Idosa vivia num anonimato forçado por questões de segurança. O seu desejo de Joana da Paz, há anos, era ter o reconhecimento público por ter colocado policiais e traficantes na prisão. Suas filmagens ganharam o mundo
Joana Zeferino da Paz em 2006, com sua câmera (Imagem: Fábio Gusmão)
TRÁFICO DE DROGAS
Fábio Gusmão, Extra
Na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, 22 de fevereiro de 2023,
às 17h42, no Hospital Geral do Estado, na cidade de Salvador, morreu Dona
Vitória. Nesse mesmo dia e local, nasceu publicamente a alagoana Joana Zeferino
da Paz, aos 97 anos, que agora tem a sua identidade revelada após quase 17
anos. Ela vivia num anonimato forçado por questões de segurança. O seu desejo,
há anos, era ter o reconhecimento público por combater o tráfico de drogas da
Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, usando apenas
uma câmera de filmar.
Forjada em coragem, Joana da Paz (como é bom escrever sem
medo…) se irritava por ser obrigada a viver escondida. Queria o merecido
crédito de quem abdicou de uma vida construída com muito esforço, enfrentando a
violência desde criança. Joana foi rebatizada em 24 de agosto de 2005, dia em
que o Extra publicou um caderno especial com a reportagem revelando o que ela
tinha feito durante anos: um diário em vídeo da rotina de um ponto de venda de
drogas na Ladeira dos Tabajaras. Nesse mesmo dia, Joana deixou o imóvel onde viveu
por 36 anos para ingressar no Programa de Proteção à Testemunha. Era o começo
de uma vida de privações, angústia, desapego e resiliência.
Me deparei com a história de Joana da Paz em março de 2004,
ao passar pela Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil (Cinpol) do
Estado do Rio de Janeiro, onde buscava alguma notícia exclusiva para publicar
na edição de domingo do jornal. Um policial, o hoje comissário Aurílio
Nascimento, me chamou e contou que uma senhora de cerca de 80 anos acabara de
passar pela Coordenadoria, onde deixou uma sacola com oito fitas VHS, mídia que
antecedeu o CD e DVD, com filmagens de traficantes em atividade.
Pedi para assistir na hora. As imagens de homens armados e bandidos vendendo drogas não chegavam a ser surpreendentes. O Rio já tinha revelado guerras de quadrilhas usando fuzis, granadas e balas traçantes, mas valiam a pena para uma reportagem sobre aquele grupo criminoso. Nesse dia, o volume da TV estava baixo, então nada se ouvia. Um erro, que poderia ter interferido na minha avaliação sobre a história.
Madrugada sem dormir
Saí da Cinpol sem as fitas, pois precisava da autorização da então chefe do setor, Marina Maggessi, que estava fazendo um curso fora do estado. Esperei pacientemente por duas semanas, até conseguir convencê-la a me entregar o material. Levei para casa após um dia de trabalho. Tomei banho, esquentei a comida para jantar, liguei a TV e o videocassete e coloquei a primeira fita. E o que comecei a ouvir enquanto comia veio como um tapa na cara. Jamais vou esquecer desse momento em que me deparei com a história da minha vida. Larguei a comida, chamei todos em casa, mulher, filhos… Queria compartilhar o relato de Joana da Paz, que pedia socorro ao ver criminosos desfilando armados em frente à janela de seu apartamento, que ficava de fundos para a Ladeira dos Tabajaras. Passei a madrugada sem dormir, editando palavras, marcando cada minuto das gravações com frases importantes, além das cenas que ela registrava.
Levei a história para o jornal no dia seguinte, com a mesma euforia e com o cansaço sendo vencido pela vontade de contar essa história. Mas ainda era cedo. E como vocês vão entender, essa é uma história de idas e vindas, com a vida mostrando para nós que tudo tem o tempo certo de acontecer. Foram meses de negociação com Marina Maggessi até conseguir ser apresentado a Joana. A policial queria investigar os criminosos
O que ninguém sabia é que eu já tinha começado a fazer uma busca sobre o tráfico local. Fiz o mesmo com ela. Dentro da sacola com as fitas havia um panfleto de propaganda de massoterapia. Joana era massoterapeuta formada pela Policlínica Geral do Rio de Janeiro, e tinha alguns clientes de décadas. Foi com o nome dela e o número de telefone que descobri uma ação dela na Justiça contra o Estado, na qual cobrava indenização pela desvalorização de seu imóvel. Cansada de esperar pela ação das autoridades, ela decidiu que o processo poderia ser uma eficiente arma.
E foi justamente a ação o estopim para o início das filmagens, em 2003. Após ler a resposta de um coronel da PM dentro do processo, Joana decidiu provar com imagens o que denunciava. O oficial falara na ação que ela mentia, já que o batalhão da região sempre combateu a quadrilha local. Joana da Paz foi até uma loja, a Tele-Rio de Copacabana, e comprou uma câmera de filmar Panasonic, parcelada em 12 vezes, e algumas fitas.
Joana chegou em casa, montou uma base para a câmera, feita com uma mesinha, livros e listas telefônicas, encontrou um bom ângulo e passou a filmar. As primeiras imagens mostram a adaptação dela ao equipamento. O que se viu nos dias seguintes, semanas, meses e anos era estarrecedor. E foi isso que assisti no sofá de casa.
Um perigo real
Após conhecê-la pessoalmente, marquei com Joana em seu apartamento. Ela morava no prédio da Praça Vereador Rocha Leão, 110, 8º andar, Copacabana, onde entrei pela primeira vez me passando por um sobrinho distante. Cheguei ao local usando um carro sem a marca do jornal, sem crachá e com uma história para contar. Ao entrar no apartamento, fiquei surpreso com a proximidade com o ponto de venda de drogas: cerca de 150 metros de distância, no máximo. Um perigo real para ela, que por vezes, como mostrava os próprios vídeos gravados por Joana, perdia a cabeça e gritava com eles. Por sorte, segundo acreditava, a achavam louca.
Começava ali uma série de encontros regados a cafezinho, biscoito recheado, cream cracker e amendoim apimentado durante várias tardes. Eram os momentos de conversa, ouvir a história de sua vida sofrida, vê-la filmando e vibrando a cada nova cena inédita que captava. Foi numa dessas tardes que me surpreendi quando ela contou os estupros que sofreu de um fazendeiro de Alagoas, o que resultou numa gravidez precoce. Casado, lembrou Joana, ele a obrigou a deixar a cidade onde morava, Quebrangulo, em Alagoas, e a enviou para Maceió. Sozinha, após peregrinar por meses, voltou para casa da mãe e denunciou o estuprador. Joana teve um filho, que perdeu por uma doença cardíaca antes de completar 1 ano.
Impasse
Os meses foram passando até chegarmos a um impasse. Joana da Paz insistia em denunciar o tráfico mostrando o seu rosto, revelando a sua identidade, o que jamais foi aceito pelo Extra. A condição de sempre foi a de publicar a reportagem com a premissa de ela deixar o apartamento e se mudar para um local seguro. Como a negociação não avançou, em novembro de 2004 nós decidimos dar um tempo e esperar ela amadurecer a ideia. Era a melhor saída, já que ela começou a ficar irritada por não publicarmos a denúncia. Esse afastamento causou angústia. Meu pavor era abrir o site um dia e ver a notícia sobre traficantes fazendo algo com ela. Isso era uma possibilidade real.
Esperamos até março de 2005, quando fizemos uma reunião
interna da redação e decidimos procurá-la novamente com a proposta de levar o
caso à Secretaria de Segurança Pública. Liguei para ela que, surpresa, disse
que eu tinha sumido. Mas surpreso fiquei eu, quando falei sobre a proposta de
envolver a secretaria e ela aceitou prontamente. Nessa mesma proposta, a
intenção de colocá-la no Programa de Proteção à Testemunha. Ela considerou essa
possibilidade prontamente, o que nunca tinha ocorrido até então.
As negociações avançaram, a polícia passou a investigar o conteúdo das imagens e as usou para convencer a Justiça a conceder autorização judicial para monitorar os celulares dos traficantes da Ladeira dos Tabajaras. De posse do mandado, as escutas telefônicas começaram a render mais provas contra os bandidos. Após meses de investigação, a polícia conseguiu mandados de prisão para mais de 30 criminosos.
Policiais são presos e a história ganha o mundo
Em dezembro de 2005, Joana da Paz foi uma das vencedoras da
14ª edição do Prêmio PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) de
Cidadania, uma das mais tradicionais premiações de responsabilidade social do
país. Em março, foi novamente homenageada com o prêmio Faz Diferença, do Globo,
como personalidade de 2005 do Rio de Janeiro. Mesmo de longe, ela arrumou um
jeito de agradecer. Em uma mensagem gravada, Joana afirmou ter agido como
qualquer ser humano, e não como heroína.
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