Maior milícia do país monitorou e dominou tráfico para instalar "franquias" em cidades próximas ao Rio
DO UOL, NO RIO
Uma rodovia de 18 quilômetros às margens do Rio Guandu, que liga o Rio de Janeiro aos municípios da Baixada Fluminense, é monitorada com atenção pela maior milícia do país.
Olheiros da "Firma", antiga "Liga da Justiça", cumprem plantão e se comunicam pelo WhatsApp, onde repassam informações sobre a movimentação de veículos suspeitos, viaturas policiais ou qualquer tipo de confusão nas imediações da BR-465, a antiga estrada Rio-São Paulo. Milicianos também fazem rondas pelo trecho com carros adaptados, com fuzis projetados para fora.
Documentos aos quais o UOL teve acesso com exclusividade mostram como a milícia ampliou seu território da capital fluminense para a Baixada em um movimento que começou a ser orquestrado nos últimos três anos.
As trocas de mensagens pelo grupo "Conexão Baixada" mostram como a quadrilha da zona oeste do Rio se articulou para expulsar traficantes e ampliar sua área de atuação com a criação de "franquias" do crime em um território responsável por uma movimentação financeira de pelo menos R$ 10 milhões por mês, segundo estimativa do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro).
Os olheiros faziam plantões para monitorar os bairros Cabuçu, Valverde, Rosa dos Ventos e Palhada, em Nova Iguaçu, em um dos acessos da antiga estrada Rio-São Paulo. Os diálogos pelo WhatsApp com outros milicianos apontados como administradores da quadrilha revelam uma estrutura empresarial.
A denúncia apresentada pelo MP-RJ enfatiza o que chama de "sistema de poder hierarquizado".
As primeiras evidências de que a principal via de acesso ao municípios da Baixada estava na mira da milícia foram registradas pelo MP-RJ em junho de 2018. O grupo paramilitar ainda estudava a movimentação dos traficantes do CV (Comando Vermelho), que até então dominavam o território. O monitoramento se intensificou desde então.
Às 23h41 de 19 de maio deste ano, Demétrio Ferreira dos Santos, de 19 anos, conhecido como Maluquinho, recebeu uma informação de um olheiro, que o alertou para uma movimentação no bairro Cabuçu. "Avisa o pessoal da Firma que um grupo de motociclistas tá parado na praça fazendo arruaça".
Maluquinho estava na lista de 16 milicianos denunciados pelo MP-RJ por integrar a organização criminosa. Entre eles, Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefão do grupo. Outro denunciado foi Danilo Dias Lima, o Tandera, apontado pela Polícia Civil como o responsável pela abertura de "franquias" na Baixada da "Firma", também chamada de "Bonde do Ecko".
Na madrugada de 24 de junho, uma investida da milícia determinou a conquista do território. Coordenados por Tandera, os paramilitares expulsaram traficantes de oito comunidades de Nova Iguaçu, às margens da antiga estrada Rio São Paulo. A ação contou com o apoio de cerca de 100 milicianos. Muitos deles, armados com fuzis. Relatos de moradores nas redes sociais na época indicam que o grupo invadiu casas, revistou pessoas e até cometeu assassinatos nessa ocupação.
Uma interceptação telefônica obtida pelo UOL registra o desespero dos traficantes ao perceber a chegada do grupo.
Olheiro - Os caras estão muito pesado [sic], viado. Caralho! É muita coisa, viado!
Traficante - Mas o que é? O que é? Meia dois [como os traficantes se referem ao fuzil 7.62]?
Olheiro - É meia dois, é AK [fuzil AK-47]. Caralho, os caras só tão de fuzil. Puta que pariu, eu não tava conseguindo nem falar, viado!
Fuga do tráfico para a Baixada inspirou milícia
Segundo a promotora Elisa Ramos Pittaro Neves, responsável pela denúncia, as ações do tráfico fizeram com que a milícia percebesse o potencial de uma expansão para os municípios da Baixada. Isso teria ocorrido durante a política de instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas do Rio, entre 2008 e 2018.
Caçados pelas autoridades durante a implementação do programa em 38 áreas até então dominadas pelo tráfico, os criminosos buscaram refúgio na Baixada, onde conseguiram expandir os seus negócios e obter lucro, afirma a promotora.
A milícia viu o que o tráfico estava fazendo e percebeu que a expansão para a Baixada era um bom negócio para o grupo. É uma região pobre e com pouco policiamento. E, por isso, favorável para a implantação de um Estado paralelo.
Elisa Ramos Pittaro Neves, promotora do MP-RJ
Elisa Ramos Pittaro Neves, promotora do MP-RJ
Esconderijos em sítios
Há outras vantagens que favoreceram a expansão para os municípios da região. A rota facilita o deslocamento dos chefões para locais afastados, como sítios nos municípios de Itaguaí e Seropédica, em áreas rurais.
Segundo investigações da Polícia Civil, Ecko e Tandera costumam se refugiar nessas áreas. Em maio deste ano, o Departamento de Investigação de Lavagem de Dinheiro e Combate à Corrupção, órgão da Polícia Civil, cumpriu um mandado de sequestro de bens em um haras de Tandera em Seropédica, avaliado em R$ 800 mil.
A propriedade estava em nome de Fabio de Souza Lima, apontado pela polícia como o responsável pela lavagem de dinheiro do grupo. No local, os agentes ainda encontraram 12 cavalos da raça Mangalarga.
Franquias rentáveis
Só neste ano, a Polícia Civil confiscou mais de R$ 25 milhões em bens da milícia — 44% desse valor foi apreendido em ações contra o miliciano Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão de Ecko, apontado como o responsável pelas finanças do grupo.
Para a divisão de combate à lavagem de dinheiro, a expansão dos paramilitares para a Baixada aumentou consideravelmente o potencial de enriquecimento ilícito da quadrilha.
A Baixada Fluminense é bem mais rentável, pela ampliação territorial e pela quantidade de comércios. É uma fonte quase que inesgotável de renda
Delegado Thiago Neves, da Polícia Civil
Delegado Thiago Neves, da Polícia Civil
Além da extorsão de comerciantes e a prestação do serviço de agiotagem, o grupo explora o sinal de TV clandestino, transporte alternativo, o fornecimento de gás e de água. A polícia também investiga serviços lícitos em empresas de gás e de terraplenagem para lavar dinheiro na região.
Contudo, a ação em condomínios do programa habitacional "Minha Casa Minha Vida', do governo federal, se tornou uma das mais rentáveis fontes de renda da milícia nos últimos anos.
Segundo estimativa feita por investigadores, há mais de 10 mil unidades habitacionais que passaram a ser exploradas com a expansão da milícia para a Baixada. "Eles imaginam ser o governo daquela região e exploram o que querem ali. Isso também faz com que a violência aumente", analisa a delegada Patrícia Costa Araújo de Alemany, diretora da unidade que investiga lavagem de dinheiro e corrupção.
Arsenal de 400 fuzis garante proteção
Na noite de 23 de novembro, cerca de 40 traficantes do Comando Vermelho tentaram retomar o território perdido nas comunidades Grão Pará e Conjunto Marinha, em Nova Iguaçu. Foram expulsos com facilidade pela milícia, segundo informações da Polícia Civil.
De acordo com o MP-RJ, os paramilitares possuem um arsenal de cerca de 400 fuzis na zona oeste do Rio, o QG da milícia. Com acesso pela rodovia, o grupo consegue deslocar milicianos fortemente armados rapidamente para a Baixada, neutralizando essas ações.
A milícia criou um cinturão de segurança, que liga a zona oeste do Rio aos municípios da Baixada
Delegado André Neves, da 56ª DPAliança com o tráfico
Uma mudança gradual de perfil da "Firma" foi determinante para a expansão territorial do grupo.
A prisão do ex-PM Toni Angelo de Souza Aguiar, então chefe da milícia, capturado em julho de 2013 após ser baleado no rosto em uma briga em um bar na zona oeste do Rio, determinou a ascensão de um miliciano ligado ao tráfico.
Carlos Alexandre Braga, conhecido como Carlinhos Três Pontes, passou a chefiar o grupo paramilitar e a costurar uma aliança com traficantes, dando início à expansão para a Baixada há três anos, segundo investigações.
Ele morreu em uma operação organizada pelo DGPE (Departamento Geral de Polícia Especializada), em abril de 2017. Mas a parceria não perdeu força.
O bonde do Ecko
Carlinhos foi substituído no grupo pelo seu irmão, Wellington da Silva Braga, conhecido como Ecko. De acordo com fontes ligadas à Polícia Civil e ao MP-RJ, ex-policiais estavam na linha de sucessão do grupo, mas acabaram sendo executados por Ecko.
No poder, ele intensificou a expansão de território do grupo há pelo menos um ano e impôs a sua marca, fortalecendo a aliança com traficantes do TCP (Terceiro Comando Puro), rivais do Comando Vermelho.
Depois de tomar o território do CV na zona oeste do Rio, a milícia avançou rapidamente para a Baixada, abrindo "franquias" em parcerias articuladas por Tandera com grupos locais.
O Departamento Geral de Polícia da Baixada (DGPB), responsável pela gestão de 19 delegacias na região, percebeu a gravidade da situação e priorizou investigações contra a milícia. Só neste ano, a Polícia Civil prendeu 107 pessoas acusadas de integrar a milícia na área.
"Começamos a identificar áreas com muito homicídio. E são regiões dominadas pela milícia, que mata muito. Uma das nossas diretrizes é combater essas organizações criminosas para reduzir os homicídios na Baixada", explica o delegado Felipe Curi, diretor do departamento.
Com a estratégia de fazer o monitoramento de rodovias para dominar áreas distantes do Rio, o temor das autoridades é de que a milícia se espalhe por todo o estado, em locais onde há menos policiamento. E mais impunidade
Publicado em 8 de dezembro de 2019
Direção de arte: Elias Fernandes; Edição: Marco Britto; Ilustrações: Medo e Demência; Reportagem: Herculano Barreto Filho
Maior milícia do país, "A Firma" monitorou e dominou tráfico para instalar "franquias" em cidades próximas ao Rio
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