Decisão do secretário de Segurança Pública de São Paulo dificulta abertura de investigações de abusos
Sem alarde, sem comunicado à imprensa e sem divulgação no Diário Oficial, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo mudou as regras sobre o afastamento de policiais suspeitos de cometer crimes. Um boletim interno ao qual a piauí teve acesso acabou com o poder dos comandantes regionais de afastar e pedir investigação contra militares envolvidos em ocorrências graves. Agora, caso um policial seja suspeito de agressão, corrupção ou adulteração da cena de um crime, por exemplo, só quem poderá tirá-lo das ruas será o subcomandante da PM, José Augusto Coutinho. Ele é um dos principais homens de confiança do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite. A nova regra, publicada em 18 de junho, vale para policiais em serviço e de folga.
O boletim é intitulado Rotina para o Afastamento do Serviço Operacional de PM Envolvido em Ocorrência de Gravidade. Ele diz: “Todo o Comando de Policiamento, Territorial ou Especializado que entender necessário afastar o policial militar do serviço operacional por motivo de envolvimento em ocorrência de gravidade ou em fatos atentatórios às instituições, ao Estado, aos direitos humanos fundamentais, bem como de natureza desonrosa, deverá propor tal medida ao Subcmt PM, via Corregedoria.” O contato deve ser feito por e-mail.
A nova regra determina que, ao pedir o afastamento de um policial, os comandantes da PM devem enviar “a cópia de documentos que corroborem a motivação informada”. Isto é, devem apresentar provas ou indícios que justifiquem a medida. Trata-se de uma novidade: até então, se um policial fosse suspeito de cometer um ato ilícito, os comandantes poderiam afastá-lo imediatamente das ruas. Normalmente, o PM seria realocado para uma função administrativa, ou até mesmo para outro batalhão, impedido de fazer policiamento até que a investigação fosse concluída.
O poder decisório, agora, ficará concentrado em Coutinho, número 2 da Polícia Militar. Ele foi instrutor de Derrite na academia militar e depois foi seu comandante na Rota, a tropa de elite da PM de São Paulo. Desde então, são bons amigos. Coutinho assumiu o posto de subcomandante em fevereiro. Naquele mês, Derrite promoveu uma mudança radical no comando da tropa: afastou 34 coronéis, sem aviso prévio. Entre os afastados estava Edson Luís Simeira, corregedor da Polícia Militar. Dias antes, Derrite havia perdoado cerca de cinquenta policiais militares que estavam afastados do serviço de rua por terem matado demais. Eles retornaram ao policiamento, numa afronta às investigações da Corregedoria.
“Essa nova mudança é muito grave, mostra o secretário [Derrite] incidindo de forma política dentro da polícia”, diz Cláudio Aparecido da Silva, ouvidor da PM do estado de São Paulo. “Vai ao encontro do que ele falou desde o início, de ser contra afastar policiais envolvidos em letalidades.” Além de perdoar cinquenta PMs, Derrite cancelou a punição contra quinze agentes da Rota que também estavam afastados do serviço devido à alta letalidade.
O secretário nunca escondeu o que pensa sobre investigações contra policiais. Ele reclama que o afastamento pune quem “tira bandido de circulação” – comportamento que, do seu ponto de vista, deve ser estimulado, não punido. A piauí revelou, em maio, que o próprio Derrite foi investigado por dezesseis homicídios em operações policiais. Ele participou de um episódio que ficou conhecido como Caso Barracuda – uma matança promovida pela PM na Zona Leste de São Paulo, em 2012. Cinco policiais foram presos, acusados de tortura e homicídio. Derrite, um dos investigados, chegou a ficar recolhido dentro da Corregedoria.
Hoje, como secretário, ele faz o que pode para proteger os colegas que passam pela mesma situação. Em janeiro de 2023, assim que foi empossado pelo governador Tarcísio de Freitas, Derrite foi a público defender uma ação de soldados da Rota que resultou em 28 disparos, dois mortos e uma arma plantada. O episódio ocorreu na Rua da Consolação, em plena região central de São Paulo.
Para substituir Simeira na Corregedoria, Derrite nomeou Fabio Sérgio do Amaral, ex-comandante do Rota conhecido por ser linha dura. Os dois também são amigos há anos. Sob a gestão de Amaral, a PM afastou alguns dos militares responsáveis por investigações internas. Ele é indiscreto em suas posições políticas. No último final de semana, publicou no status do WhatsApp uma foto do pré-candidato a prefeito de São Paulo Guilherme Boulos (Psol) acompanhada da legenda: “Ele não.” Em outra publicação, comemorou o fato de que o X, antigo Twitter, havia suspendido a conta do jornal O Globo. “Grande dia para a verdade!”, escreveu Amaral. Mas era fake news: o jornal nunca teve a conta suspensa.
Uma diretriz publicada em 2021 pela PM de São Paulo afirma que “é vedado ao policial militar (da ativa, agregado ou veterano), por meio de contas pessoais em mídias sociais e aplicativos mensageiros, a criação, edição, postagem ou compartilhamento de conteúdos que se relacionem, direta ou indiretamente, com a Polícia Militar”. Também são proibidos comentários “depreciativos a outros órgãos públicos, autoridades e demais militares do Estado”, assim como o compartilhamento de “informações ou dados não comprovados ou inverídicos (fake news)”.
A piauí perguntou à Secretaria de Segurança Pública se as normas de conduta resultarão, portanto, em punição a Amaral. Não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Anova regra das investigações foi mal recebida por especialistas em segurança pública. “É um equívoco organizacional”, opina José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva e ex-coordenador de Análise e Planejamento da Secretaria da Segurança Pública. “Certas falhas graves devem ficar sob responsabilidade dos comandantes regionais, que foram desautorizados. A alta cúpula deveria cuidar de questões administrativas e operacionais, não de casos individualizados.”
A exigência de provas documentais para embasar o afastamento de PMs, além disso, pode servir de barreira às investigações. Em muitos casos, é difícil obter indícios preliminares contra policiais suspeitos de crimes. “Essa medida é mais um passo rumo ao desmonte das regras para conter e investigar a violência policial”, lamenta Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “Há uma fragilização do controle da polícia que havia sido construído nas gestões anteriores, com a comissão de mitigação de risco e a instalação de câmeras nos uniformes. Tudo está sendo desconstruído com velocidade.”
Em nota enviada à piauí, a Secretaria de Segurança Pública classificou o desmonte da Corregedoria como um processo de aperfeiçoamento administrativo. Afirmou que a nova regra “busca justamente padronizar os critérios para o afastamento de policiais e aprimorar o controle por parte da Corregedoria”. Além disso, diz a nota, a determinação da Secretaria de Segurança “mantém a autonomia dos comandos locais para indicar o afastamento” de policiais. Tudo com o objetivo de tornar o processo de investigação “ainda mais justo, transparente e eficaz”.
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