Na Baixada Fluminense, onde morreram as primas Emilly e Rebeca, crimes violentos estão em baixa por causa da pandemia, mas as mortes em operações policiais batem recorde
FOTO: TÉRCIO TEIXEIRA/FOLHAPRESS
Em outubro, a Baixada Fluminense bateu dois recordes ao mesmo tempo. Nunca houve, na região, um mês de outubro com tão poucos crimes terminados em morte – foram 77, o menor registro desde 2003, quando teve início a série histórica do ISP, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, nunca houve um outubro com tantas mortes provocadas pela polícia. Foram 62, uma média de duas por dia. As chamadas “mortes por intervenção policial” vinham num patamar baixo havia meses. Em setembro, foram catorze mortes desse tipo na Baixada. Até que, em outubro, elas explodiram.
Em Itaguaí, a polícia matou quinze pessoas. Em Nova Iguaçu, outras quinze. Duque de Caxias, cidade mais populosa dentre as treze que compõem a Baixada Fluminense, teve doze mortos pela polícia em outubro, mais que o dobro do mês anterior. Foi em Caxias que Emilly e Rebeca, duas primas de 4 e 7 anos de idade, morreram vítimas de bala perdida na última sexta-feira (4). Elas brincavam em frente à casa da avó de Rebeca, na favela do Barro Vermelho. A origem do disparo está sendo investigada. Mesmo se for confirmado que o tiro partiu da polícia, as meninas não entrarão para a estatística de mortes por intervenção policial, que só leva em conta as mortes em supostos confrontos – os chamados autos de resistência.
“Não houve tiroteio nesse dia, não houve nenhuma operação. Quem estava lá diz que só a polícia atirou. Eles estavam tentando acertar um motoqueiro que entrou na comunidade”, explica Marilza Barbosa Floriano, ex-empregada doméstica que hoje faz parte da Rede de Mães e Familiares Vítimas de Violência de Estado na Baixada Fluminense. Por meio da associação e de outros movimentos de que participa, ela vem prestando auxílio à família de Emilly e Rebeca, ajudando a organizar vaquinhas online para auxiliar nos gastos básicos da casa. “Caxias hoje tem mais polícia do que qualquer outra coisa”, diz Floriano, que mora na cidade desde que nasceu, 53 anos atrás. A Polícia Militar nega que os policiais presentes na região tenham feito disparos.
A Baixada é o exemplo mais extremo de uma tendência que pôde ser percebida em todo o estado. Em outubro, as mortes pela polícia triplicaram no Rio de Janeiro. De um patamar de cinquenta mortes por mês (em julho, agosto e setembro), o número saltou para 145 mortes. Na capital, 38 pessoas foram assassinadas pela polícia, a maior quantidade desde maio. As vítimas, em geral, são homens pretos e pardos. Um relatório da Rede de Observatórios da Segurança mostrou que 86% dos mortos pela polícia do Rio em 2019 eram negros.
Outubro, portanto, marcou o fim de uma sequência de meses em que a violência policial esteve sob relativo controle no Rio. Em junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin proibiu operações policiais em comunidades durante a pandemia. O efeito dessa decisão – referendada mais tarde pelo plenário do Supremo – foi sentido imediatamente. De janeiro a maio, a polícia do Rio tinha assassinado, em média, 149 pessoas por mês. Esse número despencou para 34, em junho, e pouco evoluiu nos meses seguintes. Já o número de ocorrências criminais ficou estável. Ou seja: o fim das operações não impactou o crime, mas reduziu drasticamente o número de mortos pelo Estado.
Agora, a polícia parece ter voltado aos tempos pré-pandemia, embora a decisão do STF ainda vigore e a criminalidade continue em níveis historicamente baixos. Questionada sobre o novo pico de mortes, a assessoria da Polícia Militar não respondeu à piauí. Por meio de nota, fez um balanço do trabalho da corporação – 28 mil prisões efetuadas desde janeiro e 5,5 mil armas de fogo apreendidas. Segundo a assessoria da PM, a política de segurança do Rio “é baseada em inteligência, investigação e tecnologia”.
Oque mudou em outubro? “É evidente que esse aumento das mortes não foi uma resposta à criminalidade. Ela parece ser fruto, na verdade, de uma nova orientação política dentro dos batalhões”, afirma Silvia Ramos, cientista social e pesquisadora do Cesec – o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Segundo ela, a série histórica do Rio de Janeiro mostra que a letalidade policial nunca teve relação com o aumento ou a diminuição dos crimes. É um fenômeno independente, mais sensível a mudanças na esfera da política. “Um exemplo disso é o caso da estudante Maria Eduarda, de 13 anos, que foi morta em 2017 por policiais do 41º batalhão. O caso teve grande comoção, e, no mês seguinte, esse batalhão, que era um dos mais letais do Rio, teve zero mortes”, aponta Ramos. “Quando eles querem, eles seguram a onda. E agora está acontecendo exatamente o contrário.”
Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF) mostrou que o número de operações feitas pela PM e pela Polícia Civil dobrou em outubro. Em setembro, foram dezenove; no mês seguinte, 38.
O ministro Fachin proibiu as operações, mas abriu uma brecha para casos “absolutamente excepcionais”. Para Daniel Hirata, professor da UFF e coordenador do Geni, essa fresta está sendo explorada pelas polícias. “Não só as operações aumentaram, como elas têm sido feitas com menos mandados de busca e apreensão do que antes. Elas têm menos justificativa judicial”, explica Hirata. “Por trás disso há uma motivação política e eleitoral. A declaração do governador Cláudio Castro foi muito clara [à revista Época, no começo de novembro, Castro disse que ‘na minha gestão, não há lugar onde o Estado não possa entrar’]. Uma postura como essa não se justifica com nenhuma análise séria dos dados.”
Das 38 operações policiais realizadas em outubro, oito foram em cidades da Baixada Fluminense. A região concentra 18% da população do estado, mas respondeu por 43% das mortes pela polícia. No dia 15 de outubro, uma única operação da Polícia Civil contra a milícia deixou doze mortos em Itaguaí. No dia anterior, outras cinco pessoas haviam sido mortas em Nova Iguaçu, numa operação ligada a essa mesma investigação. Segundo a Polícia Civil, o objetivo da ação era coibir a interferência de milicianos nas eleições.
“A Baixada é a sombra do Rio de Janeiro. É a área de treinamento, de descarga, onde as coisas acontecem livremente porque têm pouca repercussão na imprensa e na opinião pública”, diz o sociólogo José Claudio Souza Alves. Estudioso das milícias, ele vive em Seropédica, na Baixada, onde dá aulas na UFRRJ – a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. “Essa operação da Polícia Civil revela muito. Em vinte anos de milícia, nunca houve nada desse nível. E aí, em dois dias, a polícia mata dezessete pessoas. Isso só serve de palanque e fortalece ainda mais o discurso de que matar resolve. Mas não resolve. A milícia não vai sair daquela região. É uma rede que vai se reconfigurar rapidamente.”
Souza Alves explica que as eleições, sobretudo municipais, costumam ser precedidas por um aumento da violência na Baixada. Este ano, como a eleição foi adiada para novembro, os números só começaram a refletir esse fenômeno em outubro. “Quando chega o processo eleitoral, toda a estrutura do crime é acionada em várias dimensões. A violência é usada para controlar território e também como cartão de visitas do candidato que quer mostrar que ali vai ter controle. Nesse caldo de extrema direita em que estamos, isso se acentuou.”
“Há algumas semanas, escutei uma rajada de metralhadora aqui perto de casa. Moro em Mesquita há vinte anos e nunca tinha ouvido algo assim”, conta Adriano de Araújo, sociólogo e coordenador do Fórum Grita Baixada, uma organização que promove iniciativas de direitos humanos na região. “Às vezes, de madrugada, escuto só um ou dois tiros, e nada mais. Não sei dizer, mas parece sinal de execução. Já aconteceu de eu sair para cortar o cabelo de manhã e ficar sabendo que fulano foi encontrado morto num matagal.”
Os tiroteios, diz ele, aumentaram de cinco anos para cá, na cidade. As metralhadoras são uma novidade. “Mas, para ser franco, não me surpreende. A violência aqui sempre foi assim. Às vezes recua um pouco, mas depois se agrava. A maior parte das mortes nem chega até a imprensa. O caso da Emilly e da Rebeca causou uma comoção muito grande pelas circunstâncias, mas isso não acontece com muitos adolescentes que morrem aqui.”
Marilza Floriano, integrante da rede de apoio a famílias vítimas de violência na Baixada, corrobora o testemunho. “Quando eu era criança, a polícia metia o pé na porta quando queria. Sempre foi assim, desde o tempo do Tenório Cavalcanti.” Apelidado de “homem da capa preta”, Cavalcanti foi deputado federal e era a principal figura política de Caxias nas décadas de 1950 e 60. Aterrorizava adversários com uma submetralhadora alemã chamada Lurdinha, que sempre levava a tiracolo. Foi acusado de dezenas de crimes violentos. Morava com a família numa chácara no Pantanal, bairro de Caxias onde hoje vive Floriano.
“Nossa vida sempre foi controlada por esses grupos, e hoje continua sendo”, diz Floriano. “Toda mãe que mora aqui não dorme enquanto o filho não entra em casa. A gente tem medo de que ele pegue um ônibus e vá para o Centro da cidade. A gente tem medo de que ele entre numa loja e pensem que ele está roubando. É uma situação cruel.”
LUIGI MAZZA (siga @LuigiMazzza no Twitter)
Repórter da piauí, produtor da rádio piauí e diretor do podcast Foro de Teresina
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