17/08/2023 8h08
Jeniffer Mendonça
Ponte questionou Secretaria de Segurança Pública e o Ministério Público de SP a respeito do uso do equipamento na Operação Escudo e os procedimentos que não foram cumpridos pela corporação
Há uma semana, a Ponte Jornalismo enviou cerca de 20 perguntas que não foram respondidas à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), ao Ministério Público estadual (MPSP) e à assessoria da Axon Enterprise no Brasil sobre as câmeras utilizadas nas fardas da Polícia Militar de São Paulo por conta da Operação Escudo, que deixou, até a publicação desta reportagem, 18 mortos após o assassinato de um soldado da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) em 27 de julho no Guarujá, no litoral paulista.
Desde o dia 7 de agosto, quando em entrevista coletiva o assessor da SSP Pedro Luiz de Souza Lopes levantou a possibilidade de, pelo menos em uma das ocorrências, haver câmera sem bateria e informações contraditórias de envio ou não das imagens ao MPSP, a reportagem decidiu sistematizar uma série de questionamentos com base nas cartilhas voltadas a policiais militares sobre o uso dos equipamentos e o Procedimento Operacional Padrão (POP) 5.16.01, que trata das ações que a PM deve tomar quando usa os aparelhos.
Continuamos cobrando os órgãos e a empresa até esta quarta-feira (16/8), com informações divulgadas pela imprensa, que indicam ocorrências com câmeras descarregadas, gravações sem interesse e acionamento inadequado dos equipamentos. Até a publicação deste texto, as autoridades não deram esclarecimentos.
Abaixo, vamos listar as perguntas em negrito com a contextualização da importância delas e os materiais consultados. Os POPs são sigilosos, mas a Ponte os disponibiliza a íntegra por se tratarem de documentos de interesse público.
À Secretaria de Segurança Pública, comandada pelo secretário Guilherme Derrite e pelo governador Tarcísio de Freitas
Na coletiva de 7 de agosto, o representante da SSP disse que em 10 casos com mortes cometidas pela polícia havia o uso de câmeras, mas não foi especificado que ocorrências eram essas. Por isso, perguntamos: quais são os nomes das vítimas e/ou número dos boletins de ocorrência (BO) que se referem a essas 10 mortes?
A pasta fez uma ampla divulgação de nomes das vítimas à imprensa com indicação de antecedentes criminais, algo que não explica as circunstâncias das mortes em si e nem devem servir de justificativa para que o braço armado do Estado tire vidas. Os nomes das vítimas ou número de boletins de ocorrência servem para a checagem de como foi feito o registro do fato.
Além disso, o assessor Pedro Lopes chegou a dizer que não era obrigatório os policiais informarem nos boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil o uso de câmeras. A Ponte inclusive mostrou que, de oito BOs de pessoas mortas pela PM na operação, apenas em um caso havia a descrição explícita de uso de câmeras operacionais portáteis (COPs) e o pedido das imagens por parte do delegado.
Contudo, os policiais militares devem registrar em seu sistema interno todo o detalhamento das ocorrências, inclusive o uso de câmeras: formulário de registro de ocorrência da PM, que seria o equivalente ao BO, e um relatório de serviço operacional (RSO). Por isso, questionamos: por que não há obrigatoriedade de informar uso de câmeras em boletim de ocorrência registrado em delegacia, sendo que a Polícia Civil é responsável por investigar homicídios, incluindo as mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP)?
Em coletiva, o assessor declarou que, por questões orçamentárias, nem todos os batalhões que participaram da Operação Escudo utilizavam câmeras porque é um sistema “muito caro”, com custo mensal de R$ 7,5 milhões. De fato, o programa de câmeras vem sendo implementado de forma paulatina, sendo que há 10.125 aparelhos atualmente. Porém, como a Ponte mostrou ainda em janeiro de 2023, a Lei Orçamentária Anual (LOA) prevê a meta de aquisição de novos equipamentos, prevendo o total de 15.300 câmeras em uso em São Paulo neste ano, ao custo de R$ 152 milhões.
A LOA é responsável por definir onde os recursos públicos serão empregados no ano seguinte, sendo aprovada no ano anterior, ou seja, o dinheiro para o programa já havia sido aprovado em 2022. Por que a pasta não fez licitação ou ampliou a aquisição do contrato vigente durante o primeiro semestre deste ano com o consórcio Axon/Advanta?
Além disso, informar que em 10 ocorrências de morte os batalhões envolvidos usavam câmeras não significa que todos os policiais militares usavam o equipamento. Por isso, perguntamos: todos os PMs que participaram dessas ações usavam câmeras?
Até 2022, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Unicef sobre o impacto das câmeras na mortes de adolescentes, 62 dos 135 batalhões da PM participavam do Programa Olho Vivo, que abarca o projeto de câmeras nas fardas. Entre eles, está a Rota, que estava entre um dos mais letais do estado. A relação total e atualizada de batalhões beneficiados não é divulgada espontaneamente pela secretaria.
A Polícia Militar tem cerca de 90 mil integrantes, e indagamos: quais são os critérios que determinam a prioridade de um batalhão para receber câmeras? Nesta quinta-feira (17/8), por exemplo, a secretaria anunciou que 400 câmeras foram destinadas ao 1º e 2º batalhões de Trânsito.
Mesmo em batalhões contemplados pelo programa não é possível garantir que todos os PMs usem câmeras em todas as ações. Primeiro porque nem a secretaria nem a corporação divulgam a quantidade de policiais de cada batalhão e quantas câmeras cada batalhão tem. A Ponte já fez pedidos de Lei de Acesso à Informação anteriores sobre quantidade de policiais em batalhões e a pasta sempre trata a questão como informação sensível.
Em segundo lugar, são os sargentos, subtenentes ou tenentes que integram o Comando de Grupo Patrulha (CGP), ou seja, responsáveis pela supervisão dos policiais que fazem parte de um grupo de patrulhamento, que determinam quem deve usar as câmeras quando não há aparelhos suficientes na unidade. É o CGP quem verifica se os PMs estão seguindo os procedimentos e a quem os policiais devem se reportar.
É aí que entra a questão da unidade de serviço (US), como é chamado cada grupamento de policiais que vai fazer o policiamento ostensivo. Por exemplo: uma viatura pode conter de dois a quatro policiais, mas ainda é considerada como uma unidade de serviço. Se for fazer policiamento a pé, é sempre uma dupla de PMs, que também é uma unidade de serviço.
Existe a previsão de que todos os integrantes de uma unidade de serviço devem estar equipados com câmeras. Por exemplo, se tem quatro policiais em uma viatura que vão sair para patrulhamento, os quatro devem usar câmeras.
Se não há aparelhos suficientes, existe uma ordem de prioridade que garante pelo menos uma câmera por unidade de serviço, e quem usa é o encarregado, ou seja, o policial que é responsável pela equipe e que está acima dos demais na hierarquia. Por exemplo, se tem um sargento e um soldado fazendo patrulhamento, o sargento é o encarregado por estar acima do soldado, que é a categoria mais baixa dos praças. Um PM encarregado nunca exerce a função de motorista numa viatura.
Conforme o exemplo abaixo, Cia PM é Companhia da PM, ou seja, subunidades de um batalhão dividido em pelotões (geralmente existem de duas a três companhias dentro de um mesmo batalhão). Cia FT é Companhia de Força Tática, que está presente na maior parte dos batalhões e é uma espécie de tropa mais especializada e é empregada como um reforço em situações de risco.
No desenho, é exemplificada a ausência de câmeras para uma dupla de policiais que vão fazer policiamento a pé numa companhia que tem ainda duas câmeras para os policiais da Radiopatrulha, duas para os da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas), duas para a Ronda Escolar, três para a equipe de Policiamento Comunitário e uma para outra dupla de PMs a pé. Como a equipe de patrulhamento comunitário está com mais câmeras em relação aos outros grupos, a câmera “sobrando” vai para a equipe que não tem.
Por isso, além de perguntarmos se todos os PMs envolvidos nas mortes usavam câmeras, também questionamos se, em caso negativo, se apenas havia uma câmera por unidade de serviço nos casos que terminaram em mortes. Se sim, quem era o encarregado de cada equipe? O encarregado de cada equipe fez disparos?
Além disso, os policiais devem sempre checar se a câmera está com a bateria carregada antes de sair para o patrulhamento. A câmera fica na doca (docking station), que é utilizada para recarregar a bateria e descarregar os dados das cops, conforme a ilustração abaixo que retiramos da cartilha e identificamos os nomes.
Conforme as normas da corporação, se a câmera estiver descarregada, com menos de 95% de bateria ou com qualquer anormalidade, o policial deve formalizar um registro notificando o que ocorreu e avisar o CGP, “bem como o Comandante da Companhia e o policial telemática do batalhão (fiscal do contrato), na primeira oportunidade”.
O POP ainda aponta que o CGP deve notificar o Comando de Força Patrulha (CFP), que está acima dele, sobre o problema para a troca do equipamento. A duração da bateria da câmera é de 12h, mesmo tempo de turno de serviço de um policial. A informação de carregamento da câmera é consultada na tela, como indica a ilustração abaixo sobre as funções do equipamento.
Inclusive, uma das cartilhas tem uma seção de perguntas e respostas que sugere o uso de um carregador USB para ligar na tomada caso a bateria esteja acabando ou com menos de 10% de carga ou deixar na doca recarregando enquanto o policial realiza atividades que não precisem ser gravadas, como almoçar. Ou o policial pode solicitar a troca do equipamento ao CGP. Tudo deve ser notificado.
Além disso, em casos de morte praticada pela PM, o POP determina que as câmeras dos policiais envolvidos devem ser entregues ao “Comando de Força Patrulha ou equivalente”, ou seja, o CGP. Eles ficam responsáveis pela custódia dos equipamentos até que o conteúdo armazenado seja descarregado.
Considerando que o Ministério Público declarou que em pelo menos três casos as baterias estavam descarregadas, o que chama muita atenção pelos procedimentos descritos, questionamos:
Houve registro de alguma anomalia em câmeras ou na doca antes da saída para patrulhamento? Se sim, quais foram e quantas câmeras foram afetadas?
Quais eram os policiais integrantes de Comando de Grupo Patrulha (CGP) e Comando de Força Patrulha (CFP), durante a Operação Escudo, entre os dias 27 de julho e 5 de agosto de 2023?
Houve algum tipo de notificação ao CGP e ao CFP sobre inoperância (defeito técnico, danos no equipamento, extravio, etc.) das COPs nesse período quando os policiais já estavam em campo para patrulhamento? Se sim, quais foram e em quais circunstâncias? Quantos equipamentos foram afetados?
Que medidas foram tomadas depois? Há comunicação ao consórcio Axon/Advanta? O aparelho foi trocado?
Como a Ponte já mostrou em reportagem de 2021, a câmera grava ininterruptamente, sem o policial precisar ligar e desligar a câmera enquanto está trabalhando. Contudo, para casos de interesse policial, ou seja, abordagens, perseguições e afins, ele deve apertar um botão que identifique que essa gravação é importante. Isso faz com o que o áudio seja acionado e a imagem da câmera tenha uma resolução melhor.
O áudio condicionado às ocorrências, segundo a PM, foi uma forma de garantir a privacidade do policial. Por outro lado, também se tornou um meio de policiais que querem mascarar suas ações ao não acionarem o áudio ou, ainda, taparem abertamente as lentes das câmeras, como revelamos no ano passado, em um outro caso no Guarujá.
Inclusive, a Ponte questionou a assessoria da Axon se durante todo o período de vigência do contrato com a PM de São Paulo, desde 2020, e especificamente no intervalo de 27 de julho a 5 de agosto de 2023, a corporação comunicou algum tipo de problema nos equipamentos ou pediu trocas, mas não houve resposta.
Também perguntamos se a Polícia Civil, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o Poder Judiciário e a Ouvidoria das Polícias têm cadastro de usuário externo na plataforma Evidence, que é da Axon e é utilizada para armazenar as imagens das câmeras. Há previsão de criação de usuário externo para acessar ocorrências específicas, tendo em vista declarações sobre pedido de envio de imagens.
Isso porque já revelamos casos em que o pedido se dava por ofício e a PM enviava uma pasta com os arquivos das imagens, mas não havia a íntegra de toda a ação, como na reportagem sobre dois rapazes acusados de participarem de um golpe por pix.
Fizemos a mesma pergunta ao MPSP, inclusive indagamos de que forma o órgão está monitorando o contrato das câmeras, mas a assessoria não respondeu as perguntas nem concedeu entrevista quando solicitamos no dia 7 de agosto ao informar que os promotores não se manifestariam. Na terça-feira (15/8), o procurador-geral de Justiça Mario Sarrubbo disse à TV Globo que o órgão teve acesso a 50 horas de gravações e que receberam laudos cadavéricos de 12 vítimas. Fizemos novo pedido de entrevista na quarta-feira (16), diante das atualizações do caso, mas também não houve resposta.
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