Tempos felizes: Zuzu Angel com os três filhos (Hildegard, Ana e Stuart). Filha de Zuzu acredita que 'a política brasileira tem o mau costume de conciliar demais' - Acervo Instituto Zuzu Angel
União terá de pagar indenização por danos morais às filhas da estilista, morta em “acidente” em 1976 na ditadura
A União terá que indenizar Hildergard Angel e sua irmã, Ana Cristina, por danos morais, pelo assassinato de sua mãe, Zuleika Angel Jones, a Zuzu Angel, em 14 de abril 1976.
A decisão transitou em julgado – situação em que não cabem mais recursos – no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Segundo o advogado Ivan Nunes Ferreira, o precatório já foi emitido, inclusive, para pagamento no ano que vem.
Por decisão da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o Estado já havia sido responsabilizado pela morte da estilista Zuzu, em um “acidente” de automóvel no Rio de Janeiro.
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O próprio atestado de óbito foi alterado para morte não natural, “violenta, causada pelo Estado brasileiro”. Isso aconteceu também com o atestado de Stuart Angel Jones, irmão de Hildegard e Ana, que foi assassinado sob tortura em 1971.
Ainda assim, Hildergar lembra que não é incomum apontarem “causas desconhecidas” para a morte da mãe.
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“A fim de tornar indelével na memória brasileira essa realidade trágica indiscutível, ainda tratada de forma ambígua por alguns, nós, filhas de Zuzu Angel, após muitos anos de sua morte, resolvemos recorrer ao reconhecimento da Justiça”, escreve Hildegard em seu blog, citando o advogado. E acrescenta que não se pode refutar os fatos.
Emboscada covarde
“Aproveito aqui para informar aos que inadvertidamente negarem o assassinato de Zuzu Angel, acontecido numa emboscada covarde pelos agentes da ditadura, que não se trata mais de simples omissão ou negligência, mas de um crime contra a memória de nosso país.”
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A primeira decisão sobre pagamento de danos morais é de 2011. O juiz federal Mauro Luís Rocha Lopes, da 2ª Vara Federal do Rio de Janeiro, julgou procedente o pedido para Hildegard e irmã Ana, fixando indenização da União, pelas mortes de Stuart e de Zuzu. Lembrou que o próprio Estado, em processos anteriores, já havia admitido sua responsabilidade.
A União apelou, e o caso foi para o Tribunal Regional Federal da 2ª Região. O juiz relator, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, lembrou que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos já havia atestado a responsabilidade do Estado na morte da estilista.
“Em relação ao interesse jurídico lesado, a dor experimentada pelas autoras é intensa”, escreveu. “Primeiro, perderam o irmão, em circunstâncias cruéis, para depois verem assassinada sua mãe.”
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Denúncia internacional
Em abril de 2012, a 6ª Turma do TRF deu provimento parcial ao pedido, por maioria. Seguiram-se embargos e discussão, basicamente, sobre a natureza da indenização e seu valor. O caso chegou em janeiro de 2018 ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Transitou em julgado em 9 de março.
Zuzu era uma estilista reconhecida internacionalmente quando Stuart – filho dela com o norte-americano Normal Angel Jones –, militante político, desapareceu (o rapaz nasceu na Bahia, Ana e Hildegard são do Rio).
Ela iniciou uma peregrinação em busca do rapaz, então com 26 anos. Também realizou um “desfile de protesto” em Nova York. Escreveu e procurou autoridades, inclusive do governo dos Estados Unidos. Por onde andasse, distribuía “santinhos” com a foto de Stuart.
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Por relatos de outros pesos, soube-se que Stuart foi torturado e morto no Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), no Galeão. Seu corpo nunca foi encontrado.
A peregrinação de Zuzu fez com que ela própria se tornasse um alvo da ditadura. Passou a receber ameaças de morte. Pouco antes do “acidente”, escreveu um carta para Chico Buarque afirmando que, caso acontecesse algo com ela, os responsáveis seriam os mesmos que mataram seu filho.
Na madrugada de 14 de abril de 1976, o carro que a estilista dirigia capotou várias vezes na saída do Túnel Dois Irmãos, no bairro de São Conrado. Hoje, o túnel leva o nome de Zuzu Angel.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) recebeu uma foto em que o major Freddie Perdigão Pereira aparece no local do acidente. “Esta é uma foto que não estava no inquérito.
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Provavelmente foi produzida pela perícia e ficou guardada (…)”, declarou na época o presisidente da CNV, Pedro Dallari. “Para o Estado brasileiro já existe a vinculação reconhecida da morte de Zuzu Angel (com a ditadura), mas esta foto reforça o envolvimento das Forças Armadas com a morte dela. Até hoje eles negam isso”, acrescentou.
Filme e música
A fotografia foi entregue pelo ex-delegado do Dops Cláudio Guerra. Posteriormente, o jornal O Globo identificou a imagem, publicada na edição de 15 de abril. Na época, a presença do militar não foi identificada.
Em 2006, foi lançado o filme Zuzu, dirigido por Sérgio Rezende e estrelado por Patrícia Pillar. Daniel de Oliveira faz o papel de Stuart. No ano seguinte ao da morte da estilista, Miltinho, do MPB-4, e Chico Buarque compuseram Angélica, em homenagem a ela.
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Tempos atrás, Chico contou que na manhã do “acidente” ela passou em sua casa e deixou camisetas para as filhas dele e de Marieta Severo, com figuras de anjos, que se tornaram sua marca depois do desaparecimento de Stuart.
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
(…)
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
(…)
Para Hildegard, o Brasil é um país com um mau costume: conciliar demais. Entre outros fatores, isso deve ao que ela chama de “covardia” dos governantes.
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Qual a sensação que essa decisão proporciona, tanto tempo depois?
De conforto. Esta é uma luta contínua, que jamais terá fim. Só assim se justificam as mortes de minha mãe e meu irmão. Lembrar, lembrar e lembrar, através de gerações, os horrores que viveu nosso país no período da ditadura. Não ouvimos quase falar nas torturas da ditadura de Getúlio Vargas, sob comando de Filinto Müller, que foram perversas e em muitas pessoas. As famílias não contaram, a mídia não faz delas notícia. Então, a responsabilidade de consolidar essa narrativa histórica é nossa, dos familiares. E as famílias dos perseguidos da ditadura de 64 tem cumprido muito bem essa missão. Eu me empenho em também fazer assim.
Curiosamente, aconteceu durante um governo que exalta os “feitos” da ditadura. Além disso, muitos defendem a “volta do AI-5” ou uma “intervenção militar”. Como o país chegou a esse ponto?
A política brasileira tem o mau costume de conciliar demais. Nossos governantes foram covardes, deveriam ter revisto essa Lei de Anistia, que igualiza o joio e o trigo. A mídia pode ter colaborado com a ditadura, mas passados os anos de chumbo ela reviu sua posição. Acredito que teria aplaudido a revisão dessa Lei da Anistia, mas os presidentes que vieram a partir de 1985 não se animaram, muito menos o Congresso e o STF.
Por falar nisso, consegue ver alguma saída nesse momento de crise generalizada, um “esgoto”, como a sra. já definiu? Impeachment? Temos força ou vontade política para isso? Cassação da chapa?
Acredito que precisa haver reação popular. Povo na rua, panelaços. Precisamos cassar essa chapa, eleita a partir de fake news, um esquema criminoso e poderoso, que contaminou corações e mentes, e ainda hoje funciona ativamente, cooptando os mais ingênuos.
E a oposição, conseguirá de fato se organizar no que costuma se chamar de frente ampla?
Não sei se a frente ampla proposta trará resultados. Um saco de gatos. Tanto que FHC assinou um manifesto e o PSDB na semana seguinte (grifo de Hildegard) aderiu a Bolsonaro. Não há legitimidade.
A grande imprensa sabia, os jornalistas sabiam, os formadores de opinião sabiam, os artistas, os políticos, os empresários, os juristas, todos sabiam.” Por que no Brasil é tão difícil restabelecer a verdade histórica? Mesmo a Comissão Nacional da Verdade encontrou obstáculos aparentemente intransponíveis.
Porque muitos formadores de opinião não se informam direito sobre os fatos antes de escreverem a respeito (1), porque muitos têm medo de cometer excessos na escrita que lhes acarrete processos (2), daí que tudo é “suposto”, porque existe no Brasil um ranço do grande medo que a ditadura inspirava em todos, isso passou de pais para filhos (3).
Quem é essa mulher?
Mãe às últimas consequências, brasileira orgulhosa, trabalhadora incansável, artista no trabalho e na alma.
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