A Súmula 90 do STJ e sua aplicação aos julgamentos de crimes cometidos por policiais militares no exercício da função,,,
inexistência de dupla punição (bis in idem)
Não há dupla punição pelo mesmo crime quando incidir a Súmula 90 do STJ, pois, num mesmo contexto, o policial poderá cometer crime militar e crime comum sujeitos a jurisdições diferentes.
1. INTRODUÇÃO
Os militares sujeitam-se a deveres inerentes à função que exercem a qual exige postura diferenciada no cumprimento da sua missão, sendo então submetidos a regras de conduta tanto no âmbito administrativo-disciplinar quanto na seara penal.O militar em regra submete-se aos rígidos preceitos da hierarquia e disciplina definidos nos códigos de conduta ou regulamentos disciplinares, bem como às sanções previstas no Código Penal Militar (CPM) e no Código Penal Brasileiro (CPB).
Sabe-se que o militar, caso venha a cometer ilícitos no exercício da função, poderá sofrer punição nas três esferas de responsabilidade previstas no ordenamento jurídico: administrativa, penal e civil, não tendo fundamento a afirmativa de que o miliciano estaria sofrendo várias sanções por uma mesma conduta (bis in idem)[1].
No decorrer da atividade de policiamento ostensivo poderá o policial cometer crimes – sejam estes militares ou comuns – num mesmo contexto fático incidindo as duas normas (o CPM e o CPB), sendo então processado na Justiça Militar e na Justiça Comum a teor da Súmula 90 do STJ: “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele”.
Neste breve ensaio demonstraremos que não ocorrerá bis in idem a submissão do policial militar[2] a processos distintos nas duas jurisdições (militar e comum), bem como a sua condenação decorrente desses processos, os quais fundados em fatos ilícitos ocorridos no exercício das funções militares.
2.O princípio do non bis in idem[3]
O princípio da vedação à dupla punição não vem consagrado explicitamente na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), deduzindo-se a sua presença com base no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CFRB) o qual é um dos fundamentos da república brasileira.Ademais, o Brasil adotou no art. 5º, § 2º da CFRB[4] o princípio da incorporação dos tratados internacionais sobre direitos e garantias, sem a exclusão daqueles já previstos no texto da constituição, ou seja, esses tratados serão considerados no ordenamento jurídico como se na constituição estivessem, ampliando-se o rol de garantias previstas.
Com base nessa assertiva, tem-se no Brasil incorporado o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992) que na sua cláusula 7, art. 14, assim expressa: “ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absolvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país” (grifei).
O Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos) incorporado por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, em seu artigo 8º, cláusula 4 prevê o seguinte: “O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”. (grifei).
O que se percebe claramente é a introdução dessas normas de direitos humanos no ordenamento brasileiro como normas supralegais[5] no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) por meio do Recurso Extraordinário nº 466.343-1 em que o Ministro Gilmar Mendes votou no sentido de atribuir a supralegalidade a esses tratados sobre direitos humanos, aprovados antes da Emenda Constitucional nº 45/2004.
Assim, a dupla punição pelo mesmo fato possui duas facetas: material e formal. Material no sentido de proibição de mais de uma punição pelo mesmo fato (crime); e formal quanto à vedação de instauração de investigação ou processo pelo mesmo fato que deu origem a sua punição, nas palavras de MAIA (2005) [6].
No direito norte americano é previsto na 5ª emenda da Constituição dos Estados Unidos[7] com a seguinte redação já traduzida: “[...] ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde [...]”.
Conclui-se que ocorrerá dupla punição quando envolver mais de um processo ou punição pela prática de um mesmo crime. Como exemplo seria o militar submetido a processo por lesão corporal (art. 209 do CPM) a qual ocorreu em razão do resultado morte contra civil (homicídio previsto no art. 121 do CPB). Não poderia o militar, nessa situação, sofrer dois processos ou condenação (pela lesão e pelo homicídio), pois as lesões foram produzidas no contexto do homicídio devendo, então, responder somente pelo resultado mais grave (morte).
Da mesma forma ocorrerá se o policial militar falsificar um documento público (art. 297 do CPB[8]) – por exemplo, uma certidão de tempo de serviço prestado pelo INSS - e usá-lo na perante a administração militar para receber, indevidamente, benefício em seu salário (art. 251, § 3º do CPM[9]).
Responderá somente pelo estelionato, não podendo sofrer o processo pelo crime de falso a teor da Súmula 17 do STJ[10], desde que a falsificação não tenha mais potencialidade lesiva, ou seja, de continuar sendo usada para a prática de novos delitos.
Portanto, nota-se que o princípio da vedação à dupla punição pelo mesmo fato vem explicitamente previsto em nosso ordenamento jurídico, com base nas normas de direito internacional das quais o Brasil é signatário tendo as incorporado ao direito pátrio.
3. A RESPONSABILIDADE DO POLICIAL MILITAR NAS TRÊS ESFERAS JURÍDICAS: ADMINISTRATIVA, PENAL, E CÍVEL
O policial militar, como qualquer outro funcionário do Estado, possui tríplice responsabilidade no exercício das suas funções não se configurando bis in idem a sua punição advinda do ilícito cometido que poderá se refletir nas esferas civil, penal e administrativa.Portanto, caso venha a cometer um crime militar ou comum, no exercício do cargo, o policial estará sujeito às sanções previstas no CP ou no CPM além das cominações disciplinares trazidas pelos regulamentos das corporações militares.
Ademais, sofrerá a responsabilização civil a título de reparação pelo dano causado seja a uma pessoa ou ao próprio Estado nos termos do art. 935 do Código Civil Brasileiro (CCB) nos seguintes termos:
Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.O CCB em seu art. 186 traz a regra geral sobre a responsabilidade civil em decorrência do dano causado: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
O Estatuto de Pessoal da Polícia Militar de Minas (EPPM) [11] traz em seu art. 239 a seguinte regra: “No caso de incorrer a praça em ato delituoso, ser-lhe-á aplicada, na esfera administrativa, a medida disciplinar cabível, quando ocorrer, na prática do ato, transgressão disciplinar, ou dele decorrer grave prejuízo moral para a Corporação”. (grifou-se).
O diploma estatutário mineiro consagra a responsabilidade penal e administrativa do policial militar na situação em que este cometer um delito e, simultaneamente, uma transgressão disciplinar. Nesse caso não há falar-se em dupla punição.
A doutrina também é pacífica nesse sentido. Di Pietro (2008, p. 577-581) com precisão ensina que:
“O servidor público sujeita-se à responsabilidade civil, penal e administrativa decorrente do exercício do cargo, emprego ou função. Por outras palavras, ele pode praticar atos ilícitos no âmbito civil, penal e administrativo”. (grifei).Por essas razões, o policial militar responderá de forma tríplice quando incorrer em fato delituoso no exercício do cargo público.
“[...] instauram-se o processo administrativo disciplinar e o processo criminal prevalecendo a regra da independência entre as duas instâncias, ressalvadas algumas exceções, em que a decisão proferida no juízo penal deve prevalecer, fazendo coisa julgada na área cível e na administrativa”
4. CRIMES MILITARES E COMUNS COMETIDOS POR POLICIAIS MILITARES: APLICABILIDADE DA SÚMULA 90 DO STJ
O verbete sumular 90 foi editado pelo STJ em 21/10/1993 com o seguinte teor: “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele”. (grifo nosso).Em miúdos: quando o crime comum for cometido simultaneamente com o crime militar caberá à Justiça Comum processar o policial militar pelo delito previsto na legislação comum (CPB) ou legislação especial (ex: lei de abuso de autoridade); e à Justiça Militar pelo delito previsto na legislação militar (CPM).
Relação de simultaneidade quer dizer “ao mesmo tempo”. Assim, quando o policial militar venha a desencadear uma conduta típica que redunde, respectivamente, em crime militar e comum, deverá ser julgado em ambas as instâncias do poder judiciário, conforme exposto pela súmula 90 do STJ.
O raciocínio é bem simples e depreende-se de uma leitura atenta ao disposto na Constituição brasileira que define a competência da Justiça Militar Estadual para julgar os crimes militares cometidos pelos integrantes das Instituições Estaduais.
Assim preceitua o art. 125, § 4º da CRFB:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.Dessa forma, sem maiores digressões, nota-se que se a Justiça Militar é competente para julgar e processar os militares nos crimes militares tão somente, concluindo-se, portanto, pela sua incompetência para julgar os demais delitos, sejam eles comuns ou previstos em leis especiais como é o caso do tráfico de drogas, abuso de autoridade, Estatuto do Desarmamento etc.
[...]
§ 4°. Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (grifo nosso).
Assim, por exclusão, o crime que não for da competência da Justiça Militar será da alçada da Justiça Comum estadual ou federal, que será o foro competente para conhecer do processo e julgamento do policial militar que vier a praticar fato definido como crime comum.
Devido à especialização da Justiça Militar, os processos envolvendo os policiais militares, quando no cometimento de crime comum simultaneamente ao crime militar, deverão ser separados não podendo a justiça especializada atrair a competência para julgar os delitos comuns, ocorrendo a separação dos processos por força do art. 102, alínea ‘a’ do Código de Processo Penal Militar (CPPM), que assim dispõe:
Art. 102 - A conexão e a continência[12]importarão unidade de processo e julgamento, salvo:A cláusula ‘salvo’ traduz com precisão a obrigatoriedade de separação dos processos. O mesmo dispositivo vem previsto no art. 79, I do Código de Processo Penal (CPP) com idêntica redação.
a) no concurso entre a jurisdição comum e a militar; (grifo nosso).
Pelo exposto, não há falar em dupla punição pelo mesmo fato quando o policial militar simultaneamente cometer crime militar e crime comum. Como exemplo tem-se a conduta do policial militar que, num mesmo episódio, vem efetuar a prisão de alguém ilegalmente (abuso de autoridade – lei especial) e desfere-lhe golpes de cassetete lesionando a vítima (lesão corporal – art. 209 do CPM).
Nesse caso teremos dois crimes: um relativo ao abuso de autoridade (art. 4º, a, da Lei nº 4.898/65 - ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder); e o outro relativo à lesão corporal (art. 209 do CPM - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem).
A Súmula 172 do STJ define a competência da Justiça Comum nos seguintes termos: “Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço”.
Da mesma forma se cometer simultaneamente injúria (Art. 216 do CPM - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro) e abuso de autoridade a regra para o processo e julgamento será a mesma.
Tem-se ainda a possibilidade de o policial militar reunir-se em quadrilha ou bando (art. 288 do CP) com o fim de cometer vários crimes militares durante o serviço (roubo, extorsão, corrupção passiva – todos do CPM).
Sabe-se que o delito de quadrilha ou bando não tem redação similar no Código Penal Militar sendo, portanto, a competência para o julgamento da Justiça Comum enquanto os outros delitos citados (roubo, extorsão, corrupção passiva previstos no CPM) ficariam sob a responsabilidade da Justiça Militar Estadual.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) assim firmou o entendimento:
EMENTA: HABEAS-CORPUS. POLICIAL MILITAR. CONDUTA RELACIONADA COM ATUAÇÃO FUNCIONAL. CRIMES TAMBÉM DE NATUREZA PENAL MILITAR. COMPETÊNCIA RECONHECIDA. Policial militar. Existência de delitos tipificados ao mesmo tempo no CP e no CPM. Condutas que guardam relação com as funções regulares do servidor. Crime militar impróprio. Competência da Justiça Militar para o julgamento (CF, artigo 124). Crime de formação de quadrilha (CP, artigo 288). Delito que não encontra tipificação correspondente no Código Penal Militar. Competência, nessa parte, da Justiça Comum. Habeas-corpus deferido em parte.No Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) também encontra-se jurisprudência com o seguinte precedente:
(STF, Habeas Corpus nº 82142 / MS – Relator Ministro Maurício Corrêa. Tribunal Pleno. Julgamento: 12/12/2002). (grifo nosso)
Poderá ainda ocorrer o crime de ameaça (art. 223 do CPM - Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de lhe causar mal injusto e grave) e o crime de disparo de arma de fogo (art. 15 da Lei nº 10.826/03 - Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado [...]), tendo o mesmo raciocínio anterior.HABEAS CORPUS - QUADRILHA OU BANDO - CRIME COMUM - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR - SÚMULA 90⁄STJ - COMPETÊNCIA DO JUIZ DA 6ª VARA CRIMINAL DE VITÓRIA - RÉU POSTO EM LIBERDADE DURANTE A TRAMITAÇÃO DO MANDAMUS - ORDEM PREJUDICADA.1. Crime de formação de quadrilha ou bando (art. 288, do CP), não encontra tipificação correspondente no Código Penal Militar, portanto, mesmo sendo praticado por policial militar, é um crime comum que possui a competência da Justiça Comum para ser julgado. Aplicação da Súmula 90 do STJ.2. A consumação do delito de quadrilha se prolonga no tempo, tendo em vista ser um crime permanente, e posto isto, a competência fixa-se pela prevenção, se a atuação se estender por várias jurisdições, o que ocorre no caso em apreço, com fulcro no art. 71 do Código de Processo Penal. Tendo o ilustre Juiz da 6ª Vara Criminal de Vitória atuado primeiro no feito, considera-se este competente para o julgamento da causa.3. Constatando-se que os pacientes obtiveram o benefício da liberdade provisória, em função de decisão judicial proferida pelo ilustre Juiz de piso, julga-se prejudicada a ordem ante a perda superveniente de seu objeto.(TJES, Habeas Corpus nº 100.08.000925-9. Relator Desembargador Sérgio Bizotto Pessoa de Mendonça. 1ª Câmara Criminal. Julgamento: 16/07/2008). (grifei)
Vários exemplos poderiam ser citados, porém, ficaremos com esses. O que importa é deixar de modo claro não haver dupla punição ao militar quando submetido a dois processos (na Justiça Comum e Militar) provenientes de condutas que se amoldem a tipos penais previstos nos diplomas repressivos comum e militar.
Existe abalizada jurisprudência nesse entendimento como se vê adiante no acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS):
EMENTA HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES MILITARES. ALEGAÇÃO DE BIS IN IDEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 90 e 172/STJ.O acórdão acima fez referência a duas súmulas que tratam do tema ora abordado, afastando a incidência do bis in idem justamente por tratar-se de entendimento já pacificado em relação aos crimes comuns simultâneos aos crimes militares.
1. Conforme evidencia-se da leitura do acórdão atacado, a questão pertinente à ocorrência de bis in idem não foi apreciada pela Corte de origem. Logo, não pode esta Corte de Justiça, sob pena de supressão de instância, enfrentar o tema.
2. A decisão combatida encontra-se em harmonia com os enunciados das Súmulas 90 e 172 deste Superior Tribunal.
3. Ordem Denegada. (STJ, HC nº 122.258/PB, Relator Desembargador convocado do TJ/RS Adilson Vieira Macabu – 5ª Turma, 07/02/2012). (grifo do autor).
Destarte, não há constrangimento ou ilegalidade submeter o policial militar a dois processos distintos justamente porque as condutas perfazem tipos penais diferentes, apesar de acontecerem num mesmo contexto.
Pode parecer, à primeira vista, que o policial teria cometido apenas um crime, mas, como se percebe, as condutas típicas são previstas com suas elementares de modo diferenciado deixando evidenciada a incidência do crime militar e do crime comum no mesmo contexto fático.
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