Responsabilidade civil do Estado
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Ao policial civil ou militar, como agente da Administração Pública e responsável pela polícia preventiva e repressiva, cabe zelar pela ordem e sossego públicos e pela incolumidade física dos cidadãos. No exercício desse mister lhe são concedidas algumas franquias, como o uso de armas de fogo, algemas e outros apetrechos sem os quais não poderá bem cumprir o seu munus e combater a criminalidade.
Porém, não é detentor de salvo-conduto que lhe permita tudo, nem lhe foi concedido direito à indenidade. O exercício regular desse direito não passa pelo abuso, nem se inspira no excesso ou desvio do poder conferido.
Visando expor a questão relativa ao abuso RENÉ DE PAGE [01] inicia por assentar que o exercício dos direitos é condicionado a certas regras fundamentais de polícia jurídica. Sem dúvida que todo direito, enseja uma faculdade ou prerrogativa ao seu titular, mas ao mesmo tempo reconhece que tal prerrogativa deve ser exercida na conformidade do objetivo que a lei teve em vista ao concedê-la ao indivíduo.
Essa questão relativa ao limite do exercício do direito, além do qual poderá ser abusivo, quer dizer, a linha divisória entre o poder concedido e o poder excedido, constitui a essência da teoria do abuso de direito.
Colocou-o com exação EUGENE GAUDEMET [02] quando esclareceu que os direitos existem em razão de uma certa finalidade social e devem ser exercidos na conformidade desse objetivo. Todo direito se faz acompanhar de um dever, que é o de se exercer perseguindo a harmonia das atividades. A contravenção a este dever constitui abuso de direito.
Assim, se um policial, quando em serviço, usando uniforme e equipamentos da corporação se excede nas funções que lhe foram cometidas e faz uso dela, responde o Estado pelos prejuízos que deste ato advenham. Aplica-se, na hipótese, a regra geral contida no art. 37, § 6º, da Constituição Federal. A responsabilidade é objetiva, posto que as pessoas jurídicas ali definidas respondem pelos atos de seus prepostos.
Se o ato foi abusivo ou praticado com excesso de poder, identifica-se aí a culpabilidade do agente público e, então, haverá em favor do Estado o direito de regresso. Nem cabe alegar que o fato de o preposto ter cometido ato ilícito e caracterizado, ad exemplum, como conduta criminalmente tipificada, constitui causa excludente da responsabilidade estatal.
O abuso mais confirma sua obrigação de responder, posto que é sua responsabilidade exclusiva a arregimentação de pessoas para o efeito policial.
O policial não é um servidor qualquer. Dele se exige atributos especiais. Há de ser destemido, sem desbordar; há de mostrar-se intimorato e forte apenas no combate ao crime e atos criminosos. Não basta que seja honesto e escorreito. Há, ademais, de "parecer" honesto.
Anota YUSSEF SAID CAHALI que dispondo o Estado de verbas expressivas extraídas da arrecadação tributária, aos organismos policiais cometidos da função de segurança pessoal e coletiva, impõe-se-lhe, à sua conta e risco, o correto recrutamento daqueles que, para o seu desempenho, receberam uma farda representativa e uma arma de fogo. Daí reconhecer-se a responsabilidade civil do Estado mesmo naqueles casos de manuseio disparatado da arma, causador de danos, à integridade física dos particulares. [03]
Hodiernamente, via da imprensa escrita, falada e televisiva, somos informados que policiais no exercício regular de suas funções causam danos a terceiros, às vezes irreversíveis. Vem se tornando corriqueiros nefastos acontecimentos de pessoas que sofrem constrangimentos causados por policiais despreparados e inconseqüentes.
Poderia ser lembrado nos dias atuais que são comuns hoje os confrontos entre policiais e marginais nas favelas, na via pública ou interior de estabelecimentos e residências. Nesses casos, embora os policiais possam ter agido com moderação e comedimento, procedido segundo as normas de conduta estabelecidas para as circunstâncias do momento, responderá o Estado, objetivamente, pelos danos que essa ação legítima causar a terceiros.
São acontecimentos não queridos e fruto muito mais do recrudescimento da violência dos marginais que do comportamento dos agentes policiais, mas que impõe uma resposta mais severa destes. O chamado "poder paralelo" do crime organizado não pode servir de excludente ou subterfúgio dos agentes policiais, não podendo se abstrair do exercício do respeito que merece todos os cidadãos.
Nem por isso, entretanto, ficará o Estado acobertado pela indenidade civil, pois vige – como regra constitucional – a teoria do risco administrativo, que obriga o Estado indenizar, sem indagação de culpa, em seu sentido amplo.
Praticado ato abusivo ou com excesso de autoridade que cause dano ao patrimônio material ou subjetivo do cidadão, ao Estado caberá compor os danos, com direito de regresso contra seu servidor. Portanto, de qualquer modo que se manifeste o abuso de autoridade, caberá à Administração responder pelas conseqüências danosas que dele resultar.
O homem tem direito à integridade de seu corpo e de seu patrimônio econômico, tem igualmente à indenidade do seu amor-próprio (consciência do próprio valor moral e social, ou da própria dignidade ou decoro) e do seu patrimônio moral. Notadamente no seu aspecto objetivo ou externo (isto é, como condição indivíduo que faz jus à consideração do círculo social em que vive), a honra é um bem precioso, pois a ela está necessariamente condicionada a tranqüila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade.
Assim por exemplo, constitui vexame agudo expor-se uma pessoa de bem em praça pública, ao dissabor de ser imputado de criminoso, à má fama implacável de amigo do alheio. Tal fato fere a sensibilidade ética, causa depressão angustiante, justificada revolta íntima.
Se por abuso de autoridade e ameaças for atingido qualquer cidadão, obviamente arranhões foram produzidos em sua reputação moral, merecendo sua reparação condizentemente.
O relativo arbítrio atribuído a polícia judiciária, não pode extrapolar os limites do necessário à apuração e descoberta dos fatos delituosos. Se do excesso do chamado "poder de polícia" resulta constrangimento vexatório que poderiam ser evitados, resta caracterizado o abuso de autoridade
A Constituição da República ao dispor sobre os direitos individuais e coletivos, em seu art. 5o, inciso X, preceitua: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito de indenização do dano material e moral, decorrente de sua violação.
A regra do art. 186, do Estatuto Civil, é de clareza meridiana, ao dispor que: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Se qualquer policial imputar fato ofensivo ao cidadão, com o intuito de molestá-lo, confundi-lo e humilhá-lo, gera a ele, direito à indenização por dano moral, consistente no constrangimento por ele sofrido, encontrando tal forma de reparação no art. 5o, inciso X, da Lex Mater, à luz do qual deve ser interpretado em consonância com o art. 186, da lei substantiva.
O parágrafo 6º, do art. 37 da Carta da República, lembra que: As pessoas de direito público e as de direito privado prestadores de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A resposta do Poder Judiciário, não obstante algum alarde ignorante, tem vindo a galope. Para exemplificar, pedimos venia para transcrever excertos de uma sentença proferida em primeiro grau de jurisdição pelo cioso magistrado goiano - DR. PÉRICLES DI MONTEZUMA – que, fundamentando o veredictum, observou pela teoria objetiva, o nexo de causalidade entre a ação do agente do Estado (policial) e o resultado danoso, gerando por conseqüência danos morais.
Por certo que, em tese, a atividade policial desempenhada envolve pequenos constrangimentos ao cidadão comum, tais como as revistas em bagagens ou pessoais, como mal necessário justificado pelo interessa maior público. Daí falar-se em dano mínimo, superável e justificável. Todavia, cada caso há de ser investigado detidamente.
O modo de abordagem também há de ser apreciado, pois tal como qualquer outro servidor público o policial deve agir com urbanidade, imparcialidade e impessoalidade. Não que haja um ideal de educação de uma Scotland Yard, mas se exige um mínimo de tratamento civilizado ao cidadão, mesmo que se verifique singelo elemento de suspeita de algum ilícito penal típico.
Não se ameaça fazer prisão em flagrante: OU SE FAZ OU NÃO SE FAZ, desde que constatada crepitante alguma conduta possivelmente típica. O cidadão tem o direito de defender-se verbalmente, desde que o faça também com civilidade e Educação, no momento da atividade policial, sem atrapalhar seu desenvolvimento fático.
Não cabe ao policial exprimir qualquer juízo de valor, ainda que sugestivamente, para concluir açodadamente a respeito da pessoa ou do evento possivelmente típico; ainda mais policial militar que possui atividade meramente ostensiva e não investigativa. Seu desiderato restringe-se ao encaminhamento da ocorrência para a polícia judiciária. Somente depois, compete à autoridade policial civil formalizar prisão em flagrante e nota de culpa, havendo o indiciamento claro do envolvido.
O caso dos autos revela exageros na conduta policial. Depois de abordar o autor, o policial militar envolvido passou a submetê-lo a constrangimento excessivo e desnecessário, destemperado por nervosismo; causando alarde injustificável em via pública; exprimindo em alta voz juízo de valor negativo a respeito do autor; determinando que calasse a boca, sob a ameaça de prendê-lo.
No caso, em via pública de intenso movimento – tanto que se juntaram vários curiosos, a mera sugestão apressada e indevida a respeito do caráter pessoal de uma pessoa compromete-lhe sobremodo a reputação; atingida em sua honra pessoal; reconhecendo-se diminuída, diante de si própria e das demais pessoas circundantes. De tudo isso, nota-se o despreparo policial imputável ao Estado-Administração.
Reiterada a jurisprudência dos Tribunais Estaduais e Superiores que vêm assentando:
A Constituição Federal manteve a responsabilidade civil objetiva da Administração, sob a modalidade do risco administrativo. Para a responsabilização basta a ocorrência do dano causado por ato ´´lesivo e injusto´´, não importando a culpa do Estado e de seus agentes.
Responsabilidade Civil do Estado. Indenização. A administração Pública, como têm observado a doutrina e a jurisprudência, responde pelos danos causados a terceiros, independentemente da existência de culpa ou dolo por parte de seus agentes. [06]
Indenização. Responsabilidade civil. Teoria objetiva. Na dicção do artigo 37, § 6º, da Lex Mater, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão objetivamente pelos danos que seus agentes causarem a terceiro. [07]
É inescusável, conforme prescreve o art. 37, § 6º, da Constituição federal que as pessoas jurídicas de Direito Público respondam pelos danos causados a terceiros por ação ou omissão de seus funcionários. O Estado, por seus agentes policiais, tem o dever de promover a segurança dos cidadãos. Se estes são vítimas de agressões, por seus policiais, ele responde pelas conseqüências danosas do evento. ... [08]
Duplo Grau de Jurisdição. Responsabilidade civil do Estado. Constituição Federal de 1988, art. 37, § 6º. O Estado responde civilmente pelos danos causados a terceiros por seus agentes, quando decorrentes de ato ilícito, independentemente da prova de que tenham agido com culpa, nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição Federal de 1988. [09]
Responsabilidade civil do Estado. Teoria do Risco Administrativo. A responsabilidade civil do Estado orienta-se pela teoria do risco integral ou teoria do risco administrativo. O art. 37, § 6º, da Constituição Federal, modificando a redação do art. 15 do Código Civil, estabelece a responsabilidade do Estado pelos danos que seus agentes causam a terceiros, uma vez verificado o nexo de causalidade entre o ato administrativo e o prejuízo sofrido, sem cogitação de dolo ou culpa do agente, ou preposto, da pessoa jurídica de direito público. [10]
Desbordando os agentes policiais o exercício regular do direito, configurado o fato e o dano, com o correspondente liame causal, impõe-se a indenização pelo prejuízo moral sofrido. [11]
Responsabilidade objetiva do Estado pelo dano moral que os seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Provado o fato danoso à honra da pessoa, e o vínculo estatutário com o ente político acionado, dos agentes policiais que o praticaram, cabe o dever de indenizar, sobretudo quando a culpabilidade do ofendido não fica evidenciada, de modo a afastar a do órgão público. [12]
Responsabilidade Civil do Estado. Prisão ilegal de cidadão, realizada em via pública, acompanhada de maus tratos por parte dos policiais. ... Dano moral inquestionável. Reparação devida. Fixação. Atentando às peculiaridades do caso, às humilhações sofridas pelo autor e visando apenar o estado, para que estruture a sua polícia visando a proteção do cidadão, e não que ela própria engendre atos odiosos como esse,. ... [13]
O Estado é responsável pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, devendo a indenização cobrir danos morais e materiais. [14]
Dessarte, sobrevindo em razão de ato ilícito praticado por agente estatal (policial), perturbação nas relações psíquicas, na tranquilidade, nos sentimentos e nos afetos de uma pessoa, configura-se o dano moral, passível de indenização. A reparação do dano moral tem natureza punitiva, aflitiva para o ofensor, com o que tem a importante função, entre outros efeitos, de evitar que se repitam situações semelhantes.
Notas
01
- Traité élémentaire..., vol. I, ns. 111/112.02
- Théorie générale des obligations, p. 318.03
- Responsabilidade Civil do Estado, Ed. RT, S. Paulo, 1982, p. 178.04
- TJGO., Ap. Criminal nº 14.455-8/213, rel. Des. João Batista de Faria filho, v.u., j. 18/04/96.05
- TJGO., DGJ. nº 7.088-0/195, rel. Des. Floriano Gomes, v.u., j. 23/08/01.06
- TJGO., Ap. Cível nº 44.151-9/188, rel. Des. Gercino Carlos A. da Costa, v.u., j. 28/04/98.07
- TJGO., DGJ. nº 4.854-6/195, rel. Des. Fenelon Teodoro Reis, v.u., j. 10/03/98.08
- TJGO., DGJ. nº 1.589-1/195, rel. Des. Antônio Nery da Silva, v.u., j. 25/10/90.09
- TJGO., DGJ. nº 2.370-3/195, rel. Des. Roldão Oliveira de Carvalho, v.u., j. 24/11/92.10
- TJGO., DGJ. nº 3.316-4/195, rel. Des. Mauro Campos, v.u., j. 26/09/95.11
- TJRS., Ap. Cível nº 70000323162, rel. Des. Rejane Maria D. Castro Bins, v.u., j. 22/12/99.12
- TJRJ., EmbInfr. Ap. Cível nº 1996.005.00262, rel. Des. Ronald Valladares, v.u., j. 19/03/97.13
- TJSE., Ap. Cível nº 199923857, rel. Des. Aloiso de Abreu Lima, v.u.14
- STJ., REsp. nº 3.604-SP., rel. Min. Ilmar Galvão, v.u., j. 19/09/90, DJU 22/10/90. No mesmíssimo sentido: REsp. nº 181.601-RS., rel. Min. Garcia Vieira, v.u., j. 12/11/98, DJU 22/02/99; REsp. nº 156.289-SP., rel. Min. Demócrito Reinaldo, v.u., j. 29/04/99, DJU 02/08/99.- Assuntos relacionados
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Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)
SOUZA, Giorgi Thompson de. Abuso de autoridade, agressões físicas ou morais praticadas por policiais. Responsabilidade civil do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 926, 15 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7790. Acesso em: 13 dez. 2020.
Geraldo Neto
Ótimo texto, bem esclarecedor. Parabéns ao autor. Espero que continue fazendo seu trabalho visando o bem público e respeitando os direitos fundamentais do cidadão, e poste mais artigos que abordem a legislação em geral para manter-nos informados e atualizados.