O UOL apurou junto ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e à Polícia Civil informações sobre uma aliança entre milícia e traficantes do TCP (Terceiro Comando Puro) para expandir o domínio territorial miliciano, em uma guerra contra o CV (Comando Vermelho), uma das principais facções do país.
Com quase 15 anos de atuação, os grupos paramilitares, que surgiram sob o pretexto de combater a criminalidade, avançam para a criação de uma espécie de estado de narcomilícia, que já busca crescer em municípios da Baixada Fluminense.
Em uma área com cerca de 700 mil habitantes, os bairros de Santa Cruz e Campo Grande, na zona oeste, são quartel-general da milícia conhecida por "Liga da Justiça", considerada a maior do Rio, desde o seu surgimento, em 2005.
De acordo com o MP, hoje a milícia não usa mais o antigo nome, para dificultar sua identificação em investigações.
A união entre a milícia e o tráfico
A aliança com o tráfico foi costurada há cinco anos, quando o então traficante Carlos Alexandre Braga, conhecido como Carlinhos Três Pontes, passou a chefiar o grupo paramilitar.
Ele morreu em uma operação organizada pelo DGPE (Departamento Geral de Polícia Especializada), em abril de 2017, mas a parceria não perdeu força.
Carlinhos foi substituído no grupo pelo seu irmão, Wellington da Silva Braga, conhecido como Ecko, que intensificou as investidas contra o CV há pelo menos um ano.
Plano de carreira, popularidade e influência
Investigações conduzidas pelo MP-RJ apontam que milicianos estariam recrutando integrantes do CV para enfraquecer a facção.
"O plano de carreira é melhor. A milícia paga mais e não há troca de tiro com a polícia. Eles passam a acreditar que deixaram de ser bandidos", explica Luiz Antônio Ayres, promotor que atua em processos contra a milícia desde o surgimento dos grupos paramilitares no Rio.
Outra característica da nova milícia que atua em parceria com o tráfico, segundo o promotor, é a busca por popularidade entre os moradores.
Em quase 15 anos, já temos uma geração de jovens que cresceram sob o poder da milícia. A revolta inicial foi diminuindo. Os milicianos aprenderam com os traficantes a buscar um laço com os moradores, produzindo bailes funk, por exemplo. É possível perceber um impacto até no linguajar desses jovens, que passam a usar gírias adotadas por policiais.Luiz Antônio Ayres, promotor do MP-RJ
Miliciano pode estar ao seu lado
O delegado Gabriel Ferrando, da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), à frente da unidade da Polícia Civil responsável por investigar as milícias no Rio, diz que os grupos paramilitares estão em um processo de expansão e de adaptação nos últimos anos.
"Se formos comparar, o tráfico é como um câncer. Mas a milícia é um vírus, com maior facilidade para se adaptar. Os traficantes vivem nos guetos. Os milicianos podem estar em qualquer lugar, porque eles não se limitam a um segmento social. Você não sabe quem é o miliciano. Ele pode estar no restaurante, sentado ao seu lado. A milícia não tem rosto", analisa.
Outra mudança significativa no perfil dos grupos paramilitares nos últimos anos, segundo ele, foi a habilidade para terceirizar serviços de cobrança de taxas por segurança, por exemplo. "Antes, as cobranças eram feitas por ex-agentes públicos. Hoje, a milícia terceirizou esse tipo de atividade", compara.
Entretanto, Ferrando discorda da tese de que a aliança entre a milícia e o tráfico seja permanente. "É preciso ter cuidado com essa tese de aliança e de formação de narcomilícia. Eles não são uma coisa só. Existe um pacto, um acordo de cooperação visando o combate a outra facção, que é o CV. É difícil encontrar uma área onde o tráfico e a milícia coexistam".
Guerra por território
A expansão territorial da antiga Liga da Justiça se intensifica com a expulsão do CV nas favelas do Rola e Antares, historicamente dominadas por traficantes.
A ocupação ocorreu em outubro de 2018, após o fim do primeiro turno das eleições. Armados com fuzis, milicianos vestidos com roupa preta renderam criminosos ligados à facção, que buscaram refúgio em Angra dos Reis (RJ), segundo investigações da Polícia Civil.
A região da Praça Seca, também na zona oeste, convive com uma intensa disputa. A aliança formada pela milícia com o TCP tomou territórios na área antes dominados pelo CV.
O grupo dá continuidade a um plano de expansão em outras regiões da capital.
No começo do mês, milicianos trocaram tiros com traficantes na Vila Kennedy, em Bangu, também na zona oeste. A favela do Borel, na Tijuca, zona norte do Rio, também virou alvo da quadrilha, de acordo com o MP.
"Hoje, as milícias atuam no tráfico com franquias do TCP, que vendem drogas e repassam parte dos seus lucros. Mas há efeitos colaterais preocupantes. Com o domínio da milícia na zona oeste, os índices de criminalidade tendem a zero. Aí, a região deixa de ser um problema estatístico e sobram policiais para atuar em outros lugares do Rio. Com isso, os moradores passam a viver em um estado de narcomilícia", analisa Ayres.
Para Ayres, o Rio pode ficar sob domínio completo da milícia nos próximos anos.
A milícia é muito mais do que um problema de segurança pública. Ela coloca em risco o próprio conceito democrático. Existe um projeto de poder político. As milícias estão com muito dinheiro. E, cada vez mais, vão eleger políticos.Luiz Antônio Ayres, promotor do MP-RJ
Terraplanagem e imóveis para população de baixa renda
Em julho, seis pessoas foram presas acusadas de integrar a milícia em uma operação em conjunto entre a polícia e o MP-RJ.
Na época, o MP-RJ informou que o grupo usou uma empresa de terraplanagem para faturar R$ 42 milhões entre 2012 e 2017.
Segundo as investigações, pelo menos R$ 10 milhões desse valor foram usados para fazer a lavagem de dinheiro de atividades ilícitas do grupo criminoso.
De acordo com a denúncia, foram investigadas as empresas Macla Comércio e Extração de Saibro, Hessel Locações e Incorporações, Senna Terraplanagem e Jardim das Acácias Mineração, pelos crimes de organização criminosa e lavagem de capitais.
Segundo as investigações, a Macla é de propriedade de Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão do chefe da milícia, Wellington da Silva Braga, conhecido como Ecko. Os dois estão foragidos.
Em agosto, foi organizada uma operação no Conjunto da Marinha, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, para cumprir 36 mandados de busca e apreensão por crimes como venda irregular de imóveis, extorsão do comércio clandestino de gás, transmissão irregular do sinal de internet, TV a cabo, transporte público irregular e comércio de cigarros contrabandeados.
De acordo com as investigações, os milicianos recrutaram bandidos ligados ao CV. Aqueles que não aceitaram ingressar na milícia foram obrigados a fugir e a buscar proteção na Vila Kennedy, área dominada pela facção.
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