Artigo publicado originalmente no jornal O Globo, em 22 de abril de 2021
Luiz Fux*
As últimas palavras de George Floyd ecoaram pelo mundo e continuam a ser repetidas em manifestações por diversas cidades dos Estados Unidos. “Não consigo respirar”, disse, enquanto o policial Derek Chauvin lhe pressionava o pescoço com seu joelho por mais de nove minutos. Esta semana, os 12 jurados convergiram em veredito unânime, condenando o policial pela prática de homicídio.
A filha de George Floyd, Gianna, de 7 anos, visitou com a família o local da tragédia, transformado em memorial. Erguida nos ombros do tio, ela disse às câmeras: “O papai mudou o mundo”. Neste momento pandêmico que o Brasil vivencia, as palavras de Gianna devem ser lembradas diariamente.
É que cenas lamentáveis circulam pelas redes sociais, revelando a brutalidade com que alguns policiais abordam transeuntes nas ruas, ou agridem populares que infringem regras sanitárias ou abrem o comércio irregularmente. Recente vídeo evidenciou indícios de excesso na abordagem de um policial que apartava uma briga entre vizinhos em Cambé, no Paraná. No episódio, um policial de porte atlético avantajado esbofeteou um cidadão na frente da esposa e dos filhos. Noutros vídeos, agentes abordam lojistas irregulares com a arma em punho e agridem mulheres com golpes típicos de lutas marciais, em atitudes sem precedentes de violação da dignidade humana.
Não se discute a importância das forças policiais para a manutenção da ordem pública e social, para o cumprimento das leis e para a construção de um ambiente de institucionalidade no país. Também não há dúvidas de que as forças policiais são integradas por membros, em sua maioria, leais às suas missões e zelosos de seus deveres. No entanto casos de excesso na ação das polícias têm se tornado cada vez mais comuns.
A título de exemplo, o número de pessoas mortas por policiais militares em alguns estados cresceu mais de 20% no primeiro semestre de 2020 em comparação com o mesmo período de 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar da pandemia do novo coronavírus e da queda nos índices de crimes violentos, os dados mostram aumento de 6% nas mortes decorrentes de intervenção policial no primeiro semestre de 2020 na comparação com 2019.
Essas informações levaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a expressar profunda preocupação com os recordes históricos de ações policiais violentas registradas, principalmente contra pobres e negros. A CIDH instou nosso país a adotar uma política de segurança pública cidadã, bem como a combater e erradicar a discriminação racial histórica que resulta em níveis desproporcionais de violência institucional contra as pessoas afrodescendentes e as populações em situação de pobreza ou pobreza extrema.
O Poder Judiciário não tem se furtado ao debate. Em breve, o Plenário da Corte deve se debruçar sobre o tema da letalidade policial. O Conselho Nacional de Justiça, por meio de seu Observatório de Direitos Humanos, tem acompanhado com atenção casos de violência policial.
A temática é complexa e tem raízes estruturais e históricas, mas precisa ser enfrentada com vigor. No plano local, urge que as autoridades capacitem suas forças de segurança, dotando-as de um manual de ética e de dignidade na abordagem. Deve-se primar pela preservação da integridade física e moral das pessoas, ainda quando transgressoras das leis ou de regras sanitárias, de modo que a atuação policial seja civilizada, com repreensões que obedeçam à razoabilidade da reação. Deve-se reforçar, ainda, o caráter educativo e pedagógico da função policial.
No plano nacional, impõe-se uma reflexão articulada entre os Poderes, em todos os seus níveis federativos, para o diagnóstico e a propositura de soluções estruturais e medidas mais amplas, que tornem as atividades policiais mais integradas à população cidadã e mais responsivas aos direitos humanos, sem perder de vista a necessária eficiência no combate ao crime e na manutenção da ordem.
A cultura da atuação policial urge seja aperfeiçoada, sob pena de as palavras de Gianna ecoarem num mundo menor do que sonhou.
(*) Luiz Fux, cidadão brasileiro, é presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal
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