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domingo, 2 de dezembro de 2018

Qual o perfil dos comunicadores assassinados no Brasil


FOTO: FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL
 ONG DE DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO ANALISOU 22 CASOS DE COMUNICADORES MORTOS NO BRASIL ENTRE 2012 E 2016

  • Estêvão Bertoni
  •  
12 Nov 2018 
(atualizado 14/Nov 10h38)

ONG de defesa do direito à liberdade de expressão encontra padrão em mortes de 22 profissionais, ocorridas em 11 estados, num período de cinco anos 


Entre 2012 e 2016, 22 comunicadores foram assassinados no Brasil. Ao analisar esses casos, ocorridos em 11 estados, a ONG Artigo 19, criada para defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação, identificou alguns padrões nas mortes.
Os resultados foram publicados no relatório “O ciclo do silêncio: impunidade em homicídios de comunicadores no Brasil”, divulgado em 8 de novembro de 2018. A organização, criada em 1987, em Londres, está presente no Brasil desde 2007. 

O que há de comum nas mortes

Ela descobriu, por exemplo, que as vítimas trabalhavam em pequenos veículos de comunicação, de caráter não comercial e que, muitas vezes, serviam como complemento de renda para esses profissionais.
Observou ainda que cidades pequenas, com menos de 100 mil habitantes, são as que mais riscos oferecem aos comunicadores.
“O fato não é novo, mas foi notada uma drástica interiorização dos crimes contra a liberdade de expressão nos últimos quatro anos. A população média das cidades em que ocorreram os crimes diminuiu de 315 mil habitantes em 2012 para 50 mil habitantes em 2016. (...) É nas cidades menores que suas vidas estão mais ameaçadas. Isso ocorre pela maior proximidade entre quem realiza a denúncia ou crítica e as pessoas denunciadas”, diz trecho do relatório.

Perfil da vítimas

O avanço da internet para o interior do país nos últimos anos contribuiu para o aumento do número de blogueiros independentes e para o surgimento de pequenos sites noticiosos. O fato ajuda a explicar por que os blogueiros foram os que mais morreram no período. Foram oito, sendo que cinco assassinatos ocorreram nos dois últimos anos da série histórica analisada.
No total, outros seis eram radialistas, cinco jornalistas de veículos tradicionais, dois proprietários de veículos e um fotógrafo. Todos eram homens. 
Outra característica que eles têm em comum é o tamanho do município em que viviam: 70% dos assassinatos ocorrem em cidades com menos de 100 mil habitantes.
De 2012 a 2014, os crimes estavam concentrados nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. Nos dois últimos anos analisados, porém, eles se concentraram no Nordeste, que acabou liderando a lista da região com mais comunicadores assassinados: nove. Outros sete aconteceram no Sudeste, cinco no Centro-Oeste e um no Norte.
Apesar disso, Minas é o estado com mais vítimas (quatro), seguido por Maranhão e Mato Grosso do Sul (três cada um).
A Artigo 19 também identificou que, em 77% dos casos, os comunicadores tinham sofrido ameaças antes dos crimes. “Muitas vezes é difícil estabelecer a relação direta entre as ameaças e o assassinato, já que as ameaças geralmente são anônimas e em momentos aleatórios (...). Além disso, há pouca investigação por parte das autoridades”, afirma o relatório.

Perfil dos mandantes

Em mais da metade dos casos (54%), os mandantes dos homicídios eram agentes do Estado, como políticos (foram identificados em oito casos), policiais (três casos) e agentes públicos (dois). Os assassinatos também foram cometidos por integrantes do crime organizado (cinco casos) e empresários (dois). Em outros três episódios, o autor não foi conhecido.
Há também um padrão na forma de matar, segundo o relatório. Quem executa o crime é quase sempre um pistoleiro profissional que planeja emboscadas e utiliza armas de fogo. “O meio de locomoção majoritariamente utilizado é a motocicleta, pois facilita a fuga, exigindo, ademais, a participação de ao menos duas pessoas”, diz o documento.
O objetivo, porém, é sempre o mesmo: “eliminar fisicamente pessoas consideradas inconvenientes pela ação investigativa que realizam ou pelas críticas que desestabilizam relações locais de poder”, de acordo com a ONG.

Os processos

Segundo um relatório do Instituto Sou da Paz publicado em 2017, dados do Conselho Nacional do Ministério Público mostram que, dos 43.123 inquéritos policiais concluídos entre março de 2010 a abril de 2012, 78% foram arquivados por “impossibilidade de se chegar aos autores” dos crimes.
No estudo da ONG Artigo 19, a impunidade também é observada. Em 59% dos casos, as investigações foram consideradas “ineficientes ou inconclusivas”. Dos 22 casos, apenas quatro terminaram em condenação do responsável pelo assassinato.
Cinco deles deram início a uma ação penal, quatro resultaram em inquérito ainda em andamento, oito foram considerados inconclusivos e um foi arquivado.

3 casos analisados

Santo Antônio do Descoberto (GO)

Secretário de comunicação do PCdoB, João Miranda do Carmo tinha um site de notícias, o SAD Sem Censuras. Em 2016, dias antes de ser morto com 13 tiros ao atender a um homem que o chamava à porta de casa, o jornalista havia divulgado um vídeo que mostrava o prefeito repassando dinheiro a uma secretária em frente ao fórum da cidade. Também havia noticiado a prisão do irmão do então chefe de segurança patrimonial do prefeito, o que fez o delegado investigar a possibilidade de vingança, o que não foi comprovado. Quatro pessoas foram indiciadas, sendo que três delas já estavam presas por outros crimes. O caso ainda está em andamento.

Buriticupu (MA) 

Orislândio Timóteo Araújo, que usava o nome artísticos de Roberto Lano, era locutor e blogueiro. Três dias antes de ser morto, em 2015, publicou um texto denunciando um esquema de desvio de recursos da saúde no município, sob o título de “Vampiragem da Saúde”. Dirigia sua moto, com a mulher na garupa, quando um homem em outra motocicleta se aproximou e atirou em sua cabeça. A polícia não conseguiu descobrir o autor do crime, e o caso foi arquivado.

Lagoa de Itaenga (PE)

Apresentador do programa “Microfone Aberto”, na rádio comunitária Itaenga FM, Israel Gonçalves Dias costumava cobrar das autoridades públicas melhorias na cidade. Ele havia denunciado à polícia ameaças que havia sofrido 15 dias antes de morrer, em 2015. Chegou a torná-las públicas em seu programa. Logo após deixar seus dois filhos na escola, foi morto por um pistoleiro que desceu de uma motocicleta. O caso causou comoção na cidade, e Dias foi velado na Câmara Municipal. Três homens foram condenados e presos.
Ao Nexo, o assessor de proteção da Artigo 19 e coordenador do relatório, Thiago Firbida, respondeu a cinco questões sobre os assassinatos.

O que explica a interiorização dos crimes contra comunicadores?

THIAGO FIRBIDA  A interiorização é um processo que se intensifica em tipos de graves violações contra comunicadores, como homicídios, tentativas de assassinato e ameaças de morte. Como estamos olhando para uma série histórica curta, de cinco anos, os dados indicam esse processo, mas não podemos afirmar que ele não acontecia antes e que esse aumento mais recente seja somente o retorno a um padrão já estabelecido que não foi capturado entre 2012 e 2014.
O que podemos dizer é que o alto número de violações contra comunicadores em cidades pequenas está relacionado ao fato de que nesse contexto existem poucos comunicadores fazendo cobertura de problemas específicos da região e da política local. Isso faz com que haja uma exposição e proximidade muito maior dos comunicadores em relação às pessoas poderosas que eles questionam ou denunciam.
Além disso, nesse contexto existe uma estrutura mais precária do sistema de Justiça, além de uma proximidade grande de alguns atores do sistema de Justiça com os suspeitos (em geral, políticos ou policiais), características que impactam nas investigações e nos processos desses crimes e perpetuam o contexto de impunidade que, por sua vez, aumenta o clima de hostilidade contra esses comunicadores e ajuda na reprodução das violações.

Como exercer o jornalismo em cidades menores sem correr riscos?

THIAGO FIRBIDA As medidas que podem ser adotadas diretamente pelos comunicadores para se protegerem passam pela constituição de uma rede de proteção local, em que vários comunicadores troquem experiências sobre as situações de violência e desenvolvam juntos protocolos coletivos de segurança, fazendo avaliações de risco sobre matérias com temas mais sensíveis e adotando estratégias de diluição do risco nesses casos, como publicações coletivas ou não assinadas. Independentemente do que os próprios comunicadores possam fazer, no entanto, só é possível enfrentar o problema com uma atuação efetiva do Estado no combate a essas violações e à impunidade.

Por que houve aumento de assassinatos, especificamente, de blogueiros?

THIAGO FIRBIDA Existe uma expansão do acesso à internet e do uso de blogs ou mídias sociais como plataformas para o exercício regular da comunicação no interior do país. Além disso, em boa parte das cidades do interior impera o chamado "Deserto de Notícias", em que não existe nenhum jornal estruturado que faça cobertura local, de modo que coberturas mais sensíveis sobre questões locais são feitas predominantemente por blogueiros ou radialistas comunitários, que além de ficarem mais expostos por isso, não possuem uma estrutura institucional de veículos de comunicação que possa dar apoio a eles, aumentando sua exposição ao risco.

De que forma o discurso de uma autoridade pública contra jornais ou jornalistas pode interferir no trabalho dos comunicadores? Isso pode ter reflexo na segurança desses profissionais em cidades pequenas?

THIAGO FIRBIDA Quando analisamos os padrões internacionais sobre proteção de comunicadores, a primeira recomendação para prevenir violações é que autoridades públicas se abstenham de fazer comentários que exponham ainda mais os comunicadores ao risco que já enfrentam. Além disso, recomenda-se que as autoridades devam sempre se pronunciar publicamente quando ocorre uma violação mais grave contra um comunicador, no sentido de condenar e deslegitimar um discurso social que ataque o livre exercício da comunicação. Essas recomendações são importantes porque quando autoridades inflamam o discurso público contra comunicadores, podem legitimar e influenciar a intensificação do ciclo de violações que já ocorre, agravando esse cenário e minando o pleno exercício da liberdade de expressão no país.

Existe um padrão de resposta do Estado a esses casos analisados? Quando o crime é contra comunicadores, o natural é que ele ganhe repercussão. O que muda na ação das polícias e da Justiça?

THIAGO FIRBIDA O padrão de resposta do Estado a esses crimes é o silêncio. Quando falamos em impunidade em assassinatos de comunicadores, temos que diferenciar da situação de impunidade de assassinatos no geral, porque a lógica desses crimes é diferente e ela interfere diretamente na resposta do Estado.
Isso acontece porque a especificidade de crimes contra comunicadores é que, em sua maioria, os suspeitos autores são pessoas poderosas localmente, sejam políticos, policiais ou empresários, tendo condições de interferir e atrapalhar no processo investigativo, o que não ocorre no padrão geral de homicídios no país. Mesmo havendo alguma cobertura da mídia, nem sempre essa cobertura é tão ampla e intensa, mas percebemos que nos casos em que ela acontece, isso ajuda a pressionar as autoridades a dar uma resposta satisfatória. Isso, no entanto, não é o padrão nesses casos.
Além disso, outra característica desses crimes é que são sempre altamente planejados antes de serem efetivados, envolvendo sempre, além dos autores intelectuais, intermediários e pistoleiros, o que dificulta o processo de investigação e indiciamento de todos os envolvidos.

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