Quando um ex-procurador-geral da República, em entrevista para o lançamento de seu livro de memórias, conta, como se narrasse ter acordado um belo dia e tomado chá em vez de café, que entrou armado no Supremo Tribunal Federal com a intenção de dar um tiro na cara de um ministro da corte e se matar em seguida, mas foi contido pela "mão invisível do bom senso", uma espécie de súmula vinculante passa a reger a ordem no andar de baixo.
Súmula vinculante é a interpretação majoritária de um tribunal superior a respeito de um tema específico. Uma vez publicada, passa a nortear as discussões em todas as cortes inferiores para agilizar os julgamentos. É a regra, em outras palavras, que orienta tudo o que está abaixo: aqui as coisas são assim e assim devem ser seguidas a partir deste e daquele entendimento.
Desde crianças ouvimos que o exemplo vem de cima. Se o pai trata o atendente do posto a pontapés, não é razoável supor que seus filhos usarão data venia em seus conflitos pela bola dos vizinhos. Se o diretor da escola aparece para trabalhar de sunga, não tem como cobrar dos alunos que aceitem regras sobre o uniforme. Se o deputado diz que prefere um filho morto a um filho homossexual, o tio homofóbico está automaticamente autorizado a praticar todo tipo de suplício ao sobrinho com orientação divergente. Se o candidato a presidente diz em campanha que vai varrer os opositores do mapa, o tiozinho do bar está autorizado a assassinar quem pensa diferente na mesa ao lado.
Desvirtuando Dostoiévski, é como se uma lei subterrânea imperasse entre os mortais: se a lei não existe, tudo é permitido. A história política do Brasil mostra que a violência no andar de cima é uma regra, não exceção.
A nossa tem jurisprudência, e o efeito cascata não é só presumível no país que aboliu suas metáforas desde o mar de lama em Mariana e a zica, literalmente, viralizou.
O Brasil é o país da literalidade, e se um procurador-geral diz numa sexta que tentou matar um juiz, nada deveria espantar menos do que saber, na quinta-feira da semana seguinte, que um procurador tentou matar um juiz.
Foi o que aconteceu na quinta-feira, dia 3, quando um procurador da Fazenda Nacional foi preso em flagrante pela Polícia Federal sob a suspeita de tentar matar uma juíza na sede do Tribunal Federal da 3ª Região, em plena Avenida Paulista. Mudam os personagens, segue-se o figurino.
Segundo o site Conjur (Consultor Jurídico), a juíza Louise Filgueiras teve seu gabinete invadido pelo procurador Matheus Carneiro Assunção, que desferiu contra ela uma facada no pescoço, perto da jugular. Ela estava no local para substituir um colega de férias. A magistrada, segundo a assessoria do TRF-3, passa bem. (E se ele estivesse armado?, pergunta o leitor atento. Pois é).
Segundo funcionários que testemunharam a cena, o agressor parecia estar em surto psicótico. Gritava que estava ali para "acabar com a corrupção" e para fazer o que "o Janot deixou de fazer".
Como em outros casos, o "surto", ou a raiva, foi a fagulha sobre o barril de pólvora do ódio, alimentado diariamente por discursos, manifestações públicas e outras súmulas vinculantes de quem, de cima, já abriu mão de qualquer equilíbrio.
Em nota, associações que representam juízes federais afirmaram que o "momento político em que vivemos, com a interdição do diálogo e a polarização ideológica, contribui para o acirramento dos ânimos e para o desrespeito crescente às instituições".
É o salve-se quem puder.
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