Publicado por Marcelo Auler em
Marcelo Auler*
Endeusado e paparicado pela mídia e até por parlamentares na visita que fez quarta-feira (17/02) à Câmara dos Deputados, o agente de Polícia Federal Newton Hidenori Ishii, 60 anos, popularmente conhecido como o “japonês da federal”, é um exemplo claro da impunidade gerada pela demora processual.
Nem tudo, porém, é chicana da defesa. Preso em 2003, processado, foi condenado na primeira instância em 30 de abril de 2009. Viu seu recurso de apelação ser parcialmente acatado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Sul) – TRF-4 em fevereiro de 2013. Mas, decorridos 13 anos desde a prisão, continua aguardando uma decisão no Recurso Especial (REsp) que impetrou no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os autos dormitam em alguma prateleira do gabinete do ministro Félix Fischer, desde abril de 2015 à espera do julgamento. A impunidade não o atinge sozinho. Com ele, aguardam o julgamento do Recurso outros acusado, julgados nas dez ações penais em que se desdobrou a ação inicial da Operação Sucuri.
Além da questão criminal, o agente e mais 42 réus respondem na 1ª Vara Federal de Foz do Iguaçu uma Ação de Improbidade Administrativa desde junho de 2008. O grande número de réus – no criminal, como afirmamos acima, houve desmembramento – faz o processo andar a passo de tartaruga. Nele é fácil constatar que as defesas usam de todo os expedientes protelatórios que as leis lhes garantem. Com isso, ainda não foi possível vencer as audiências de instrução em que são ouvidas as testemunhas, algumas da quais faleceram, outras se aposentaram e muitas mudaram de endereço e não são encontradas.
Um dos pedidos inusitados apresentado pela defesa de Ishii e de outros sete réus, feito em 2012 – ou seja, há quatro anos, – equipara-se ao que a defesa de Marcelo Odebrecht levou ao juiz Sérgio Moro: perícia nas degravações das conversas telefônicas interceptadas, por ter havido a inserção de elementos interpretativos pelos policiais federais na transcrição das conversas.
Ou seja, os policiais federais, réus nessa operação, colocaram sob suspeição o trabalho dos próprios colegas. Os acusaram de não transcreverem ipsis litteris o que ouviram nos grampos. Além disso, queriam periciar o software do sistema guardião e ainda pediram prova pericial para a identificação das vozes. Assunto, inclusive, abordado na coluna deste domingo (21/02) que Elio Gaspari assina nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo: “O ‘Japonês da Federal’ e a Escola Base“.
Ishii foi preso, em março de 2003, na primeira das grandes operações policiais do governo Lula – a Sucuri – junto com outros 22 agentes da Polícia Federal, sete auditores da Receita Federal e três Policiais Rodoviários Federais, todos de Foz do Iguaçu, na fronteira do Paraná com o Paraguai. Também foram atingidos contrabandistas e intermediários.
Os servidores públicos “se omitiam de forma consciente e voluntária, de fiscalizar os veículos cujas placas lhes eram previamente informadas, ou realizavam fiscalização ficta, abordando os veículos para simular uma fiscalização sem a apreensão de qualquer mercadoria“, como explicou o juiz Pedro Carvalho Aguirre Filho.
Conforme o delegado Reinaldo de Almeida César, então porta-voz do DPF, existia um acerto prévio e os fiscais já estavam avisados para deixarem determinados veículos passar (geralmente táxis ou vans). “Eram valores altos, US$ 30 mil ou US$ 40 mil entravam no país sem o pagamento dos impostos“, disse à época ao portal Paraná-online.
A prisão dos réus foi mantida até 11 de julho, quando o desembargador João Surreaux Chagas, relator dos pedidos de Habeas Corpus no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), concedeu liminar mandando soltar os presos. Sua decisão foi acatada por maioria da turma em 20 de agosto.
Este processo criminal contra Ishii e quatro colegas seus – Ação Penal nº 2003.70.02.004491-7 (PR) / 0004491-42.2003.4.04.7002 -, chama ainda atenção por um fato inusitado: até hoje sua sentença é mantida em sigilo e ninguém, que não os envolvidos, sabe ao certo a pena inicial a que ele e a maioria dos réus foram condenados.
Trata-se de uma atitude poucas vezes vista pois, com exceção dos casos envolvendo questões familiares, normalmente a publicidade da sentença, como determinam a Constituição e os códigos, é respeitada até em processos que correm em sigilo.
Como não quis divulgar sua decisão por causa do segredo de justiça submetido aos autos, o juiz Aguirre Filho, em julho de 2013, explicou-a por meio de nota oficial. Nela (veja ao lado uma versão editada ou leia a íntegra aqui) ele não especificou os condenados e suas penas. Segundo disse, “restaram condenados 19 (dezenove) Agentes de Polícia Federal, nas penas cominadas aos crimes de corrupção passiva qualificada e facilitação de contrabando e/ou descaminho, tipificados nos artigos 317 , 1º , e 318, todos doCódigo Penal , sendo que 17 (dezessete) desses policiais federais também foram condenados pelo crime de formação de quadrilha ou bando, tipificado no artigo 288 , do Código Penal“. Dos 23 servidores da Polícia Federal, 19 foram condenados. Mais abaixo a a nota resume as penas, sem individualizá-las:
“As penas impostas aos servidores públicos federais variaram entre 08 anos, 01 mês e 20 dias de reclusão, além de 160 dias-multa a 04 anos e 08 meses de reclusão e 100 dias-multa (…) Outrossim, foi decretada a perda do cargo público que os servidores públicos federais, condenados na sentença, ocupavam à época dos fatos criminosos“.
Com todo esse mistério poderia-se até duvidar da condenação do agente federal Ishii. Mas ela (a condenação) não é apenas uma dedução. Confirma-se pela Apelação Criminal junto ao TRF-4 na qual é citado (veja ao lado). Sabe-se ainda pela página do processo, que dos quatro agentes federais que responderam com Ishii a ação desmembrada, um foi absolvido – Rogério Fleury Watanabe – e outro teve extinta a punibilidade – Adriano da Costa Luetz.
Cestas básicas/Impunidade – No TRF-4, em fevereiro de 2013, dez anos após a operação policial, apenas os réus tiveram seus recursos providos ainda que parcialmente. A corrupção qualificada, imposta na primeira instância, foi revista e caiu para corrupção simples.
Por ofício, isto é, sem questionamento pelas partes, o tribunal reconheceu a prescrição da pena do crime de quadrilha ou bando e extinguiu a punibilidade dos acusados neste artigo do Código Penal.
Foi reconhecida a “consunção” (ocorre no caso de crimes conexos, quando o delito final absorve o anterior e deixa de haver punição no primeiro). Na ação penal da Operação Sucuri, o TRF-4 reconheceu a consunção entre a corrupção passiva dos servidores públicos e o crime de facilitação do contrabando ou descaminho. Isto é, os desembargadores deixaram de punir pela corrupção passiva e mantiveram a condenação pela facilitação de contrabando e descaminho. Por fim, o tribunal afastou a pena de perda do cargo imposta ao “japonês da federal”.
Questionando transcrição de grampos – Com todas essas reduções, segundo o próprio Ishii, ele acabou condenado ao pagamento de cestas básicas. Ainda assim, recorreu do resultado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde os Recursos Especiais, impetrados pelo MPF e pelos condenados – não apenas nesta ação penal, mas também nas outras da Operação Sucuri – aguardam para serem julgados.
Já a Ação Civil Pública não tem qualquer expectativa de conclusão na primeira instância dado o número de réus e a fase em que se encontra. Os pedidos da defesa de Ishii e de outros réus de perícias no sistema guardião (software especializado para cruzamentos de dados obtidos com o grampos e quebras de sigilos fiscal e bancário) e nas transcrições do que foi gravado foram rechaçados de imediato pelo juiz Daniel Marchionatti Barbosa, em julho de 2012.
Como lembrou o magistrado, “a prova no processo judicial são as gravações elas mesmas. As transcrições e comentários são mera forma de facilitar a consulta e indexação às gravações (…) Além disso, a transcrição das gravações não depende de conhecimento técnico. Se a parte sentiu-se prejudicada por transcrições ou comentários, pode produzir sua própria versão”.
Punições mal feitas e anuladas – Ao longo destes 13 anos de impunidade, a se completarem em março, o agente federal Ishii e 10 outros agentes, sofreram uma única punição além do período em que ficaram presos (março a julho de 2003): foram mantidos afastados dos cargos e depois exonerados do DPF.
Enquanto afastado do cargo, Ishii recorreu à sua aposentadoria. Mas, com a conclusão do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) nº 007/006-NUDIS/COR/SR/DPF/PR, em 22 de outubro de 2009, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou 11 portarias pelas quais demitia os dez agentes e cancelava a aposentadoria do agente Ishii.
Por meio de Mandado de Segurança impetrado no STJ – MS 14.795 – os atingidos reverteram a punição alegando que a Comissão Disciplinar que cuidou do PAD não era uma Comissão Disciplinar Permanente, nomeada pelo diretor geral, conforme manda a Lei que regulamenta o DPF. A comissão tinha sido instituída pelo superintendente do Paraná. Com isso, eles primeiro obtiveram uma liminar do ministro Og Fernandes que depois foi confirmada pela turma. Ishi voltou a ter direito à aposentadoria e os outras dez agentes foram reintegrados. Àquela altura, já existia a sentença de primeira instância condenando os agentes e afastando Ishii do serviço público o que foi revertido em 2013, pelo TRF-4,
Como se constata, a discussão em consequência do resultado do PAD não se deu em torno da inocência dos agentes demitidos, mas sim das formalidades na criação da comissão que cuidou do processo administrativo. Um segundo PAD foi instaurado, em Foz do Iguaçu, durante o qual a Corregedoria Geral do DPF deu um jerto de não afastá-los novamente das funções. No caso de Ishii, ele foi mantido como aposentado. Mais uma vez o PAD resultou em anulação, por ter utilizado como provas gravações telefônicas autorizadas judicialmente e que embasaram o processo criminal. Na época, os processos administrativos não admitiam este tipo de provas. A Justiça também entendeu que a Comissão Disciplinar Permanente criada pela direção-geral do Departamento, “era uma comissão de exceção”.
Mais uma vez, o retorno dos agentes ao serviço não se deu por prova da inocência nos crimes que foram acusados. Quando da anulação do primeiro PAD, o processo criminal já tinha sentença na qual alguns réus conseguiram ser absolvidos por falta de provas. Mas, Ishii além da pena que ainda é desconhecida, foi afastado do serviço público. Depois, no TRF-4 a pena foi reduzida, por desqualificarem alguns dos crimes creditados aos agentes e também pela extinção da punibilidade na acusação de formação de quadrilha ou bando, devido à sua prescrição, consequência da demora processual.
No caso de Ishi, ele teve revertida pela turma do TRF-4 a sua demissão pela sentença de 2013. Beneficiado ainda pelo Mandado de Segurança acatado pelo STJ, voltou à condição de aposentado. Mas, em 2014, como noticia Élio Gaspari na sua coluna citada acima, o Tribunal de Contas da União (TCU) cancelou-a por faltarem ainda dois anos de serviço para que ele pudesse fazer jus ao benefício. Por isso ele voltou à ativa e neste período tornou-se, como lembrou Gaspari, “a maior estrela da Lava Jato”, logo depois do juiz Sérgio Moro.
Atualmente em férias, Ishii não deve retornar ao serviço na superintendência. Em maio vencem os dois anos exigidos pelo TCU e ele finalmente terá direito a se aposentar. Impunemente, apesar do crime cometido no passado, jamais contestada, e com a popularidade em alta, por ter escoltado os presos da Lava Jato.
* Alertado por dois leitores, peço desculpas por ter errado no termo jurídico na frase: “Foi reconhecida a “consunção” (ocorre no caso de crimes conexos, quando o delito final absorve o anterior e deixa de haver punição no primeiro). Na ação penal da Operação Sucuri, o TRF-4 reconheceu a consunção entre a corrupção passiva dos servidores públicos e o crime de facilitação do contrabando ou descaminho”. No texto original usei, erroneamente, a palavra “consumação”.
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