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Milhões roubados, fraudes, licitações arranjadas. Em alguns casos, concorrências no valor de R$ 600 milhões. E um traço em comum unindo todos esses episódios: a impunidade dos militares de alta patente envolvidos.
Durante uma década, duas fundações foram usadas como fachada para a prática de ilicitudes. Verdadeiras instituições de apoio para golpes que desviaram milhões em recursos públicos.
Comandadas por generais, operadas por quadros militares e ostentando em seus estatutos o status de “auxiliares de um departamento do exército brasileiro” ou “fundações de apoio” dessa arma, as fundações Ricardo Franco (de apoio ao Instituto Militar de Engenharia-IME) e Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida (ligada ao departamento de educação e cultura do exército-DECEx), ambas de natureza privada, foram as pontas de um esquema de corrupção em que verbas públicas milionárias foram desviadas utilizando um mesmo modus operandi: licitações viciadas e a subcontratação das mesmas empresas de fachada sempre. Todas ligadas aos militares. As duas fundações e o exército formaram um verdadeiro “Triângulo das Bermudas” verde oliva: o dinheiro que passou por ali, em boa parte sumiu, como mostram diversos processos analisados pela reportagem em tribunais estaduais e federais, Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério Público Federal, Justiça Militar da União, consultas ao Portal da Transparência e Diário Oficial da União.
EXÉRCITO DEU ATESTADOS DE IDONEIDADE PARA FUNDAÇÕES QUE DESVIAVAM VERBA PÚBLICA
Nas concorrências em que estiveram envolvidas, as duas fundações apresentavam declarações atestando suas “capacidades de execução e idoneidade” emitidas pelo exército brasileiro. E esses verdadeiros salvo-condutos das forças armadas, conforme os documentos públicos obtidos pela reportagem, diziam textualmente sobre a “inquestionável reputação ético-profissional” de ambas:
Numa das denúncias do Ministério Público Federal (MPF) envolvendo as entidades, o órgão afirmou sobre tais declarações: “a maioria dos atestados de capacidade técnica foi subscrito por membros do Exército, extraindo-se do estatuto da fundação ré que ela se afigura como auxiliar a um Departamento do Exército Brasileiro, o que vem a corroborar a fragilidade e inaptidão de tais documentos em comprovar sua idoneidade e inquestionável reputação ética-profissional”.
Além do envolvimento em corrupção, a má gestão dos militares na Fundação Trompowsky fez com que ela esteja hoje em vias de extinção e com dívidas acumuladas no valor de R$ 51.350.000,00 (cinquenta e um milhões e trezentos e cinquenta mil reais), além de ter tido os bens (computadores e móveis) penhorados para pagamentos de dívidas trabalhistas.
O BUTIM DE DINHEIRO PÚBLICO
Não foi pequeno o butim de dinheiro público. Apenas de governos federais, em duas décadas, entre 1999 e 2017, as duas fundações celebraram, somadas, quase R$ 300 milhões em contratos. Mais exatamente, a Fundação Ricardo Franco firmou acordos no total de R$ 245.866.325,27 (duzentos e quarenta e cinco milhões, oitocentos e sessenta e seis mil, trezentos e vinte cinco reais e vinte e sete centavos) e a Fundação Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida acertou contratos no total de R$ 35.722.328,73 (trinta e cinco milhões, setecentos e vinte e dois milhões, trezentos e vinte e oito mil e setenta e três reais).
CONTRATOS FIRMADOS COM O GOVERNO FEDERAL:
FUNDAÇÃO RICARDO FRANCO: R$ 245.866.325,27
FUNDAÇÃO MARECHAL ROBERTO TROMPOWSKY LEITÃO DE ALMEIDA: R$ 35.722.328,73
(Fonte: Portal da Transparência)
A lista dos contratos e convênios obtidos pelas fundações evidencia o “vale-tudo” dos envolvidos, exibindo um leque amplo de objetos nos serviços prestados por ambas. E totalmente díspares, sem conexão entre eles. De cursos para escolas de samba a construção de radares. Como a “execução de ações de qualificação social e profissional para trabalhadores da Indústria do Carnaval-Segmento Escola de Samba”, até o “aperfeiçoamento técnico no Radar Saber M60 para operação em estações fixas ou móveis em ambiente de selva com integração ao sistema de proteção da Amazônia (SIPAM)”, passando por outros tantos convênios com ministério da defesa, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e Instituto Militar de Engenharia (IME), as duas fundações abocanharam contratos com os mais variados escopos.
Além de milionários contratos na realização dos V Jogos Mundiais Militares, em 2011, no Rio, onde alguns dos mais estrelados generais do governo Bolsonaro estiveram na organização, como Augusto Heleno, atual ministro do gabinete de segurança institucional (GSI).
NENHUM MILITAR DE ALTA PATENTE FOI PUNIDO PELOS DESVIOS REALIZADOS ATRAVÉS DAS FUNDAÇÕES
Muitos desses contratos tiveram diversas irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Entre esses, alguns foram para a justiça e para a justiça militar. Com uma marca em comum: embora as fundações tivessem o aval de “inquestionável reputação ético-profissional”, onde o exército garantia credencial de idoneidade, e ambas fossem comandadas por generais, nenhum militar dessa patente foi punido nas apurações dos desvios nessas entidades. Alguns fardados de patentes mais baixas chegaram a ser condenados mas seus superiores seguiram intocados.
A impunidade dos generais que ocupavam cargos nas duas fundações onde ocorreram desvios ao longo de uma década reflete um dado geral. Reportagem de Vinicius Sassine, na Folha de São Paulo (4/7/2021), sobre os últimos dez anos de atuação do Superior Tribunal Militar (STM), mostra que nenhum militar da mais alta patente foi punido por envolvimento em corrupção. De acordo com o levantamento, apenas um oficial general foi punido pelo órgão ao longo dessa década e por crime de lesão corporal culposa. Com dois meses de detenção e a possibilidade de suspensão da execução da pena, que permitiu ao militar recorrer em liberdade.
O ESCÂNDALO DE R$ 600 MILHÕES EM LICITAÇÃO FRAUDADA
Os milhões acima citados dos contratos das duas fundações referem-se apenas a contratos com o governo federal. Valendo-se do aval do exército sempre, as fundações arrebataram também contratos diversos em órgãos estaduais, municipais e ainda com instituições privadas. E vários casos de fraudes também foram registrados. Contratos milionários.
Como na licitação de R$ 600 milhões vencida pela Fundação Trompowsky em 2010 junto a Secretaria de Meio Ambiente do Pará (SEMA-PA), tendo como objeto a “seleção de pessoa jurídica especializada na disponibilização e operacionalização do serviço de aferição de gases poluentes e ruídos de toda frota veicular do Estado do Pará”. Um ano depois, a própria SEMA-PA anulou o contrato. Eram muitas irregularidades e fraudes na licitação.
Uma ação pública na justiça do Rio de Janeiro, a partir de denúncia do Ministério Público Federal, relata que, dois meses antes da licitação da SEMA-PA, os generais Flavio César Terra de Faria (então presidente da Fundação Trompowsky entre 2010/2014 e na reserva desde 2003, com vencimentos integrais), Antônio Carlos Guelfi (diretor da fundação na ocasião e na reserva desde 2003, com vencimentos integrais) e Sérgio Tavares Carneiro (vice-presidente que em 2014 viria a ser presidente da fundação e na reserva desde 2009, com vencimentos integrais), manobraram o estatuto da fundação para modificar a finalidade original da entidade, que era, conforme documentação, “apoiar o Departamento de Educação e Cultura do Exército (Decex)”.
Para habilitar a fundação e concorrer na licitação da SEMA-PA, cujo objeto era contratar empresa especializada na aferição de gases poluentes e ruídos da frota veicular do Pará (o tal contrato milionário de R$ 600 milhões), os generais e executivos da fundação utilizaram, de acordo com a ação na justiça, artimanha que ampliava quase ao infinito as possibilidades da entidade em atuar nos contratos com o poder público: acrescentaram ao estatuto a função de “atuar no meio ambiente”, tão genérico e amplo como fértil campo para habilitar a certames milionários na disputa por verba pública.
Nem bem a alteração do estatuto da fundação tinha sido completada, e exatos dois meses depois de concluída, em 8 de outubro de 2010, o contrato com a SEMA-PA foi ganho pela fundação comandada por generais e com sede dentro do exército, no Palácio Duque de Caxias, ao lado da Central do Brasil, no Rio, antigo ministério do exército e atualmente ocupado pelo Comando Militar do Leste, pela 1ª Região Militar, pelo Departamento de Ensino e Pesquisa e suas Diretorias e pelo Arquivo Histórico do Exército.
No entanto, publicação do diário oficial daquele estado em 6 de setembro de 2011, revelou que SEMA-PA decidiu anular o contrato, diante de fartas evidências de fraudes e ilicitudes.
Uma guerra judicial seguiu na justiça. Nesse meio tempo, o MPF desaprovou as contas da fundação relativas aos anos de 2010 e 2011. Após a denúncia do MPF, o comando do exército indicou o próprio DECEX, que abrigava a fundação e não viu as fraudes durante anos, para realizar auditoria na entidade.
Em 2014, depois de constatados na justiça os indícios já apontados de desvio de finalidade por parte de seus gestores, desvio de recursos, prática de atos ilícitos, subcontratações faturadas, dilapidação de patrimônio, movimentação de recursos sem comprovação documental e ausência de prestação de contas, a fundação foi descredenciada como “fundação de apoio ao DECEX”, posição na qual permaneceu anos sem que tais desvios fossem apontados, até a luz jogada pelo MPF. Ainda assim, o general Sérgio Tavares Carneiro seguiu na presidência da fundação.
Descredenciada, tornada inapta, com dívidas de R$ 51.350.000,00 (cinquenta e um milhões e trezentos e cinquenta mil) e com impedimentos judiciais, os generais diretores da fundação lançaram mão em 2015 de uma cartada ousada: na impossibilidade da fundação ficar com os contratos da SEMA-PA, entraram com um recurso na 1ª vara da fazenda pública de Belém com objetivo de conseguir o repasse do milionário contrato para uma empresa.
O nome da empresa: “Ambiente Natural Inspeção Veicular SPE ltda”. Entre os sócios, estavam o general Antônio Carlos Guelfi, acima já apresentado como diretor da Fundação Roberto Trompowsky na época do contrato com a SEMA-PA, e um outro ex-diretor da fundação.
O contrato social da empresa, aberta em 7 de dezembro de 2015, mostra que a “Ambiente Natural Inspeção Veicular” não tinha qualquer atividade comercial, sendo criada, de acordo com a denúncia do MPF, apenas “para tentar salvar o contrato de R$ 600 milhões com a SEMA-PA”.
No ano passado, o juiz Alessandro Oliveira Félix, da 51ª Vara Cívil do Rio de Janeiro, concluiu a existência de “desvio de finalidade da fundação por seus gestores, desvio de recursos, prática de atos ilícitos, subcontratações superfaturadas, dilapidação de patrimônio, movimentação de recursos sem prova documental e ausência de prestação de contas”.
FRAUDE EM CONCURSO DE RIO DAS OSTRAS TERMINOU COM SERVIDORES MUNICIPAIS PUNIDOS E GENERAIS INOCENTADOS
Na mesma época, um outro escândalo estava em curso. Em 2011, a prefeitura de Rio das Ostras abriu concurso para contratação de servidores. Quatro empresas apresentaram propostas na licitação para a organização do certame. No entanto, cinco meses depois, nenhuma das quatro foi vencedora. Num caso inusitado, um quinto elemento, não participante da disputa licitatória, ganhou o direito de organizar o concurso da cidade da região dos lagos do estado do Rio de Janeiro. A secretaria de planejamento justificou afirmando que tal vencedora, a Fundação Trompowsky, “apresentava indubitavelmente a melhor proposta nos aspectos técnicos e financeiros”. Mais estranhamento ainda causou a revelação da própria secretaria de que a “comissão organizadora visitou as instalações da fundação e constatou haver excelente estrutura para realização do certame”. Ou seja: quatro empresas se inscreveram mas ganhou uma quinta não inscrita, com dispensa de licitação e direito a uma visita, privilégio não recebido por aquelas que seguiram o regulamento.
Pela organização, a Fundação Trompowsky recebeu R$ 6.918.854,45 (seis milhões, novecentos e dezoito mil e oitocentos e cinquenta e quatro reais e quarenta e cinco reais) através do contrato administrativo 006/2012, o correspondente a 90% do valor arrecadado com a taxa de inscrição paga pelos candidatos. No entanto, após denúncia do MPF, o concurso foi anulado, em decisão da I Vara da Comarca de Rio das Ostras.
As irregularidades não ficaram apenas no processo de licitação. Na sentença, o magistrado afirmou que as “irregularidades e suspeitas de fraude que transpassam todas as fases do concurso público, desde a dispensa de licitação para contratação da fundação de direito privado que supostamente não se enquadraria nos conceitos legais para tanto, inúmeras irregularidades durante a realização das provas e evidências de fraude e favorecimento pessoal quando da divulgação do resultado”.
A IMPUNIDADE É VERDE E OLIVA
No entanto, assim como nos demais casos envolvendo denúncias e sentenças tendo as duas fundações e seus comandantes generais, um fato padrão se verificou: todos os demais envolvidos foram punidos. Menos os generais. No caso da ação de Rio das Ostras, as ações dos dois generais envolvidos, Flavio César Terra de Faria e Antônio Carlos Guelfi, foram tipificadas como “culposas”.
Dois servidores de Rio das Ostras foram condenados. A Fundação Trompowsky também. Mas no caso da entidade, ao contrário do município, não se viu responsabilidade dos responsáveis, apenas da entidade como pessoa jurídica. A peça do juiz justifica que a denúncia não diz que os dois teriam concorrido, induzido ou se beneficiado do processo fraudulento. A justificativa para que a culpa ficasse em algo vago, na pessoa jurídica da fundação, veio assim na sentença:
“Bom, diante do quadro, indaga-se: há alguma prova de que os réus Antônio Guelfi e Flavio Terra concorreram, ou seja, tomaram parte nos atos executórios e preparatórios que culminaram na contratação irregular da Fundação? Não. Há evidencias indicando que eles induziram a Sra. Rosimeire ou o Sr. Carlos Augusto à prática do ilícito? Não. Por fim, existem por acaso elementos indicando que um centavo da quantia liquidada pelos candidatos para inscrição no concurso lhes foi repassada, direta ou indiretamente, com eles cientes de que se tratava de recurso oriundo de manobra irregular? Não”.
Assim, a condenação ficou apenas para fundação na pessoa jurídica e para os representantes de Rio das Ostras como pessoas físicas.
UMA UNIÃO COM SOBREPREÇO, SUPERFATURAMENTO E IMPUNIDADE: A ATUAÇÃO CONJUNTA DAS DUAS FUNDAÇÕES NOS JOGOS MUNDIAIS MILITARES DE 2011
Em meio a distintos atos de ilegalidade e corrupção isolados, as duas fundações de apoio do exército juntaram forças em 2011. O resultado gerou a soma do que as duas faziam separadamente: “sobrepreço, superfaturamento, licitações fraudulentas, inadequação do orçamento, extrapolação dos aditivos contratuais, dano aos cofres públicos”.
Foi o que encontrou o TCU, no processo que teve como objeto a auditoria de “obras e serviços necessários à edificação das instalações esportivas destinadas aos 5º Jogos Mundiais Militares (JMM), evento ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, no período de 16 a 24 de julho de 2011”.
As obras em questão eram a reforma do Ginásio Brigadeiro do Ar Eduardo Gomes, na Universidade da Força Aérea –UNIFA, (Campo dos Afonsos), a modernização da Marina da Escola Naval (Aterro do Flamengo) e a construção de prédio de apoio à Escola de Educação Física do Exército (Urca), o ginásio Ling. O último, um convênio que contratou a Fundação Ricardo Franco, que por sua vez recontratou uma empreiteira, sequer foi cumprido, sendo necessário que a obra fosse terminada pelo próprio exército.
Os jogos mundiais militares (JMM) de 2011 custaram R$ 1,27 bilhão aos cofres públicos, segundo o TCU. Cinco anos antes das olimpíadas, foram um verdadeiro laboratório de testes para o que se faria depois nas organizações dos jogos de 2016, que culminaram com a prisão do dirigente da Rio-2016, Carlos Arthur Nuzman. Com muito menos controle por parte dos órgãos de investigação do que os jogos de 2016. Muito da estrutura, da máquina e fornecedores de 2016 estavam no JMM-2011. Além das duas fundações, a chamada “República de Mangaratiba” ou “Turma do Guardanapo” que cercava Sérgio Cabral, estava presente no JMM. O mesmo modus operandi que aqueles que depois chamados de“organização criminosa” usaram nos jogos de 2016. Em reportagem de 26 de fevereiro de 2019, este site mostrou que os parceiros de Cabral como Marco Antônio de Lucca e o célebre “Rei Artur”, ganharam, em dez contratos nos jogos mundiais militares, R$ 24.553.226,25 (vinte e quatro milhões, quinhentos e cinquenta e três mil, duzentos e vinte e seis reais e vinte e cinco centavos), corrigidos pelo IGP-M, atuais R$ 57.503.285,12 (cinquenta e sete milhões, quinhentos e três mil, duzentos e oitenta e cinco reais e doze centavos).
Dois protagonistas do governo Bolsonaro foram peças fundamentais dos JMM: os generais Augusto Heleno e o também general Joaquim Luna e Silva. O primeiro é o atual ministro do gabinete de segurança institucional (GSI), e o segundo ocupa o cargo de presidente da Petrobras. Os dois chegaram a ser multados pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em 2013, por irregularidades em convênios assinados entre o Exército e as fundações Ricardo Franco e a Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida, além do Instituto de Fomento e Inovação do Exército Brasileiro (Ifiex).
Após a investigação dos desvios, o TCU apontou que existia a necessidade, não observada, de licitação para celebração dos convênios e que isso não ocorreu. E ainda que “não houve comprovação de interesses recíprocos entre o exército e as fundações”. Os generais Heleno e Joaquim Luna e Silva foram multados. Após as defesas terem recorridos, houve um primeiro reexame do caso, e o Tribunal de Contas da União manteve a punição original, de multa. No entanto, depois de uma nova apelação dos advogados, o TCU anulou a aplicação de multa aos generais.
Na justiça militar, o inquérito policial militar (IPM), de 2015 sobre o caso, de responsabilidade de um militar, não identificou dolo ou provas de crime, em entendimento reafirmado pelo comando do exército e pelo Ministério Público Militar (MPM) e que sequer chegou ao plenário, sendo arquivado em decisão monocrática de um ministro do Superior Tribunal Militar.
CONTRATOS COM O IME E DNIT TAMBÉM ENTRARAM NO BUTIM DA CORRUPÇÃO
Os contratos da Fundação Ricardo Franco com o Instituto Militar de Engenharia (IME) e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) também engordaram o butim formado pelo triângulo verde oliva e foram alvos do longo e duradouro processo de pilhagem de recursos públicos por parte dos militares das fundações. Num esquema qualificado em ação na justiça militar como de “fraude generalizada mediante conluio entre militares e empresas de fachada”, ao menos 200 processos licitatórios foram realizados com falsa competição entre participantes, privilegiando essas empresas de fachada ligadas a militares.
No dia 23 de abril de 2019, a justiça militar do Rio de Janeiro condenou cinco militares e dois civis por desvios no IME. Na sentença, o juiz federal Sidnei Carlos Moura, 2ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM), descreveu que R$ 15.731.972,66 (quinze milhões, setecentos e trinta e um mil e novecentos e setenta e dois reais e sessenta e seis centavos) foram dirigidos para esses contratos fraudados da Fundação Ricardo Franco.
Mais uma vez chama atenção, assim como nos outros processos, tanto na justiça militar, como na justiça comum e no TCU, que os generais das fundações participantes das fraudes não foram punidos, embora a peça da justiça militar destaque, em diversas situações ao longo de 45 páginas, a responsabilidade desses altos oficiais nas fraudes.
A maior responsabilidade pelas fraudes e maior penalizado foi o major Washington Luiz de Paula, condenado a 16 anos de reclusão mas com direito a recorrer em liberdade.
No Portal da Transparência, o major aparece ainda na ativa. E atuante: de acordo com os dados públicos, em 2018, entre os dias 13 e 16 de agosto, fez uma viagem do Rio para Belém e Manaus representando o mesmo Departamento de Educação e Cultura, (DECEX), que tinha a Fundação Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida como instituição de apoio e com a qual foram vinculadas as fraudes em que o major é citado na justiça. O motivo da viagem representando o exército foi de “formação continuada ao Colégio Militar de Belém e ao Colégio Militar de Manaus”.
ANÁLISE DE PROCESSOS POR PARTE DA REPORTAGEM MOSTRA CONHECIMENTO DE GENERAL EM FRAUDES
Analisando diversos processos envolvendo as fundações, seja no TCU ou na justiça militar, a reportagem encontrou fatos deixados de lado e ignorados na sentença da justiça militar envolvendo o general ligado ao caso.
Por exemplo: em 14 de março de 2003, de acordo com o “Boletim Interno (fls. 53-Anexo 1)”, o major Washington Luiz de Paula, até então “chefe da seção de materiais (almoxarifado)” do IME, foi promovido a presidente da “comissão permanente de licitação” (CPL) pelo então general Rubens Silveira Brochado, na reserva desde 2006, quando recebeu a promoção para marechal, como consta no Portal da Transparência.
É da data dessa promoção do major Washington de Paula para cuidar das licitações em diante, de acordo com a sentença da justiça militar, que as fraudes no IME se incrementam, inclusive com os contratos da Fundação Ricardo Franco.
No entanto, de acordo com outros processos analisados pela reportagem, antes dessa promoção de 14 de março de 2003 para a função de presidente da comissão de licitação, o major Washington já estava envolvido em conhecidas fraudes no almoxarifado do IME. E ainda assim foi promovido pelo general Rubens Silveira Brochado para presidir as licitações.
A ação penal Nº 97-56.2013.7.00.0000/DF mostra que entre novembro de 2000 e dezembro de 2002, o IME adquiriu bens de intendência e informática. Esses bens foram recebidos pelo Major Washington Luiz de Paula, ainda no almoxarifado. No início de 2003, conforme a ação penal, a administração do IME “constatou que todo o material adquirido e supostamente recebido pelo major Washington, simplesmente não se encontrava nas dependências daquela organização militar”.
O fato foi levado ao general Rubens Silveira Brochado. Que determinou a “descarga” dos objetos (que no entanto não tinham sido mais encontrados nas dependências do IME), “por inservibilidade para os fins a que se destinam, serem obsoletos e não serem susceptíveis de reparação ou recuperação”.
O ato foi considerado, na ação como “incontroversa a falsidade perpetrada pelos denunciados no procedimento de descarga, sob a inverídica premissa de ´inservibilidade´, com imputação de prejuízo à União e com o objetivo de encobrir as irregularidades patrimoniais havidas ainda no início daquela década (2000 a 2003). Concluiu o nobre Chefe do Órgão Acusatório: ´Portanto, se, por um lado, não se elucidaram todas as circunstâncias de ocorrência de delitos contra o patrimônio sob administração militar, sobretudo quanto à forma de execução ou o exato momento de seu cometimento, por outro, restou cabalmente evidenciada a intenção dos denunciados de evitar qualquer investigação a esse respeito, adotando, como solução fraudulenta, a descarga sumária dos bens não encontrados dentro daquela organização militar”.
A riqueza de detalhes da denúncia não foi suficiente para que o general fosse punido. O general acabou sendo o único inocentado:
“Ocorre, contudo, que a prova material e os indícios de autoria colacionados ao procedimento investigatório relativamente ao ten cel Wilton Pinto, ao major Reginatto e ao major Washington, não apresentam indícios concretos que justifiquem a intervenção penal com relação ao general Rubens Brochado por suposta prática de crime de falsidade ideológica”.
E logo após, de acordo com a peça da justiça, o general ter encoberto o major por desvios no almoxarifado e de ter determinado a “descarga” dos equipamentos sumidos “por inservibilidade”, promoveu esse major a comandar as licitações do IME, local onde foram orquestradas posteriormente as fraudes que incluíram também a Fundação Ricardo Franco.
E-MAIL DE MAJOR OBTIDO PELA REPORTAGEM FALA NA PARTICIPAÇÃO E IMPUNIDADE DE GENERAIS
A reportagem teve acesso a um e-mail que circulou amplamente no meio militar no ano de 2010, quando as investigações do TCU e da justiça militar começaram. A autoria é creditada ao major Washington Luiz de Paula, com quem a reportagem não conseguiu contato para confirmação. Mas é o próprio ministério público militar que atesta a veracidade desse e-mail, como mostra reportagem do jornal O Globo, em 27 de maio de 2010. Sem reproduzir trechos, tal reportagem do Globo citou a existência do e-mail, e relatou que, em razão do e-mail envolver generais, e por considerar que a distribuição do material prejudicava as investigações, o ministério público militar chegou a pedir a prisão preventiva do major por ter detonado tal e-mail, atestando assim a veracidade.
Antecipando que seria responsabilizado sozinho, o major deixa pistas no e-mail para indicar os responsáveis. Em alguns casos, consultando processos e nomeações, assinaturas de contratos e convênios, é possível se cruzar os fatos e confirmar a ocorrência dos fatos. A transcrição de alguns trechos a seguir é fiel a forma como foram escritos. No e-mail, o major denuncia que está sozinho e outros envolvidos estão sendo aliviados:
“A conta tem que ser paga por todos. Porque apenas este major, que trabalhou duro para proporcionar: mordomias, lazer, patrimônios, etc., agora é abandonado e desde já condenado a pagar por este fardo que é de todos”.
E diz que a partir daquele momento, estaria com a cabeça a prêmio: “no documento, abaixo relatado, seguem os nomes de todos meus ex-companheiros, inimigos e algozes. A partir de agora, sei que, minha cabeça está a prêmio”, diz.
Com data possível de maio de 2010, o e-mail já cita que, caso seja expulso do exército, restaria a carreira política, dando como exemplo o então deputado Jair Bolsonaro. “Se eu for expulso, resta-me a carreira política. Vejam o caso do Capitão Jair Bolsonaro. E eu não quero explodir quartel, não sou torturador, nada parecido com esses militares bitolados, sou apenas produto do meio administrativo do Exercito Brasileiro”.
“PICA-FUMO: O SHOW TEM QUE CONTINUAR MESMO SEM VOCÊ”
No suposto e-mail atribuído ao major, ele conta que sua função na quadrilha era de arrecadador do dinheiro do esquema de corrupção nas fundações. E a partir daí repassava o montante a generais e superiores. Por isso, era chamado por um deles de “Pica-Fumo”, ou seja, aquele que corta o butim e divide para os demais.
Chama um comandante do esquema de “General XXXXXXX”. E diz :
“Oportunamente falarei seu nome, se sobrar pra mim, conto tudo, mostro vídeos etc. Vai ser pior que o governador Arruda”, diz o e-mail, em alusão ao escândalo do então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, o mensalão do DEM, de 2010, onde integrantes do esquema foram gravados escondendo dinheiro na cueca.
O batizado “Pica-Fumo” lamenta o que chama de “abandono” e relata o valor mensal da propina, entre outras arrecadações de fontes ilícitas.
“Abandonou aquele que lhe proporcionou ‘tudo’: dinheiro, conhecimento, profissionalismo, prestígio etc. Esqueceu dos R$ 35.000, 00 todos os meses em dinheiro, que eu, pessoalmente, repassava para o senhor. O senhor não colocava na meia não, era no bolso mesmo, lembra? ‘Só nota de cem, pra não fazer volume, pica-fumo’, dizia o senhor, lembra?”, escreveu.
E seguiu reclamando do que chama de “abandono”, ameaçando ter gravações:
“Esqueceu do nosso pacto? O senhor, ‘Meu General’, o Coronel Dias e Eu, ‘Nada abalaria nossa união’, dizia o senhor, lembra? E agora me entrega para os gorilas? Tenho alguns vídeos e gravações, não se preocupe ‘Meu General’, o senhor não aparece colocando nada na cueca, era muito dinheiro, não ia caber tudo lá. Mas, na pasta sim. A pasta não era tão pequena, né? Mesmo sem a minha presença, a “farra” continua. O senhor, “Meu General”, teve o descaramento de me falar: ‘Pica-fumo, o show tem que continuar mesmo sem você’. Patife, infame, vil, cafajeste”, desabafa.
Entre outros superiores que cita e também omite o nome, fala em “ganância desenfreada”, dá pistas e ameaça:
“General XXXXXXXXXXXXXXXX (dizem que com general nunca acontece nada, será? Tem muita coisa, desta vez em gravação e vídeo. Se eu cair esse também cairá!)”.
“Depois do nosso futebol combinávamos seu percentual, lembra? O senhor sempre querendo mais que da última vez, que ganância desenfreada. E aquela dispensa de licitação de dezembro de 2004, lembra? Eu avisei ao senhor, mas sua cobiça exagerada falou mais alto. Fomos pegos pelo TCU, lembra?”, diz, fazendo questão de dar mostras de ter provas.
O e-mail seguiu com referências aos generais e denúncias.
“Lembra do General …? Aquele que psicografa o Chico Xavier, ele nem precisou de mensagens do além, né? Todo mundo sabia das suas ilicitudes. Assim que ele soube denunciou o senhor ao TCU. Tá aí, esse é um dos poucos generais que eu respeito, embora seja oriundo de Infantaria. Ele sempre teve coragem moral, diferente da maioria dos outros ‘generas’. Onde está agora o mais moita de toda história do Exército? A velha vaca de presépio? O … mora em Alphaville, um dos bairros mais luxuosos de São Paulo, recebendo parte de sua fortuna como funcionário da Petrobrás. Foi o prêmio por se tornar um cordeirinho. E os outros três generais que se rebelaram contra a Estratégia Nacional de Defesa? Esses frouxos, só resolveram aparecer quando passaram para a reserva. Assim fica fácil. Não estranhem se algum deles aparecer pedindo votos ou se lamentando no Clube Militar. Nem mesmo a Brigada de Operações Especiais, a elite do Exército, escapa da subserviência e frouxidão”, escreveu, concluindo: “Mas, voltando ao ‘Senhor’, ‘Meu General’, que vergonha! O ‘Cardosão’ exonerou o senhor, não é? Foi feio, pelo menos não teve que devolver sua graninha, foi pra reserva, de cabeça bem baixa, mas, com dinheirinho no bolso”, ironizou.
Em explicação didática, contou como se fazia a fraude na compra de refeições da tropa, o chamado em jargão militar de “rancho”:
“É fácil pegar. Vejamos, por exemplo, o rancho. Fazem à grade cheia (todos almoçando, jantando etc.) pegam no 1 D Sup 1/3 do pedido. 2/3 é dado em dinheiro pelo próprio 1 D Sup (é o Cap … quem vai pegar, sempre), ou pelos fornecedores (também é o próprio Cap … que vai nas firmas passar a “sacolinha”) dividido entre oficiais e Sgt de intendência do IME. Solução: o Of de Dia (se até todos os Of de Dia estiverem envolvidos, aí é melhor fechar o IME) é quem deve receber os gêneros alimentícios, todos os dias (até de madrugada, lógico), conferindo com a nota, como é feito na Marinha. Se no IME não é assim, há omissão. Depois vem o Comando falar que tomou as medidas cabíveis, ‘picas’!Depois eu dou mais dicas, também já fui de intendência”, escreveu.
E, no suposto e-mail de 2010, além de diversos outros nomes de militares, citou as Fundações Ricardo Franco e Trompowsky como instrumento de corrupção:
“Fundação Ricardo Franco: até hoje fazem e desfazem ilicitudes, se der TCU, descobrirão. O Coronel… me odeia, mas leva o seu também, não deve gostar de concorrência. Vejam o patrimônio dele”.
“Fundação Trompowsky: menos intensa em ilicitudes, mas, atuantes também. Verifiquem o diretor administrativo, …. Imóveis, carros, patrimônio, etc. Até hoje faz as ilicitudes com o DNIT, mas agora é mais fácil, sem licitação”.
OUTRO LADO:
A reportagem enviou e-mail para o comando do exército, através da assessoria de imprensa, para ouvir sobre desvios em convênios e contratos nas fundações Ricardo Franco e Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida levantados na apuração. Questionou ainda sobre o fato de não existirem generais punidos, embora citados nos processos. E pediu ainda que, além da resposta institucional sobre as questões do exército, que entrasse em contato com os quadros citados, caso esses desejassem respostas como pessoas físicas, já que a reportagem não conseguiu contato para as respostas individualmente. Em caso de posterior resposta de algum citado com a qual não conseguimos contato além do institucional realizado, será publicado aqui.
Íntegra da resposta do Comando do Exército:
“Atendendo à sua solicitação, formulada por meio de mensagem eletrônica de 21 de setembro, o Centro de Comunicação Social do Exército informa que a Fundação Ricardo Franco e a Fundação Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida não possuem contratos vigentes com o Comando do Exército. Os convênios e contratos firmados pelas empresas com o Governo Federal tiveram vigência até 2012, no caso da Fundação Ricardo Franco, e até 2014, no caso da Fundação Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida.
A respeito de contratos celebrados anteriormente, ressalta-se que o Exército Brasileiro adotou todas as medidas administrativas para identificar possíveis não conformidades em relação às normas vigentes e afastar eventuais danos ao erário.
O Exército Brasileiro não possui ingerência sobre as ações das fundações em questão, por serem privadas, sem fins lucrativos. Por sua natureza jurídica, cabe ao Ministério Público a função de fiscalizá-las. Cumpre informar, ainda, que a Fundação Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida encontra-se em processo de extinção.
Cabe acrescentar que a utilização de Fundações de Apoio é prevista em lei, sendo uma forma de suporte para o desenvolvimento das instituições, principalmente aquelas cuja finalidade é a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação.
Finalmente, em relação a eventuais procedimentos em andamento no Ministério Público ou no Poder Judiciário, o Exército Brasileiro sempre irá colaborar e prestar informações diretamente aos órgãos competentes, sem tecer comentários em relação às decisões legalmente proferidas. Cabe destacar que esse é o procedimento que tem pautado a relação de respeito da Força com as demais instituições da República”.
Parabéns pela reportagem, muito relevante, assim como as demais que têm feito. Muitas vezes replicadas em outros veículos, suas matérias fazem a diferença. Acompanho desde os tempo de ESPN e parabenizo o profissionalismo e dedicação.