Essa e a verdadeira cara da nossa Segurança Publica

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sábado, 29 de dezembro de 2012

Ela está descontrolada

Publicado em 01/06/2010
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Semana passada a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a PEC 381/09, que pretende criar o Conselho Nacional de Polícia (CNP). Tratando-se de emenda constitucional, é o primeiro passo de um longo caminho. Oxalá não seja aprovada.
De iniciativa do deputado Régis de Oliveira, o mesmo que quer “enxugar”a Constituição, reduzindo-a a uns retalhos (vide a PEC n. 341/09), a PEC do controle externo é um projeto que atende a intenções corporativistas dos delegados de Polícia, e não da Polícia como um todo, ente no qual se incluem agentes, investigadores, detetives, peritos, escrivães, papiloscopistas e outros profissionais de segurança pública.
Na verdade, o deputado Régis de Oliveira, que foi vice-prefeito no governo Celso Pitta, atua como representante dos delegados de Polícia na Câmara Federal. Coautor do livro “Resgate da Polícia Judiciária Brasileira”, o deputado foi convencido por associações de delegados a criar um órgão decorativo. O objetivo velado do projeto é a diminuição do controle sobre a Polícia, pois a PEC revoga o inciso VII do art. 129 da Constituição:
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
VII -exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior”.
Poder Judiciário e Ministério Público já têm seus órgãos de controle externo. São respectivamente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), criados pela Emenda Constitucional 45/2004, e previstos nos arts. 103-B e 130-A da Constituição.
As Polícias também já estão sujeitas a controle externo. Embora os chefes de Polícia rejeitem o seu órgão de controle, a Constituição de 1988 entregou essa tarefa ao Ministério Público. E o fez por motivos óbvios:
a) no sistema acusatório, a investigação criminal realizada pela Polícia é endereçada ao Ministério Público. Logo, cabe a esse órgão verificar a regularidade de tais procedimentos, que são importantes para a persecução criminal (art. 129, inciso I, da Constituição);
b) o Ministério Público é um órgão dotado de instrumentos necessários à apuração de irregularidades cometidas por maus policiais;
c) o Ministério Público é o órgão ao qual a Constituição atribui a função de defensor da sociedade, incluídos aí os direitos difusos e individuais indisponíveis dos cidadãos sujeitos a ações policiais;
d) o Ministério Público tem a iniciativa da ação penal pública, função que depende do bom desempenho da atividade-fim da Polícia Judiciária;
e) o Ministério Público está presente em todo o País, nas mais distantes comarcas e em todas as subseções judiciárias federais, o que lhe permite conhecer de perto, melhor do que qualquer outro órgão a realidade do serviço policial e suas vicissitudes.
Há vários problemas na proposta. Os governadores dos Estados ainda não se deram conta de que a PEC 381/09 lhes retirará poderes de gestão das Polícias (art. 144-A, §1º, incisos I e II). Não é só. A PEC ampliará indevidamente os gastos da União com a criação de uma nova estrutura governamental desnecessária, na medida em que outro órgão, já constituído, pode desempenhar com mais eficiência esse papel. De fato, em todos os Estados da Federação, o Ministério Público exerce o controle externo da Polícia, por meio de promotores criminais. Igualmente, por iniciativa do Procurador-Geral da República, em todas as unidades do MPF há procuradores da República encarregados dessa atividade, que atuam nos Grupos de Controle Externo da Atividade Policial. E há resultados a mostrar! Centenas de procedimentos de controle foram instaurados para averiguar o encerramento prematuro ou irregular de inquéritos, ou para apurar os motivos da não instauração de inquéritos contra policiais, embora exista o correspondente procedimento disciplinar. Há investigações sobre a prática de tortura em abordagens policiais e em interrogatórios; sobre a atuação de grupos de extermínio; sobre o vazamento de dados sigilosos de investigações; sobre escutas clandestinas; e sobre o desrespeito a direitos de vítimas, acusados e advogados, entre outros temas. Disso resultam comunicações formais às corregedorias de Polícia, ações penais e ações de improbidade administrativa. O Ministério Público também tem proposto ações civis públicas para que unidades policiais sejam instaladas em certas regiões.
Esse controle externo está devidamente disciplinado no art. 9º da Lei Complementar Federal 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), aplicável ao MPF, ao MPM e ao MPDFT e, por extensão (art. 80 da Lei 8.625/93), aos congêneres dos Estados-membros. O CNMP baixou uma Resolução n. 20/2007 para regular o controle externo da atividade policial em todo o Brasil. O Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF) também estipulou regras próprios no âmbito do MPF por meio da Resolução 88/2006. Nessa mesma linha, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça (CNPG) produziu um manual do controle externo, com rotinas a serem adotadas por promotores de Justiça no exercício de tal função. Idêntica providência foi tomada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, especializada em matéria criminal, no tocante ao controle externo realizado por procuradores da República.
Como se vê, há uma estrutura montada para o exercício do controle e ele tem sido realizado na prática. Os resultados só não são melhores devido à escassez de pessoal do Ministério Público e às tradicionais resistências dos delegados de Polícia, especialmente os estaduais, que parecem não desejar controle algum.
Substituir um órgão de controle independente e especializado por um novo ente centralizado não resolverá os graves problemas da ineficiência e da violência policiais. Esse novo CNP terá de “solicitar” a cessão delegados (art. 144-A, §3º, III, da PEC) para desempenhar as funções de mera ouvidoria e para eventual visitação às delegacias das mais longínquas localidades brasileiras. Isolado em Brasília, o CNP não terá condições de efetivamente controlar as Polícias.
O presidente da OAB, Ophir Cavalcante, cometeu um erro de interpretação ao avalizar a PEC. É bom esclarecer que o controle externo da atividade policial não se confunde com a investigação criminal direta pelo Ministério Público. São dois temas distintos. O controle externo diz respeito à correção dos trabalhos de investigação e dos procedimentos a ela relacionados, inclusive no que diz com a proteção às garantias individuais e à indisponibilidade do interesse público da persecução criminal. O controle também se relaciona com a qualidade do serviço prestado à população pela Polícia.
De mais a mais, a PEC é incompleta. Basta compará-la com a normatização em vigor. Segundo o art. 1º da Resolução 20/2007 do CNMP, “Estão sujeitos ao controle externo do Ministério Público, na forma do art. 129, inciso VII, da Constituição Federal, da legislação em vigor e da presente Resolução, os organismos policiais relacionados no art. 144 da Constituição Federal, bem como as polícias legislativas ou qualquer outro órgão ou instituição, civil ou militar, à qual seja atribuída parcela de poder de polícia, relacionada com a segurança pública e persecução criminal”. No entanto, pelo texto proposto na PEC, o CNP preocupar-se-á apenas em “zelar pela autonomia funcional dos delegados de polícia” (art. 144-A, §1º, inciso I) e zelar pela legalidade dos atos administrativos da Polícia Civil e da Polícia Federal (inciso II).
Além disso, a criação do CNP é inútil. O que farão os conselheiros se detectarem alguma irregularidade na atividade policial? Comunicarão o apurado às corregedorias das Polícias? Isto pode ser feito por qualquer autoridade ou cidadão, sem acréscimo orçamentário algum. Os conselheiros comunicarão o fato também ao Ministério Público? Para que, se esta instituição já realiza o controle externo de perto e sem intermediários?
Na verdade, alguém já disse que a PEC do deputado Régis de Oliveira cria um leão sem dentes, porque o CNP não dispõe de poder disciplinar. De acordo com o substitutivo do relator, deputado Marcelo Ortiz (PV/SP), a atividade do CNP se limitará à fiscalização dos atos administrativos das Polícias para recomendação de providências ao Executivo. O CNP não terá o poder de rever ou avocar os respectivos procedimentos disciplinares, pois só poderá “recomendar à Administração a revisão dos seus atos, ou sugerir providências aos órgãos competentes, visando o cumprimento da lei, sem prejuízo da competência dos respectivos Tribunais de Contas ou Controladorias Gerais” e “recomendar a instauração ou a revisão de processos disciplinares, sem prejuízo da competência disciplinar das Corregedorias da respectiva instituição”.
Com um CNP assim, a revogação do inciso VII do art. 129 da Constituição além de desnecessária (porque as funções do CNP e do MP poderiam coexistir), é inócua, já que o Ministério Público ainda terá as atribuições de promover privativamente a ação penal pública e para isto poderá requisitar diligências policiais, requisitar inquéritos policiais e, neles, controlar o cumprimento das medidas necessárias à deflagração da persecução criminal em juízo. Ou seja, o controle sobre a atividade-fim policial em cada investigação criminal continuará a ser realizado pelo membro do Ministério Público nela oficiante. E, em se verificando a ocorrência de algum crime atribuível a policiais, o MP continuará a promover as ações penais cabíveis (art. 129, inciso I, da CF).
Quanto ao chamado controle externo difuso, este também será preservado em mãos do Ministério Público, apesar da pretendida revogação do inciso VII do art. 129 da CF, pois que cabe à instituição atuar a modo de ombudsman na defesa dos direitos da coletividade, sempre que se verificar desrespeito a direitos fundamentais, seja quem for o autor. Para isto, o MP continuará a promover ações civis públicas, inclusive para que o serviço policial esteja presente em todas as regiões do País e seja prestado com eficiência e com respeito aos direitos dos cidadãos (art. 129, inciso II, e art. 37 da CF).
Por igual, mesmo com a revogação almejada pelos delegados, o Ministério Público continuará legitimado, na sua função cível, a fiscalizar eventuais atos de improbidade administrativa praticados na atividade policial, como ocorre com qualquer servidor público, nos termos do art. 129, incisos III e VI, da CF e da Lei 8.429/92, inclusive mediante a instauração de procedimentos cíveis e criminais para apuração de irregularidades.
Como se não bastassem essas objeções de mérito, a PEC é inconstitucional porquanto, pelo art. 127 da Constituição, o Ministério Público é instituição permanente do Estado brasileiro. Essa permanência é tanto da instituição em si mesma quanto das suas atribuições, aí incluído o controle externo da Polícia. A não ser assim, para acabar com o Ministério Público bastaria suprimir, uma a uma, suas atribuições, tornando-o um órgão permanente mas sem qualquer função institucional relevante. Portanto, as funções do art. 129 da CF foram conferidas ao Ministério Público em caráter de permanência e estabilidade. O constituinte derivado não está autorizado a suprimi-las, porquanto são cláusulas pétreas implícitas (art. 60, §4º, IV, CF), na medida em que o controle externo destina-se, em última análise, à tutela dos direitos dos cidadãos investigados pela Polícia, dos direitos das vítimas de crimes e do direito difuso da sociedade à persecução criminal célere, eficiente e justa.
Diga-se também que há uma falha gritante na redação proposta para o art. 144-A da CF. A PEC determina que o CNP terá composição de 16 membros, mas lista 17 integrantes. O problema está no inciso X do referido artigo 144-A: “X – um cidadão de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicado pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.”. O caput do artigo só computou um deles, o que revela o pouco cuidado na elaboração do projeto.
Ainda no tocante à composição do CNP, o intuito corporativista dos que a redigiram é evidente e os idealizadores do projeto não puderam escondê-lo:
a) a composição do Conselho é desigual. Haverá majoritariamente delegados de Polícia. Serão 17 membros, sendo 10 deles delegados de Polícia (nove da Polícia Civil e um da Polícia Federal)! Com tantos membros “de casa”, sequer esse ente poderá ser considerado “externo”. Outros órgãos públicos terão apenas três representantes (só um membro do Ministério Público e dois juízes). Haverá também dois advogados no CNP, quebrando a alegada “paridade” com o Ministério Público, sem contar que o presidente da OAB também oficiará perante o Conselho (art. 144-A, §4º). Da sociedade civil serão somente dois conselheiros, a serem indicados pela Câmara e pelo Senado, havendo risco de também esses serem escolhidos entre delegados de Polícia.
b) embora as Polícias tenham carreiras distintas, somente os delegados de Polícia estarão representados. Não haverá representantes dos peritos, escrivães, papiloscopistas, agentes ou investigadores ou de nenhuma das outras carreiras da Polícia Judiciária e Científica, o que revela a intenção de assegurar mais um bastião para os delegados, longe do ideal de uma Polícia democrática.
c) nenhuma vaga foi reservada à Polícia Militar, instituição de grande tradição histórica no País e que também realiza atividades de polícia judiciária nos inquéritos policiais militares, estando igualmente sujeita ao controle externo na sua atividade de policiamento ostensivo
d) nenhuma vaga foi reservada à Polícia Rodoviária Federal, instituição policial essencial à preservação da ordem e da segurança públicas em todo o País, também sujeita ao controle externo;
e) nenhuma vaga foi reservada à Polícia Legislativa, das casas do Congresso Nacional ou das Assembleias, embora também estas estejam sujeitas ao controle externo;
f) os representantes dos delegados de Polícia serão indicados pelos governadores dos Estados e pelo Ministro da Justiça, mas a partir de listas tríplices escolhidas pelo voto dos delegados a serem “controlados”. O modelo é incompatível com a natureza do serviço policial, que não é autônomo ou funcionalmente independente como o são o Judiciário e o Ministério Público. Os governadores terão ainda maiores dificuldades de pôr em ordem a segurança pública nos Estados pois estarão sujeitos a escolhas corporativas travestidas de democracia;
g) o art. 103-B, §4º, inciso IV, da Constituição determina que o CNJ represente ao Ministério Público em caso de crime contra a Administração Pública ou abuso de autoridade atribuído a magistrados. O CNP não terá essa atribuição de noticiar ilícitos ao Ministério Público, o que evidencia que o propósito do novo Conselho não é fortalecer controle algum, mas sim alijar o Ministério Público do seu papel incômodo e indesejado por maus policiais.
h) o CNP não terá um corregedor nacional, mas apenas um ouvidor, sem qualquer poder disciplinar, o que reforça a noção de que se tratará de um conselho de figurantes, encastelado em Brasília como uma ouvidoria de luxo.
Por tudo isso, a PEC caminha no sentido oposto ao que recomenda a experiência de países mais preocupados com os direitos fundamentais. Kai Ambos, no seu “Controle da Polícia pelo Ministério Público versus Domínio Policial da Investigação na Europa, especialmente na Alemanha” (Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 27, jan/mar 2008, p. 119-141), ensina que:
“No âmbito da luta preventiva contra a delinquência, praticamente se desenvolve um aparato policial autônomo que leva a cabo intervenções ou medidas independentes, as quais, potencialmente, poderiam afetar os direitos individuais de qualquer cidadão, de tal maneira que se faz hoje indispensável um controle jurídico-estatal mais eficiente. Um controle deste tipo em um processo acusatório que implica também em investigação ao estilo alemão somente pode ser exercido através do Ministério Público. Isto faz com que seja necessário que a instituição seja reforçada frente à Polícia; um reforço não só normativo, mas fundamentalmente fático” (p. 140).
Pisoteando direitos (Foto: Camila Domingues. Correio do Povo)
Em suma: conferir autonomia a uma corporação armada e que tem autorização para uso da força é um risco que não vale a pena correr. A PEC 381/09 é desnecessária porque já existe órgão constitucional capacitado ao controle externo, com presença em todo o território nacional, e dotado de ferramentas adequadas à provocação do Judiciário, a partir da compreensão dos problemas policiais locais e regionais. Devido ao contato com juízes, advogados, defensores, acusados, vítimas, os próprios policiais e com os cidadãos em geral, nenhum outro órgão externo conhece tão bem as deficiências e acertos da Polícia quanto o Ministério Público.
O projeto é inconstitucional pois retira poderes administrativos do Executivo das unidades federadas, atribuindo-os a um órgão nacional, no qual somente haverá a representação de oito Estados-membros por vez. Haverá assim violação ao princípio federativo (art. 60, §4º, I, CF). Haverá também ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 60, §4º, III, CF), pois o órgão será presidido por um ministro do Superior Tribunal de Justiça! Igualmente, é inconstitucional porque suprime atribuição permanente do Ministério Público (art. 127 c/c o art. 129, inciso II, CF) e ofende cláusula pétrea implícita relacionada à defesa dos cidadãos e da sociedade contra o abuso e a ineficiência policiais (art. 60, §4º, IV, CF).
O CNP não terá poderes disciplinares. Nisso se revela o fim último da “PEC do descontrole policial”. Seu único objetivo é eliminar o controle externo do Ministério Público sobre a Polícia. Algumas associações de delegados querem que seus filiados sejam “autônomos”, numa autonomia descontrolada. Mesmo riscando o inciso VII do art. 129 da Constituição, não será possível alcançar esse objetivo. O Brasil é um Estado de Direito. E nos Estados de Direito le pouvoir arrête le pouvoir.
Enfim, é válido lembrar que ninguém gosta de ser controlado. Por que os delegados de Polícia não querem o controle do Ministério Público? Porque ele não funciona, ou seria porque ele funciona?! Esta é uma das mais eloquentes razões que estão por trás da PEC 381/09.
Recomendar, solicitar, sugerir. E só. Estes são os poderes de “controle” externo que a PEC do deputado Régis de Oliveira pretende conferir ao futuro CNP! Não será uma arma da cidadania contra maus policiais. Será um tiro pela culatra. E com muitas vítimas.
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