Presidente de sindicato, policial é filmado agredindo e ameaçando mulher: ‘Da próxima vez, você não vai ter chance’
26/09/2019 às 17:05
Com Débora Anunciação
O presidente do Sindep-MG (Sindicato dos Escrivães de Polícia do Estado de Minas Gerais), Bertone Tristão, foi indiciado por vias de fato e ameaça pela Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher após ser flagrado agredindo e ameaçando uma outra policial, com quem já teve um relacionamento. Os ataques – físico e verbal – ocorreram na sede da entidade, no bairro Bonfim, na região Noroeste de Belo Horizonte, no dia 22 de agosto, e vieram à tona nos últimos dias após a divulgação de imagens da briga.
A mulher agredida é diretora de Comunicação do mesmo Sindep-MG e tem dois filhos com Tristão. As imagens gravadas pelo circuito de segurança do sindicato mostram o atual presidente da entidade, que também está sendo investigado pela Corregedoria da Polícia Civil, fazendo diversas ameaças à mulher. “Eu ia dar uma porrada na sua cara. Estou ficando de saco cheio. Ou você coloca sua violinha no saco ou vamos ter problema”, afirma, antes de partir pra cima da policial.
Tristão joga a cadeira no chão, dá tapas na mesa e precisa ser contido por um outro policial, que acompanhou a cena. “Eu demorei a tomar uma atitude dessas com você. Você deu sorte. Você deu sorte porque ele está aqui hoje. Você deu sorte, pode ter certeza. Você deu sorte porque eu não sou falso, você me conhece, eu tenho disposição”, diz, após empurrar a policial em duas oportunidades, se referindo ao colega que o segurou.
“Vou te passar, estou te avisando. Da próxima vez, você não vai ter chance, não. Eu faço uma merda aqui”, afirma em outro momento, antes de fazer novas ameaças. “Acho melhor você pegar suas coisas e sair. Ou eu ou você aqui dentro. Sabe por quê? Não estou conseguindo conviver com você aqui dentro. Vamos começar a ter problema e uma hora vou fazer uma bobagem aqui dentro. Estou te avisando”, conclui.
Com o intuito de preservar a identidade da vítima, o BHAZ decidiu distorcer as vozes nos trechos do vídeo em que a mulher se manifesta:
Contexto
A cena ocorreu logo após a diretora do Sindep-MG afirmar que pretendia concorrer à presidência do sindicato em novembro, quando novas eleições serão realizadas. Tristão é o presidente da entidade desde 2015. Procurados pelo BHAZ, ambos concordam que sempre tiveram um relacionamento conturbado. A mulher, que terá sua identidade preservada, alega que o homem “não aceitou” os dois filhos. “Nossa relação nunca foi estável, sempre instável”.
Apesar da tensão, com discussões sobre pagamento de pensão, segundo a policial, nunca tinha ocorrido um episódio de violência até julho de 2018. “Já estava grávida do filho mais novo, e ele queria passear com o mais velho, já nascido. Eu permitia sempre, apesar de não ter nada regulamentado na Justiça. Um dia ele enlouqueceu e começou a me agredir, puxou meu cabelo, querendo que eu autorizasse. Ele me ameaçou de morte, ele tem duas armas. Tirou uma das armas que estava no carro e disse que não queria ver uma tragédia”, relata a mulher.
Após esse episódio, a policial registrou uma ocorrência, teve uma medida protetiva expedida ao seu favor e alega ter rompido qualquer tipo de relacionamento com Tristão. “Ela fala que foi agressão, mas não teve prova nem testemunha”, diz o presidente do sindicato sobre o ocorrido em 2018. Foi expedida pela Justiça uma medida protetiva proibindo aproximação a menos de 200m e de qualquer tipo de contato.
No início deste ano, a própria policial pediu a revogação da medida protetiva porque tinha acabado de ter o segundo filho dele – e queria permitir que Tristão pudesse visitar o recém-nascido. Além disso, ambos trabalham no Sindep-MG e, na época, as agressões tinham sido suspensas.
‘Medo’
“Tenho muito receio da minha integridade física e da dos meus filhos. Um homem que faz isso comigo, não sei o que ele pode fazer com meus filhos”, afirma a mulher ao BHAZ. Procurado pela reportagem, o policial civil desdenhou que a policial pudesse concorrer à presidência do sindicato. “Ela não consegue inscrever uma chapa com três pessoas. Não é uma pessoa benquista na Polícia Civil porque ela pôs uma mancha em um delegado que foi chefe de polícia. Ela tem mania de gravar as pessoas, ela é jornalista, né, igual vocês, tem o hábito de gravar as pessoas”, afirmou.
Tristão alegou ainda que a policial perseguia mulheres com que ele já teve envolvimento. “Ela é extremamente problemática, na Polícia Civil não tem porte de arma, vasto prontuário psiquiátrico na Polícia Civil e é injusta essa repercussão que está sendo dada”. A mulher nega as informações. Procurada, a assessoria da corporação afirmou que não se manifestaria se a alegação do presidente sindical é verdadeira ou não.
Por telefone, além de afirmar que entraria com requerimento para impedir a publicação desta reportagem, Tristão alegou que queria se encontrar com a reportagem para apresentar supostos laudos sobre a saúde mental da mulher. “Se você quiser fazer um jornalismo responsável, de normas técnicas, padrões adequados, poderia pelo menos avaliar a documentação”, afirmou em um trecho das entrevistas.
O BHAZ marcou, no dia 6 de setembro, um encontro em um estabelecimento na rua da Bahia, na região Central de Belo Horizonte. A reportagem ligou minutos antes para confirmar a reunião, e recebeu retorno positivo de Tristão. No entanto, quando chegou ao local, o presidente sindical não estava no espaço e não atendeu mais as ligações nem respondeu as mensagens enviadas.
Exatos 28 minutos após o horário marcado, Tristão mandou mensagens pelo WhatsApp afirmando que teria voltado ao sindicato após ter esperado o “tempo que você me pediu”. No entanto, não foi pedido tempo algum pela reportagem e o policial não foi visto por ninguém do estabelecimento comercial.
O BHAZ ainda fez mais um contato no mesmo dia, para conferir se o presidente do Sindep-MG desejava remarcar o encontro após a desistência, mas Tristão ameaçou a reportagem e desligou a ligação.
Com o objetivo de garantir a proteção da equipe do portal, a direção do BHAZ decidiu comunicar o ocorrido e enviar as gravações telefônicas dos contatos mantidos com o presidente do sindicato ao Ministério Publico de Minas Gerais, à Ouvidoria de Polícia e à Corregedoria da Polícia Civil.
Violência contra mulher
“A situação é muito clara: uma mulher que conversa e um homem que agride. Em momento algum você vê a mulher praticando alguma forma de violência contra ele para que ele pudesse dizer que seria uma legítima defesa contra ele”, afirma, ao analisar o vídeo, a advogada criminalista e integrante do corpo jurídico da Casa de Referência da Mulher Tina Martins, Kelly Gonçalves Primo.
O BHAZ procurou especialistas para comentar sobre o tema. “A mulher está amedrontada, com seus movimentos controlados, e o homem empurra mais de uma vez, coloca dedo na cara, a intimida com seu próprio corpo, joga a cadeira no chão, vai atrás dela… Ele tem que ser contido por outro homem. Claramente uma violência física”, complementa a estudiosa.
“A gente tem que entender que violência física não é uma lesão permanente, não é necessariamente ter que levar um chute, um murro, ficar com a cara roxa. Violência física é o outro constranger meu corpo com seu próprio corpo sem que eu permitisse”, analisa Kelly Primo. “Na hora em que empurra alguém, que intimida alguém com seu próprio corpo, na hora que coloca dedo na cara claramente são formas de intimidação com o próprio corpo que se usa. Um corpo intimidando o outro, constrangendo o outro – isso tudo é violência física”.
“Temos estudos e estatísticas que comprovam que há um crescimento de violência familiar no Brasil e, em especial, em Minas. Apesar do avanço comprovado, ainda não temos dados sociológicos que apontam os motivos. Mas temos a suposição de que é a nova mulher, o novo perfil da mulher, voltada para o mercado de trabalho, empoderada, que ocupa cargos de liderança”, analisa a conselheira seccional da OAB Minas, Camila Félix, também professora de Direito Penal e advogada.
Camila Félix explica que existem cinco tipos de violência contra a mulher, todas contempladas pela Lei Maria da Penha: física, psíquica, moral, sexual e patrimonial. “É importante deixar claro que a Maria da Penha dá mais severidade às leis já previstas pelo Código Penal, não prevê crime. Se é lesão corporal, dá mais severidade à pena prevista por lesão. Mesma coisa com crime sexual, homicídio etc”, complementa.
A advogada Kelly Primo explica que há uma escalada da violência: começa com a psicológica, passa para moral até chegar à física. “A violência moral fica caracterizada porque essa mulher é agredida num ambiente profissional, onde ela está exercendo uma função. Além do agressor ser o chefe dela, você vê o nome da instituição, na frente de terceiros, é uma violência moral também porque afeta a percepção que a sociedade tem da mulher, gera um mal-estar social no âmbito dos contatos sociais, profissionais, familiares dessa mulher”, afirma.
“Se houve essa situação de violência em frente à mesa do sindicato, com todos os símbolos institucionais do sindicato, com uma câmera filmando, o que não acontece quando um casal está entre quatro paredes e não tem ninguém vendo e ouvindo?”, questiona, se referindo ao caso envolvendo Tristão.
“Porque a violência doméstica muitas vezes é uma violência sem vestígios, acontece dentro do seio conjugal. E dentro do domicílio não tem uma câmera, não tem outra pessoa, só está o casal ali. Muitas vezes a gente tem essa dificuldade: é a palavra da vítima mesmo, por isso a palavra da vítima é tão importante. O que acontece dentro da sua casa dificilmente terá uma evidência tão palpável quanto teve no vídeo”, complementa.
“Essa mulher que está num ambiente predominante machista, dispõe um destaque, querendo ser presidente da sindicato, muito provavelmente já era vítima do marido há muito tempo dentro de casa. Isso [a agressão filmada pelo circuito de segurança] foi só o estopim”, comenta Camila Félix.
Ao falar sobre um dos argumentos usados por Bertone, de que a policial possui “vasto prontuário psiquiátrico”, Kelly Primo é enfática: “primeiro, nada justifica a violência. Segundo, se ela tivesse de fato alguma questão de saúde mental, seria motivo para que se tivesse maior compaixão e tolerância com essa pessoa, e não para que essa pessoa fosse vítima de violência”, alega.
Segundo a especialista, “essa é a forma mais comum de desqualificar uma denúncia de violência doméstica”. “A mulher, dentro da linguagem popular, é doida, não sabe o que fala, tem ruptura com a realidade. São diversas formas de patologizar essa mulher que tem a coragem de levar uma denúncia adiante. A outra forma, quando não é atribuir um problema grave de saúde mental, é falar que é passional, que está fazendo a denúncia para se vingar do agressor que não a ama mais”.
‘Dever público’
“Se vocês, da imprensa, têm como comprovar essas agressões, isso está registrado e foi dado a oportunidade do contraditório, é um dever público noticiar”, afirma ao BHAZ o integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do CEDH (Conselho Estadual dos Direitos Humanos), Robson Sávio Reis. “Importante, inclusive, para mostrar para a própria sociedade e instituições públicas que ninguém está acima da lei”, complementa.
Procurada, a assessoria da Polícia Civil não soube informar que fim teve a ocorrência registrada pela policial em julho de 2018. A Corregedoria, através do setor de comunicação, se limita a informar que o procedimento instaurado ainda está em andamento.
Procurado pelo BHAZ, o Sindep-MG afirma que “não compactua com esse tipo de ação ocorrida”, mas descartou afastar Tristão Bertone – atual presidente da entidade. “Informa que diante da gravidade dos fatos, que não podem interferir no trabalho desenvolvido pela entidade, por TODOS os diretores e colaboradores, a diretoria instaurou procedimento administrativo para apuração dos fatos, respeitando a ampla defesa e o contraditório”, diz em trecho da nota (leia na íntegra abaixo).
“Os operadores deveriam ser os primeiros a dar exemplo do cumprimento da lei. Independentemente se a pessoa é um policial, empresário ou político, qualquer pessoa tem que cumprir a lei. Se há violência de gênero, essa pessoa tem que responder pelas agressões”, avalia Reis.
Se condenado por vias de fato e ameaça, Tristão não será detido, segundo a
a advogada criminalista Kelly Gonçalves Pinto. “Somadas, as penas máximas resultam em nove meses. Vias de fato é considerada uma contravenção penal, uma infração com menor potencial ofensivo. Já ameaça chega a ser crime, mas a pena é leve e, pra ficar dentro de uma cela, a pena tem que ser superior a quatro anos. Ele poderá trocar por uma prestação alternativa à sociedade, fazer uma transação penal, um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público…”, explica a especialista.
a advogada criminalista Kelly Gonçalves Pinto. “Somadas, as penas máximas resultam em nove meses. Vias de fato é considerada uma contravenção penal, uma infração com menor potencial ofensivo. Já ameaça chega a ser crime, mas a pena é leve e, pra ficar dentro de uma cela, a pena tem que ser superior a quatro anos. Ele poderá trocar por uma prestação alternativa à sociedade, fazer uma transação penal, um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público…”, explica a especialista.
“Mesmo assim, ele pode ser afastado de suas funções. E ela pode pedir uma indenização, um prejuízo à honra. Pode ajuizar uma ação na esfera cível para obter responsabilidade dele civilmente, que significa no plano material das indenizações, tanto por dano à honra subjetiva – que é o sentimento psíquico, dano moral -, quanto por dano à hona objetiva – que é a questão profissional, como ela foi abalada diante da sociedade,” complementa Kelly Primo.
‘Violência doméstica não tem classe’
“Algumas famílias e classes sociais têm maior vulnerabilidade, porém nesse vídeo vemos que, mesmo aqueles agentes estatais treinados para defender a sociedade, também vivem isso nas questões particulares. Há um imaginário popular que essas pessoas que trabalham atendendo essas situações não estariam submetidas a esse tipo de abuso”, afirma Kelly Primo.
“Na verdade, há os mesmos problemas, e as pessoas mais esclarecidas e mulheres estudadas, vistas pela sociedade como fortes e independentes, também podem ser submetidas ao ciclo de abuso da violência doméstica. Não existe um perfil de uma vítima, a violência pode afetar qualquer mulher “, conclui.
As especialistas ouvidas pelo BHAZ são unânimes ao afirmar que é essencial que a mulher procure ajuda. Na capital mineira, além da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, existem ao menos outras três instituições que atendem esse público: Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher), da Defensoria Pública; Casa Benvinda, da Prefeitura de Belo Horizonte; e Casa de Referência Tina Martins, do chamado terceiro setor, sem vínculo governamental (veja mais informações abaixo).
“É muito importante que a vítima procure o profissional de sua confiança: advogado ou defensoria pública, órgãos de proteção… Para que aquilo não exploda de vez. Vai sofrendo, vai sofrendo ameaça, pressão psicológica, são agredidas moral e psicologicamente dentro de casa. Vai aguentando por causa dos filhos… Na hora que algo explode, pode até mesmo ser fatal”, orienta Camila Félix.
Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher: av. Barbacena, 288, Barro Preto | Telefones: 181 ou 197 ou 190
Casa de Referência Tina Martins: r. Paraíba, 641, Santa Efigênia | 3658-9221
Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher): r. Araguari, 210, 5º Andar, Barro Preto | 2010-3171
Casa Benvinda – Centro de Apoio à Mulher: r. Hermilo Alves, 34, Santa Tereza | 3277-4380
Casa de Referência Tina Martins: r. Paraíba, 641, Santa Efigênia | 3658-9221
Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher): r. Araguari, 210, 5º Andar, Barro Preto | 2010-3171
Casa Benvinda – Centro de Apoio à Mulher: r. Hermilo Alves, 34, Santa Tereza | 3277-4380
Nota do Sindep-MG na íntegra:
“A diretoria DO SINDEP/MG esclarece a todos os Escrivães de Polícia, filiados, demais carreiras da Polícia Civil e à sociedade que:
Tomou conhecimento, por meio de áudio e vídeo, que também se encontram em mídias sociais, do ocorrido no interior da sede da entidade, na quinta-feira, dia 22/08/2019. Esclarece, ainda, que o SINDEP/MG representa a categoria dos Escrivães de Polícia e continuará se esforçando e lutando pelos interesses da categoria, ressaltando que NÃO COMPACTUA com esse tipo de ação ocorrida no sindicato. Para tanto, informa que diante da gravidade dos fatos, que não podem interferir no trabalho desenvolvido pela entidade, por TODOS os diretores e colaboradores, a diretoria instaurou procedimento administrativo para apuração dos fatos, respeitando a ampla defesa e o contraditório. O SINDEP/MG é um sindicato novo que vem atuando de forma efetiva para a garantia dos direitos, notadamente, dos Escrivães de Polícia. A entidade continuará o seu trabalho e conta com a compreensão de todos os filiados e da categoria, frisando que o sindicato não é uma pessoa, mas todos que trabalham no interesse de um bem comum. Vamos permanecer unidos para não perdermos nossa força!”
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