército, com documentos distintos aos solicitados sendo entregues pelo Comando “em desconformidade com a realidade dos fatos”.

Segundo a ação, após se irritarem com o cabelo tingido de um recruta, o cabo Valdimar Silva e o sargento Alex Marques conduziram o jovem até a quadra de areia do quartel e o mandaram rastejar no chão. Silva então passou a chutar o soldado e a jogar areia em seu rosto, enquanto Marques assistia. A agressão foi gravada por outro recruta, e ambos acabaram expulsos. Em razão do episódio, o juiz federal Francisco Vieira Neto determinou que o Exército retire de seus formulários de seleção e cadastramento tópicos pertinentes à participação dos candidatos em movimentos religiosos, sociais e políticos, já que as torturas estariam sendo praticadas contra recrutas que se declaravam simpatizantes dos direitos humanos.

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Trecho da ação civil contra a União por danos morais coletivos pela prática de tortura e perseguição ideológica contra recrutas do 41º Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército em Jataí.

 

Imagem: Reprodução/MPF

O ex-sargento Alex Marques, que assistiu à tortura do recruta sem intervir, foi absolvido em julho de 2019 pela juíza Safira Figueiredo, que não viu infração penal no caso. Já o ex-cabo Valdimar Silva só se livraria da acusação de “praticar violência contra inferior” em dezembro de 2020, após recorrer da sentença de Figueiredo, que absolveu o colega, mas condenou Silva.

Coube ao ministro Odilson Benzi, do Supremo Tribunal Militar, decidir, um ano depois, que o crime prescreveu. Segundo o Código Penal Militar, o “crime de violência contra inferior” que, teoricamente, abarca casos leves, prescreve se a detenção não for executada em até dois anos após a denúncia. De qualquer modo, a pena do ex-cabo seria branda: de três meses a um ano de detenção.

Na época, após a repercussão do caso de tortura em Jataí, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, garantiu que o fato era exceção e que seria apurado com rigor.

Apesar do tuíte exortando as investigações, o MPF precisou abrir, em abril de 2019, uma nova ação civil pública sobre mais torturas no mesmo quartel goiano. Dessa vez, por causa de 11 recrutas socorridos pelo Hospital das Clínicas de Jataí. Eles passaram mal em um treinamento de sobrevivência na selva. Parte do grupo foi internada com hipotermia e rabdomiólise, uma ruptura que causa necrose do tecido muscular após trauma ou exaustão física.

Conforme a petição inicial  do MPF, oficiais acompanharam os recrutas no hospital civil para evitar que eles denunciassem os maus-tratos sofridos. Também teriam pressionado enfermeiras, dizendo que, se os termômetros apontavam febre nas vítimas, é porque estavam quebrados. Para investigar o caso, uma sindicância foi aberta pelo quartel, mas usada “como ferramenta para constranger civis” e “intimidação de testemunhas”, segundo a ação. O caso vazou após uma das mães dos recrutas procurar o MPF e ser intimidada pelo oficial encarregado da sindicância que deveria apurar os maus-tratos, e não livrar o Exército.

Os procuradores civis recomendaram o afastamento dos oficiais da sindicância, mas o Comando negou o pedido e moveu um dos recrutas denunciantes para um novo quartel, onde mais tarde ele relatou ter sofrido ameaças de morte. O MPM abriu um inquérito para apurar os fatos denunciados pelo MPF, mas arquivou o caso “pela não identificação de prática de crime militar”.

O Brasil chegou a ser denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a CIDH, em um dos casos mais emblemáticos de tortura nos quartéis brasileiros. Em 1990, o cadete Márcio Lapoente da Silveira, de 18 anos, morreu após o então capitão Antônio Carlos de Pessôa chutar, com o seu coturno, a cabeça e o corpo do recruta, que desmaiara durante um treinamento na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, no interior do Rio.

Desacordado por causa dos pontapés, Silveira ficou três horas sob sol forte sem socorro. A denúncia levou a Secretaria de Direitos Humanos do então governo Dilma a firmar um acordo com a CIDH e com a família do cadete, que havia ganhado na esfera cível o direito à pensão e danos morais contra a União.

Dezoito anos depois, em 2018, uma decisão do Tribunal Regional Federal da 2º Região reverteu as duas condenações e afastou a responsabilidade do ex-capitão Pessôa pela morte do cadete. O tribunal entendeu que o militar não poderia ser responsabilizado por não haver sido condenado criminalmente. De fato, em 1992, a justiça militar julgou o oficial e o condenou por maus tratos a três meses de detenção, mas a execução da sentença foi suspensa por dois anos, e o caso acabou arquivado. Pessôa hoje é coronel.

Atualização – 11 de março de 2021, 9h45

A reportagem foi atualizada para acrescentar a informação de que o Ministério Público Militar denunciou os nove membros das Forças Armadas acusados do assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo em maio de 2019.

Correção – 11 de março de 2021, 18h50
O major Fulgêncio Leitão de Castro e Silva Júnior foi o comandante da 10º Região Militar à época da tortura contra o recruta, e não o comandante da 10º RM. O texto foi corrigido.

Oficiais sabotam investigações de tortura no Exército