Mariana Schreiber - @marischreiber
Desde setembro, quando ficou evidente a força da então candidatura à Presidência de Jair Bolsonaro, as ações da empresa Taurus Armas passam por uma montanha russa de altas e baixas na Bolsa de Valores.
Como controladora de grande parte do mercado de armas de fogo no Brasil, a expectativa é que a empresa se beneficie da facilitação do acesso à posse estabelecida em decreto presidencial do mês passado.
Essa flexibilização, porém, é apenas a primeira medida aguardada por grupos favoráveis ao maior armamento da população. Outra grande mudança que o governo pode realizar sem depender do Congresso é derrubar decretos e portarias do Ministério da Defesa e do Exército que restringem as importações de pistolas, revólveres, munições e outros itens controlados, assim como dificultam a instalação de novas empresas no país. A expectativa dessa abertura, que traria concorrência inédita à Taurus, ajuda a explicar a volatilidade dos papéis.
"Ninguém compra arma, não, que a gente vai, num decretão lá, já que é decreto, a gente vai acabar com o monopólio, tá ok?", prometeu Bolsonaro a um grupo de apoiadores, mostra um vídeo que passou a circular nas redes socias após sua eleição. Na sequência, ele diz também que vai zerar impostos sobre armas.
A restrição à importação tem como justificativa proteger um setor "estratégico" para a soberania nacional, mas polícias questionam esse argumento e reclamam dos altos preços e da baixa qualidade dos produtos nacionais que são obrigados a adquirir.
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Uma das vozes mais ouvidas contra a Taurus na família do presidente é o filho Eduardo Bolsonaro, polícia federal licenciado e deputado federal (PSL-SP). Há dois anos, em frente ao stand da empresa na feira de armas SHOT Show, em Las Vegas, nos Estados Unidos, ele gravou um vídeo destacando a "decadência notória (da Taurus) no mundo inteiro".
"A nossa luta é para abrir o mercado nacional. É para colocar dentro do Brasil fabricantes internacionais que querem ir para lá mas não conseguem devido ao lobby e, principalmente, problemas políticos dentro do Ministério da Defesa", crítica.
"O Brasil está rechaçando (empresas estrangeiras) em nome de quê? Uma burra reserva de mercado que só tem matado, não só os nossos policiais, mas também os cidadãos, com disparos acidentais", disse ainda.
Em dezembro, a Justiça Militar paulista arquivou investigação contra um policial pela morte do entregador de pizza David Soares de Freitas, 20 anos, em junho, depois de concluir que a arma Taurus disparou sozinha quando o soldado caiu acidentalmente durante a abordagem policial.
Problemas com a Justiça
Por defeitos em suas armas, a Taurus responde a processos no Brasil e no exterior. No início de janeiro, a companhia aceitou um acordo preliminar para encerrar um processo nos Estados Unidos movido por duas famílias que pode chegar a US$ 7,9 milhões (quase R$ 30 milhões) - valor que abarca custos processuais e indenizações. Em ambos os casos, armas da companhia dispararam ao cair no chão e feriram pessoas na perna mesmo estando com a trava de segurança acionada.
No Brasil, após a Polícia Civil de Sergipe registrar falhas em pistolas da Taurus - uma deformação no ferrolho que travava o equipamento -, o Ministério Público Federal no Estado foi à Justiça em novembro de 2017 pedir "a quebra do monopólio e retirada de obstáculos à importação de armamento e munições no Brasil".
A ação civil pública demanda também "que dez modelos de armas produzidos pela empresa sejam recolhidos para reparo, substituição ou indenização pelo valor pago, a critério do consumidor". O caso ainda está em tramitação.
Após consulta da procuradora responsável pelo caso, Lívia Tinôco, a secretarias de Segurança Pública dos 26 Estados do país e do Distrito Federal, 19 responderam já ter tido problemas com armas da Taurus.
"A flexibilização do acesso a armas no Brasil (após o decreto assinado por Bolsonaro) torna ainda mais urgente a quebra do monopólio, sob pena dos acidentes e falhas nas armas de fogo comercializadas pela empresa Taurus, tão presentes no cotidiano das forças policiais, passarem a se reproduzir nos lares dos cidadãos brasileiros", disse Tinôco à BBC News Brasil.
A reportagem solicitou em janeiro entrevistas com representantes da Taurus e da CBC (maior acionista da Taurus e única fabricante de munições do país), mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.
A Taurus nasceu pequena em 1939, no Rio Grande do Sul, para se tornar hoje uma das maiores produtoras de revólveres do mundo. A empresa produz também acessórios, capacetes e contêineres em três fábricas no Brasil e uma nos Estados Unidos.
A companhia costuma responder às críticas destacando que exporta para mais de 85 países e lembrando os prêmios recebidos - o último deles, segundo o site da empresa, é de 2012, quando a rede de varejo americana Field & Stream considerou um dos seus revólveres de caça o melhor do ano.
Já a CBC foi fundada por imigrantes italianos em São Paulo em 1926 e hoje é líder mundial em munições para armas portáteis, com fábricas no Brasil, Alemanha e República Tcheca.
'Valor estratégico'
As limitações para importação de armas e outros produtos controlados, como munições, componentes de armamentos e material explosivo, existem há décadas sob o argumento de que ter uma indústria forte de materiais de defesa é importante para a soberania brasileira.
O controle do Exército na fabricação, comércio e importação de armas foi normatizado em legislação de 1934, durante o governo de Getúlio Vargas. Norma de 1965, segundo ano da ditadura militar, destacava que cabia ao Ministério do Exército dar "à indústria nacional toda a proteção necessária ao incremento de sua produção, e à melhoria de seu padrão técnico".
As regras atualmente em vigor, estabelecidas em 2000, foram revistas em setembro passado pelo governo de Michel Temer, em um decreto (nº 9.493) que passa a valer em março. O novo texto é vago sobre compras no exterior e diz que "o Comando do Exército editará normas complementares para regulamentar os procedimentos administrativos para importação" de produtos controlados.
Outro decreto (nº 9.607), este editado em dezembro passado, passou a prever que, além da avaliação do Exército, os pedidos de importação passarão a depender também do crivo dos ministérios da Defesa e das Relações Exteriores. O artigo 34 dessa norma mantém as barreiras a produtos de fora do país, estabelecendo que "a importação de armas e munições que forem fabricados no país por empresa credenciada como Empresa Estratégica de Defesa (caso da Taurus e da CBC) será negada ou restringida pelo Ministério da Defesa". A única exceção prevista é para o caso de pessoas que tenham licença no Exército de colecionador de armas, atirador desportivo ou caçador.
No mês passado, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, disse a jornalistas que a abertura de mercado "está em estudo", sem trazer detalhes. Um dos maiores defensores da abertura, o senador eleito Major Olímpio (PSL-SP) disse à reportagem que as novas regras "têm que deixar muito explícita a possibilidade e até o incentivo" à maior concorrência, para atender "não só às forças de segurança pública, mas à área privada também".
"O último monopólio a ser quebrado no Brasil é o de armas e munições. Há um lobby muito intenso (contra a abertura), seja no Legislativo, no Executivo, Forças Armadas, isso é evidente", criticou.
À BBC News Brasil o Exército disse que a restrição à importação está "alinhada com a Política Nacional de Defesa e com a Estratégia Nacional de Defesa" e "tem por objetivo fomentar a indústria nacional de defesa com vistas, especialmente, ao desenvolvimento e manutenção de tecnologias e capacidades produtivas consideradas estratégicas". A medida também busca "gerar emprego e renda", segundo o órgão.
Questionado se estudava mudanças nessas regras, o Exército respondeu que "tratam-se de políticas nacionais que devem tramitar no âmbito dos poderes constitucionais".
Procurado, o Ministério da Defesa informou que não seria possível conceder entrevista porque a direção desse setor está ainda em processo de transição com a troca de governo.
Polícias enfrentam burocracia para importar
Os graves problemas apresentados por armas da Taurus têm levado as polícias estaduais a enfrentar a burocracia e buscar brechas para importações. Os dados da balança comercial brasileira mostram que a importação de pistolas e revólveres em 2018 somou US$ 11,9 milhões, um pouco mais do que o registrado na soma dos seis anos anteriores.
Após uma licitação internacional, a Polícia Militar de São Paulo adquiriu no ano passado pela primeira vez 6.250 pistolas calibre .40 da austríaca Glock por US$ 3,086 milhões (pela cotação de hoje, cerca de R$ 1.850 por unidade).
A operação só foi possível porque, após um processo administrativo, a Taurus ficou proibida de vender ao governo paulista por dois anos. O motivo foi o mau funcionamento de 7 mil submetralhadoras adquiridas da empresa em 2011 e nunca usadas, explicou o tenente-coronel Marco Aurélio Valério. A corporação até hoje está em litígio com a Taurus para devolução do equipamento.
Além da preocupação com a qualidade, o tenente-coronel ressalta que a importação também trouxe economia ao Estado de São Paulo. Para efeito de comparação, o governo do Paraná fechou em novembro a compra para agentes penitenciários de 2.800 pistolas calibre .40 da Taurus por R$ 6,9 milhões (quase R$ 2.500 por unidade).
Valério estima que 95% das armas da polícia de São Paulo são da marca brasileira. Já as munições, todas fornecidas pela CBC, "não são ruins, mas há opções melhores e mais baratas no exterior", ressalta.
"Existe uma expectativa do mercado como um todo de que essas regras (rígidas contra importação) caiam. O que é estratégico no século 21 não é arma de baixo calibre, nem munição. É míssil, guerra eletrônica, drone de longo alcance", afirma Valério.
A Polícia Civil de Sergipe também conseguiu adquirir 100 pistolas Glock em 2016, após armas da Taurus falharem no ano anterior. A corporação trabalha em nova licitação internacional para comprar mais 400.
"Hoje, a gente consegue importar, mas é um trabalho absurdo, e a empresa nacional ainda tenta impugnar a licitação", reclama o policial Ricardo Porto, diretor Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil de Sergipe.
Barreiras para entrada de empresas
Além de impedir a importação, o Exército também "premeditadamente coloca todos os obstáculos possíveis" à instalação de novas fábricas no país, reclama o senador eleito Major Olímpio.
Um dos fatores que afastam empresas estrangeiras é a impossibilidade de importar insumos. Portaria de setembro de 2017 que autorizou a estatal suíça Ruag a instalar uma fábrica de munições em Pernambuco, por exemplo, estabelecia que "na hipótese de os insumos nacionais serem reprovados por baixa qualidade, a empresa deverá desenvolver e capacitar fornecedores nacionais que atendam à qualidade exigida, de forma que os bens finais sejam produzidos no País".
O investimento previsto era de R$ 58,5 milhões, mas a empresa acabou desistindo do projeto por decisão do governo suíço, que viu risco de reputação para a imagem do país em entrar no mercado de armas em um país com índices tão altos de violência - a decisão veio em reação a questionamentos de parlamentares suíços após o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), em março passado.
Apesar das dificuldades, outras companhias estão de olho no mercado brasileiro. O governo de Goiás confirmou à reportagem que tem conversas em andamento para instalação de uma fábrica da Caracal, estatal dos Emirados Árabes Unidos.
Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a empresa planeja investir até US$ 130 milhões (R$ 488 milhões) para produzir pistolas 380, visando o mercado brasileiro e de países vizinhos. Será preciso aval do Exército para a ideia se concretizar.
Já o grupo DFA, de capital brasileiro, pretende começar a produzir pistolas e rifles em sua primeira fábrica em Goiás neste ano - ainda faltam os produtos passarem por testes do Exército, o que pode levar meses. Executivos da empresa ouvidos pela BBC News Brasil disseram que viram uma oportunidade de disputar mercado a partir das falhas da Taurus. Eles não quiserem revelar o valor investido, nem as metas iniciais de produção.
Crítico da facilitação da posse de armas no país, o Instituto Sou da Paz considera que o acesso das forças de segurança a produtos de melhor qualidade seria positivo. O aumento das empresas atuantes no mercado, porém, deve vir acompanhado de mais controle sobre o setor, defende o presidente do instituto Ivan Marques.
"O que percebemos ao rastrear armamentos na mão de criminosos é que a esmagadora maioria dessas armas foi produzida e vendida legalmente no Brasil e perdida para a criminalidade. Isso indica uma total incapacidade de rastreamento e controle de armas de fogo no país", afirma.
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