Publicado em09/02/20 03:30
Policiais militares lotados em Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são acusados de forjar flagrantes para incriminar moradores das favelas. O EXTRA teve acesso a processos judiciais em que os réus foram inocentados sob a suspeita de que PMs usaram drogas e armas ‘‘frias’’ para acusar injustamente pessoas detidas. Antes de serem absolvidos, os réus chegaram a ficar presos, apesar de não terem cometido os crimes. Já os PMs que participaram das prisões são investigados, mas seguem trabalhando normalmente.
Um dos casos é o de Matheus Chamarelli, de 24 anos, morador do Caju, na Zona Portuária do Rio. Entre 2016 e 2019, ele foi detido três vezes e passou mais de dois anos preso por crimes que não cometeu. Ao longo desse período, o mesmo grupo de policiais da UPP Caju o prendeu em flagrante duas vezes e, em outras quatro, induziu vítimas a apontá-lo injustamente como o autor dos crimes. À Justiça, Chamarelli relatou que estava sendo vítima de perseguição por uma patrulha que se autointitulava “Bonde do Satanás”. Ele foi inocentado de todas as acusações.
A sequência de detenções começou em maio de 2016, quando Matheus foi preso duas vezes pelo mesmo grupo de PMs. Na primeira, apesar de não portar drogas, os agentes o levaram para a delegacia, e o jovem foi autuado em flagrante pelo crime de associação para o tráfico. No mesmo dia, a juíza Ana Helena Valle determinou a sua soltura: “Não há nos autos nada que justifique a prisão em flagrante”.
Duas semanas depois, Matheus foi detido novamente pelos mesmos PMs junto com um adolescente que estava na garupa de sua motocicleta. Na delegacia, os agentes apresentaram um saco com drogas e afirmaram que estava com Matheus. Em depoimento, o adolescente denunciou que o flagrante havia sido forjado: segundo ele, durante a revista a Matheus, “não havia nada na moto e os policiais tiraram um saco com entorpecente do bolso de um deles e disseram que pertencia aos dois”.
Na audiência de custódia, quatro dias depois, Matheus foi apresentado à mesma magistrada que o havia libertado antes. Após ler o depoimento do menor, Ana Helena determinou, de novo, a libertação do jovem e determinou que a Corregedoria da PM investigasse um dos policiais que o prendeu: “há indícios de que o policial Jardel Augusto Stuart Filho vem utilizando a função pública de forma não compatível com a instituição, havendo indícios, inclusive, de flagrante forjado”.
Vítimas são induzidas
Além das prisões em flagrante, Matheus respondeu a outros quatro processos por roubos no Caju em 2016. Todos os casos têm as mesmas características. As vítimas, após serem assaltadas, procuraram PMs da UPP para comunicar o crime. Os agentes mostraram fotos de Matheus pelo telefone celular e perguntaram se ele era o autor. Na delegacia, as vítimas reconheceram o jovem como sendo o ladrão.
Em pelo menos um caso, o reconhecimento por fotografia se deu dentro da sede da UPP. Em duas ocasiões, as descrições das vítimas sobre o autor do roubo não coincidiam com as características físicas de Matheus. Em três processos, o jovem foi absolvido logo na primeira instância.
Em um quarto, ele foi condenado — mesmo que o ladrão, segundo a vítima, tivesse o cabelo vermelho, diferente de Matheus. Na segunda instância, no entanto, a 6ª Câmara Criminal absolveu Matheus. Em seu voto, o desembargador Luiz Noronha Dantas afirmou que os PMs induziram a vítima a reconhecer o jovem. “O reconhecimento, fotográfico e informal, realizado pela vítima padece de incontornável mácula, por força de maliciosa indução, para se falar o mínimo, e de modo a gerar um falsa memória”, frisou Dantas. Pelo crime, Matheus ficou preso de fevereiro de 2017 até setembro de 2019, quando foi absolvido.
— Meu filho é alvo de perseguição desde 2016, quando os PMs pararam ele e viram que já tinha sido preso. Ele foi preso e condenado por porte de arma, em 2013. Esse crime ele realmente cometeu e cumpriu a pena. Agora, ele só quer seguir a vida. Já teve vários empregos e, hoje, faz entregas por um aplicativo — diz a mãe de Matheus, a servidora municipal Ana Fernandes, de 45 anos.
Há duas semanas, Matheus foi preso novamente pelo homicídio do PM Rostan Honorato, do Bope. Na última quinta-feira, a Justiça determinou a sua soltura, após a Defensoria Pública provar que ele estava trabalhando, fazendo entregas, na hora do crime.
Acusado está até hoje de cama
O mototaxista Gabriel Freires Rodrigues foi atingido na cabeça por um tiro disparado por um PM da UPP Coroa/Fallet/Fogueteiro em Santa Teresa, no Centro do Rio, em 30 de julho de 2017. Até hoje, ele não consegue se mexer ou falar. Em seus primeiros dias no Hospital Souza Aguiar, logo após o episódio, sequer podia receber visitas de parentes: estava sob custódia, acusado de atirar nos policiais com uma pistola.
Os agentes apresentaram a arma na 5ª DP (Mem de Sá) e afirmaram que a encontraram ao lado de Gabriel, já caído no chão. Os agentes não disseram que viram o mototaxista atirar, mas reiteraram que trocaram tiros com traficantes armados ao fim de uma festa em uma casa do bairro.
Testemunhas alegam que a arma foi “plantada”: Gabriel não estava armado e saía da festa quando foi baleado por um PM que perseguia um homem que passava no mesmo local. Somente duas semanas depois, a prisão de Gabriel foi relaxada e parentes foram autorizados a visitá-lo. Após mais dois meses, o processo contra ele foi arquivado. O inquérito aberto para investigar os PMs pela tentativa de homicídio e pelo flagrante forjado está no Ministério Público.
Corregedoria já achou drogas em UPP
Uma operação da Corregedoria da PM encontrou armas ‘‘frias’’ e drogas usadas para forjar flagrantes dentro da base da UPP do Caju, em outubro de 2017. A ação terminou com a prisão do então comandante da unidade, major Alexandre Frugoni.
No gabinete do oficial, foram encontradas uma pistola Glock com a numeração raspada e munição. A equipe ainda localizou drogas escondidas no teto do alojamento da unidade.
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A investigação teve início após o sumiço de um fuzil apreendido com um traficante morto pelos policiais no Morro da Coroa. A arma não foi apresentada na delegacia e um grupo de PMs da UPP Coroa/Fallet/Fogueteiro começou a ser investigado. Meses depois, o grupo — incluindo o major Frugoni — foi transferido para a UPP do Caju. As duas unidades foram extintas em 2018, durante a intervenção federal na segurança do Rio. Atualmente, o major e dez policiais respondem em liberdade por crimes como organização criminosa e latrocínio.
PMs são acusados de forjar flagrantes para incriminar moradores inocentes em favelas
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