Retomo o tema, por nós já tratado, em Revista de Direito Militar, de nº 59/maio/junho 2006, para numa perspectiva mais abrangente, destacar alguns tópicos que considero de extrema relevância para o estudo em questão.
Naquela oportunidade, nosso objetivo foi o de provocar uma reflexão acerca da tipicidadeinerente à conduta daquele que se utiliza de cartão magnético do banco e senha de conta-corrente de pensionista falecido (a) para, de forma continuada, efetuar saques no pagamento depositado, em erro, pelas administrações da Marinha, Exército ou Aeronáutica.
Reformulando ponto de vista feito à época, hoje temos a convicção de que a conduta acima narrada tipifica o delito de estelionato. De fato, aquele que se faz passar por outrem, utilizando-se de cartão e senha de terceiros, para retirada de dinheiro, induz, em erro, mediante fraude, o banco, bem como a Administração Militar.
Outro enfoque que merece ser destacado diz respeito aos dados referentes aos sujeitos ativos dos delitos em menção. Com efeito, os números revelaram considerável aumento da incidência de crimes militares praticados por civil, geralmente parentes ou responsáveis por pensionistas das Forças Armadas (pessoas comumentes doentes ou com idades bem avançadas).
É bem verdade que, hodiernamente, as Administrações Militares, como forma de controle, além de procederem recadastramento anual de pensionistas, realizaram um convênio com o Sistema de Óbitos (SISOB), no qual este órgão repassa para a Administração Militar informações inerentes à óbitos registrados, nos diversos cartórios locais da cidade do Rio de Janeiro. Ocorre que, segundo consta (informações obtidas perante a Marinha), nem sempre este sistema funciona a contento, principalmente quando o cartório está localizado no interior do estado.
Desse modo, os prejuízos causados aos cofres da União, em regra, tem diminuido, não ultrapassando, na melhor das hipóteses, do limite circunscrito as retiradas de numerários representados por 12 (doze) depósitos mensais feitos pelas Administrações Militares (pagamentos mensais dos salários). Após esse período, em razão da dita fiscalização (efetivação do recadastramento), é possível detectar o falecimento dos pensionistas e, de conseqüente, os depósitos são bloqueados. Assim, por exemplo, como soe acontecer, quando o óbito da pensionista ocorre logo após o seu recadastramento, a descoberta da morte tem sido conhecida somente 12 (doze) meses depois, quando de um novo cadastro, o que implica em sucessivos depósitos em erro pela Administração Militar, na conta, durante o referido período.
Registre-se, entretanto, por oportuno, que pesquisa feita pelo Centro de Produção, Análise, Divulgação e Segurança da Informação do Ministério Público Militar (CPADSI/MPM/RJ), realizada no período compreendido entre os anos de 2005-2007, envolvendo os Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (1º CJM), constatou um prejuízo no valor de R$ 14.857.554,55 (quatorze milhões oitocentos e cinqüenta e sete mil, quinhentos e cinqüenta e quatro reais e cinqüenta e cinco centavos), decorrentes de saques irregulares em conta de pensionistas.
Outro ponto digno de preocupação diz respeito à estatística feita durante o citado período (2005/2007). Dos diversos IPM's instaurados e distribuídos ao 3º Ofício/RJ, somente cerca de 50% tiveram autoria identificada. De observa-se que os saques, quase em sua totalidade, ocorrem em banco 24 horas, cujas as imagens dos sacadores, quando existentes, são destruídas em cumprimento à normatização interna dos bancos, no prazo máximo de 3 meses, após os saques. Este procedimento inviabiliza a identificação das operações bancárias mencionadas feitas em terminais de 24 horas, quando não solicitadas às referidas agências dentro do lapso temporal aludido.
Desse modo, quando o óbito da pensionista chega ao conhecimento da administração militar esta, de plano, tem cancelado os futuros depósitos agendados e, dessa forma, quando o autor dos saques retorna ao banco 24 horas, não mais constata o depósito mensal. Destarte, logo percebe que a trama foi descoberta e não mais insiste em posteriores retiradas. Assim, quando é chamado para prestar depoimento em IPM, nega peremptoriamente a autoria da citada operação bancária e, neste aspecto, é beneficiado, na maioria das vezes, pela ausência de provas, pois as aludidas imagens dos caixas eletrônicos já não mais perduram, pelo transcurso decorrido do tempo mencionado (obs: o período compreendido entre a descoberta do óbito da pensionista, a instauração do IPM e o início de diligências tem ultrapassado de três meses).
Em vista disso, vale como sugestão para as diversas Administrações Militares (Marinha, Exército e Aeronáutica ) o não cancelamento dos depósitos de pensões tão logo cientificadas do óbito das pensionistas. Vale esperar novas investidas dos sacadores, por um ou dois meses, para que seja efetivado o bloqueio de pagamentos, tempo necessário para obtenção junto aos bancos das filmagens dos caixas 24 horas. Cuida-se de meio de prova eficaz e seguro para identificação de autoria de crimes desse naipe. Com efeito, caso não haja confissão do autor do fato, bem como movimentações bancárias que identifiquem o operador ( transferências, emissão de cheques e outros), como é costumeiro acontecer nas análises feitas a partir de registro de quebra de sigilos bancários, os IPM's e processos instaurados sucumbem, resultando em inúmeros arquivamentos e absolvições, respectivamente, por insuficiência de provas.
Feita as considerações iniciais e necessárias supra, trago à discussão uma tendência, referente a um fato concreto ocorrido, o qual precisa ser analisada e enfrentada no meio jurídico castrense.
Minha reflexão sobre o assunto surgiu por ocasião de vista de um processo, para apresentação de alegações escritas. O evento em tela tratava de um acusado, civil, aposentado, contando 74 anos de idade, que fora denunciado pela prática do delito de estelionato, em razão de ter efetuado saques bancários na conta da sua falecida genitora, após a morte desta.
Em seu interrogatório, o réu confessou a conduta praticada, ressaltando, contudo, que os saques foram efetuados para quitar gastos remanescentes da morte de sua mãe. Na oportunidade, apresentou documentação demonstrando ter ressarcido à Administração Naval, com juros e correção, valores por ele retirados. Não houve testemunhas nem diligências nestes autos. Passou-se do interrogatório diretamente para as alegações escritas
O episódio em enfoque, por envolver agente que, além de confessar o delito praticado, ressarciu o prejuízo provocado, fato que, raramente, acontece, em casos desta natureza, não pode ser analisado consoante a letra fria da lei, vale dizer, sob o restrito ângulo da tipicidade, ou seja, se o fato é típico e não há excludente aplica-se a sanção descrita na lei.
Temos que, situações com estas características, demandam interpretações sistemáticas com outros institutos penais mais modernos, posto que, embora lesionado "temporariamente" o bem jurídico tutelado (patrimônio) foi ele recomposto antes de sentença judicial.
Vale pois trazer à colação, como exemplo, a evolução legislativa atinente aos crimes contra a ordem tributária, no particular aspecto referente ao pagamento integral da dívida.
Inicialmente, a Lei 8137/90, em seu artigo 14, estabelecia a extinção da punibilidade, nos crimes contra ordem tributária, caso o pagamento do débito ocorresse antes do recebimento da ação penal. Tal dispositivo foi revogado pelo artigo 98 da Lei 8383/91.
Ocorre que lei posterior, editada em 1995, voltou a admitir extinção da punibilidade nos referidos crimes (art. 34 da Lei 9249/95).
Visando adaptar a citada lei de crimes contra ordem tributária à realidade social, o legislador, mais uma vez, utilizando-se de estratégia de política criminal, alterou redação da lei anterior, extinguindo a punibilidade do autor de crimes contra a ordem tributária, nos casos de pagamento integral do débito, mesmo depois do recebimento da denúncia (art. 9º, § 2º da Lei 10.684/03) .
Decorrente da alteração da legislação supra e, a meu sentir, com inteira propriedade, exsurgem, na doutrina e jurisprudência, importantes correntes, ainda minoritárias, estendendo aplicação da extinção da punibilidade decorrente da reparação do dano pelo autor do fato, a outras espécies de delito, notadamente aos patrimoniais (sem violência).
É bem verdade que o nosso Código Penal Militar não olvidou da questão quando, em seu artigo 240, § 2º, registrou hipóteses de substituição, diminuição de pena e, até mesmo, absolvição (ao considerar infração como disciplinar), quando o criminoso, sendo primário, restitui a coisa ao seu dono ou repara o dano causado, antes de instaurada a ação penal. De observar-se que aqui (§ 2º ) não se leva em conta o valor da coisa, tal qual referido no § 1º do susomencionado artigo. O benefício abarca o estelionato por força do artigo 253 do CPM.
Penso que tal dispositivo, tal como ocorrido com a supracitada lei de crimes contra ordem tributária, está a merecer uma releitura de forma a alcançar aqueles que restituem a coisa ou reparam o dano, mesmo depois de recebida a denúncia (durante o processo).
De fato, caso não seja aplicada tal benesse ao autor do fato, depois de iniciada a instrução criminal, rui por terra a mens legis principal, qual seja, a de fomentar a reparação do dano causado pelo réu.
Pontue-se que, de forma espontânea, dita reparação só se torna viável quando o autor do delito vislumbra, no fim do túnel, uma luz que lhe permita mudar o curso de seu caminho delituoso para uma saída honrosa (uma espécie de "ponte de ouro" de Von List). Do contrário, vale a indagação: qual seria a vantagem da confissão do delito e da restituição da coisa caso o autor do fato saiba, de antemão, que será apenado nos mesmos moldes daquele que não confessou o crime e ainda se apoderou do dinheiro retirado.
Digno de reflexão, pelo seu brilhantismo, é o seguinte trecho, constante do Recurso em Sentido Estrito, n.º 70021561105, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
Ora, se aquele que comete um crime contra o Tesouro Nacional, mediante sonegação de impostos, cuja conseqüência é de extrema gravidade, pois são valores que reverteriam em investimentos na saúde, segurança e educação, para não falar em outros serviços públicosessenciais, acarretando a perda de vidas humanas pela deficiência desses serviços, é contemplado com a extinção da punibilidade pelo pagamento do débito, mesmo depois de recebida a denúncia, por quê não estender o benefício ao criminoso comum que comete um delito contra o patrimônio, semviolência ou grave ameaça à pessoa, e repara o prejuízo antes da sentença?
Destarte, a meu sentir, casos análogos a este reclamam a aplicação do princípio da necessidade, um subprincípio da proporcionalidade. Consoante o princípio da necessidade, deve-se escolher os meios menos gravosos para a consecução de um resultado. No caso vertente, oprocesso penal militar iniciado em face do réu foi suficiente para recomposição do patrimônio da Administração Militar. O prejuízo foi ressarcido com juros e correções. Assim, impõem-se as seguintes indagações: por que condenar o réu se o bem jurídico (patrimônio) foi inteiramente recomposto?; Não seria desproporcional tal inflição de pena?
Gize-se que tanto a doutrina brasileira como a estrangeira vem subdividindo, no seu sentido mais amplo, o princípio da proporcionalidade, também conhecido como razoabilidade, em princípio da adequação ( aptidão que certo meio deve possuir para alcançar o fim legítimo) e princípio da necessidade( escolha do meio menos gravoso para alcançar o resultado objetivado).
Esta, nos parece, salvo melhor interpretação, ter sido a intenção do legislador penal militar quando contemplou, na maior parte dos tipos penais (à exceção do crime de receptação), cujo bem jurídico tutelado é o "Patrimônio", o disposto já citado no art. 240, § 1º e 2º e art. 253, todos do Código Penal Militar, verbis:
Art. 240. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, até seis anos.
Furto atenuado
§ 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar . Entende-se pequeno o valor que não exceda a um décimo da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país. (grifei)

§ 2º A atenuação do parágrafo anterior é igualmente aplicável no caso em que o criminoso, sendo primário, restitui a coisa ao seu dono ou repara o dano causado, antes de instaurada a ação penal.
(grifei)
Art. 253. Nos crimes previstos neste capítulo, aplica-se o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 240.
Ora, considerar infração como disciplinar significa absolver o réu (parágrafo 1º). Já a atenuação registrado no parágrafo 2º deve também ser entendida em amplo sentido, abarcando as expressões: substituição de pena, diminuição ou consideração do fato como sendo infração disciplinar (o que implica em absolvição).
Com o exposto, lanço o tema em comento para novas discussões, notadamente quanto a possibilidade de aplicação do princípio da necessidade aos fatos similares com a questão sub examine concernente ao sobredito processo.

REFERÊNCIAS::

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] de 5 outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 9 jan 2009.
BRASIL. Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Brasília, Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1969. Disponível em<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del1001.htm>. Acesso em: 10 jan 2009.
BRASIL. Lei nº 9249 de 26 de dezembro de 1995. Altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas, bem como da contribuição social sobre o lucro líquido, e dá outras providências. Diário Oficial da União de 27 de dezembro de 1995. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9249.htm> . Acesso em 08 de jan 2009.
GORRILHAS, Luciano Moreira. Saques bancários em conta-corrente de ex-pensionistas das Forças Armadas e sua tipicidade. Revista da associação das justiças militares estaduais (AMAJME: direito militar.Santa Catarina. n. 59, p. 31-34, Maio/Jun. 2006.

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Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT)

GORRILHAS, Luciano Moreira. Fraude em pensões nas Forças ArmadasRevista Jus Navigandi, Teresina, ano 15n. 266316 out. 2010. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/17615>. Acesso em: 21 jan. 2016.

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