Massacre ocorre mesmo com resolução do STF que suspende operações na pandemia. Um policial civil morreu baleado na cabeça e duas pessoas ficaram feridas por tiros que chegaram a um vagão do Metrô
Policiais civis carregam o corpo de uma pessoa morta durante operação na favela do Jacarezinho, nesta quinta-feira, 6 de maio, no Rio de Janeiro.
Uma operação da Polícia Civil realizada nesta quinta-feira na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, já se tornou a segunda maior chacina da história do Estado. Um total de 25 pessoas morreram, entre elas o policial civil André Farias, baleado na cabeça, segundo autoridades. Os demais são considerados suspeitos pela Polícia. O Instituto Fogo Cruzado contabilizou um total de 29 pessoas baleadas ao longo de sete horas de operação —entre eles, três policiais civis e duas vítimas de bala perdida. De acordo com o relato de quem acompanha a operação no local, os agentes estão invadindo a casa de moradores para realizar revistas —que só podem ocorrer com mandado judicial— e estão colocando os corpos das pessoas mortas em veículos blindados da corporação. Em uma das imagens recebidas pelo EL PAÍS, três agentes carregam irregularmente um corpo dentro de um lençol branco, atrapalhando qualquer trabalho de perícia.
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Em entrevista coletiva por volta de 17h, a Polícia Civil confirmou o número de mortes e afirmou que seis pessoas foram presas, sendo que três delas tinham mandado de prisão expedido. Além disso, a Operação Exceptis também apreendeu 16 pistolas, seis fuzis, uma submetralhadora, 12 granadas e uma escopeta calibre 12. A favela do Jacarezinho é considerada uma importante base do Comando Vermelho, a principal e mais poderosa facção do Rio de Janeiro, e os agentes investigavam o aliciamento de crianças e adolescentes para ações criminosas. “As investigações continuam, outras operações virão, e a gente busca não permitir que essas crianças sejam aliciadas pelo tráfico”, afirmou o delegado Rodrigo Oliveira. As autoridades negaram os abusos relatados por moradores e afirmaram que os policiais agiram em legítima defesa. “A única execução que houve foi a do policial, infelizmente. As outras mortes que aconteceram foram de traficantes que atentaram contra a vida de policiais e foram neutralizados”.
A ação policial desta quinta-feira demonstra que, mesmo durante a pandemia de coronavírus, a política de segurança pública do governador Cláudio Castro (PSC) no Estado do Rio segue sendo pautada pelo confronto direto com traficantes de drogas em favelas e bairros periféricos, em desrespeito a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Em junho do ano passado, o STF proibiu operações policiais desse tipo durante a crise sanitária, salvo em “hipóteses absolutamente excepcionais” e desde que devidamente justificadas ao Ministério Público do Rio —que, por sua vez, afirma ao EL PAÍS ter recebido a notificação da operação desta quinta às 9h, depois de seu início.
Um mês depois da decisão do Supremo, as operações policiais diminuíram 78%, as mortes em tiroteios caíram 70% e a quantidade de feridos, 50%. Ao mesmo tempo, 30 vidas teriam sido poupadas em julho, segundo uma pesquisa feito pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mas, mesmo com a ordem do STF, os números voltaram a crescer em novembro. Somente em 2021, o Instituto Fogo Cruzado já registrou 30 chacinas —casos em em que três ou mais pessoas foram mortas a tiros em uma mesma situação— na região metropolitana do Rio. “Ao todo, já são 139 mortos nessas circunstâncias”, afirma a plataforma, que monitora os tiroteios no Estado.
Nos dias 16 e 19 de abril deste ano, o ministro Edson Fachin realizou uma audiência pública com familiares de vítimas, organizações não-governamentais, especialistas e representantes das corporações policiais para debater estratégias de redução da letalidade policial. “É surreal que, duas semanas depois dessas audiências, a polícia continue com essa lógica do confronto, que coloca em risco nossa vida e que não respeita os nossos direitos, nossas casas e nossas vidas”, afirmou um morador do Jacarezinho em condição de anonimato.
A operação desta quinta começou por volta de 06h45, com helicópteros dando rasantes e policiais avançando pelos trilhos do trem e do metrô, que cortam a favela na superfície. “Eram muitos policiais entrando por todas as áreas do Jacarezinho. Muitos estão encapuzados. A gente recebeu a notícia que um deles foi baleado, e aí os tiros passaram a ser bem mais intensos”, afirmou o mesmo morador, que acredita que os agentes passaram a agir com revanchismo —como já aconteceu em outras ocasiões no Rio.
O tiroteio intenso também afetou a circulação do metrô e feriu dois passageiros dentro de um vagão. Uma Clínica da Família e outros dois postos de vacinação contra a covid-19 precisaram ser fechados. Os moradores tiveram que se trancar em casa para se proteger dos tiros, deixando as ruas praticamente desertas. Uma noiva estava de casamento marcado e uma mulher grávida havia agendado uma cesariana para o dia.
O EL PAÍS recebeu imagens de corpos caídos no chão e de pessoas ensanguentadas. Também circulam fotografias do interior de algumas casas. Nelas, paredes e pisos aparecem com marcas de bala e grandes manchas de sangue. “Tenho uns 10 relatos de pessoas contando que a polícia entrou em suas casas revistando e jogando tudo para cima. A favela inteira está tomada”, afirma o morador. Em um áudio recebido por este jornal, outra pessoa relata a seguinte cena: “Entramos numa casa aqui com pedaço de massa encefálica. Invadiram a casa de uma senhora e torturaram o cara aqui dentro, a casa está toda suja de sangue”. Outra também relatou que em uma residência havia quatro mortos em uma laje e que os agentes não deixavam ninguém entrar. Há também denúncias de que agentes confiscaram telefones de moradores, sob o argumento de que mandavam informações para traficantes, segundo o G1. “Estão pegando telefone e agredindo morador”, relatou uma pessoa ao programa RJ1, da TV Globo.
A ação resultou na segunda maior chacina do Rio de Janeiro. A maior até o momento ocorreu nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense, em 2005. Nesse dia, grupos de extermínio formado por policiais mataram 29 pessoas. A operação também supera as chacinas de Vigário Geral, que terminou com a morte de 21 pessoas em 1993; da Vila Vintém, onde uma disputa de traficantes deixou 19 mortos; e do Complexo do Alemão, onde uma operação policial também resultou na morte de 19 pessoas em 2007.
O que dizem as autoridades
A situação está sendo acompanhada pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro e pela Defensoria Pública do Estado. O EL PAÍS entrou em contato com a Polícia Civil perguntando, entre outros pontos, os motivos da operação policial, se a corporação cumpriu os procedimentos determinados pelo Supremo e como justifica mais de duas dezenas de óbitos. Questionou, além disso, se os agentes agiram com o intuito de vingar a morte do colega, e se tinham mandado judicial para revistar a casa dos moradores. Por fim, buscou confirmar se os agentes estavam, conforme diziam os relatos, colocando os corpos de pessoas mortas nos veículos blindados. O jornal não recebeu nenhuma resposta até a publicação desta reportagem.
Porém, a Polícia Civil responsabilizou durante a coletiva de imprensa o “ativismo judicial” pela morte do policial André Farias, mas negou que estivesse se referindo ao STF. “O sangue desse policial que faleceu em prol da sociedade de alguma forma está nas mãos dessas pessoas e entidades”, afirmou o delegado Oliveira. “A gente não tem como nominar A, B, C ou D. São diversas organizações que buscam nesse discurso impedir o trabalho da polícia. Quem pensa assim está mal intencionado ou mal informado”, acrescentou. E prosseguiu: “Impedir que a polícia cumpra o seu papel não é estar do lado de bem da sociedade. O ativismo perpassa uma série de entidades e grupos ideológicos que jogam contra o que a Polícia Civil pensa. E a polícia está do lado da sociedade.”
Oliveira ainda falou que “é preciso acabar com discurso de pobre coitado e de vitimização desse criminoso”. Seu colega, o delegado Felipe Curi, foi na mesma direção ao falar sobre mortos: “Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante. O que causa muita dor na gente é a morte do nosso colega.”
Ao Ministério Público, o EL PAÍS perguntou se o organismo havia sido informado sobre operação, como determina o STF, e se pretende abrir inquérito para investigar a chacina. A instituição respondeu às 17h19, dizendo que “vem adotando todas as medidas para a verificação dos fundamentos e circunstâncias que envolvem a operação e mortes”, com o objetivo de abrir uma investigação independente. Também garante que a operação foi comunicada às 9h, depois de seu início, mas que a realização de operações policiais não requer prévia autorização ou anuência por parte do Ministério Público. “A Polícia Civil apontou a extrema violência imposta pela organização criminosa como elemento ensejador da urgência e excepcionalidade para realização da operação”, afirmou.
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