Filhos de perseguidos pela ditadura têm voz na Comissão da Verdade
Por Redação Alesp
Durante toda a semana, pessoas que viveram os piores efeitos da ditadura militar, quando ainda eram bebês ou crianças, tiveram um espaço oficial para contar sua história. A Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva promoveu, durante toda a semana, de 6 a 10 de maio, o seminário Verdade e Infância Roubada. Os relatos traumáticos da prisão, tortura, constrangimento e solidão que acompanhou essas pessoas por toda a vida mostram a dimensão perversa do aparato estatal de repressão política.
O filho de Virgílio Gomes da Silva e Ilda Martins da Silva, os filhos do ex-deputado Rubens Paiva, o filho do metalúrgico Devanir Carvalho, a mãe de bebê torturado Darcy Andozia, Lenira Machado que perdeu a guarda do filho, os Grabois e os Telles relataram a experiência de ter familiares militantes presos, os netos exilados de Tercina Dias de Oliveira, os filhos de militantes presos pela ditadura, Tessa de Moura Lacerda, Carmen Nakasu e José Paulo Ramos, o filho de Derlei Catarina de Luca e Nilo César, a neta de Davi Capistrano, a filha de Orlando Momente. o filho de Paulo Fontelles e Hecilda Fontelles Veiga, Carlos Eduardo e Gabriel, filhos do sindicalista José Ibrahim e Clóvis Petit, irmão de militantes do PCdoB desaparecidos e os filhos de Antônio Othon Pires Rolim e Rita Miranda Sipahi Pires.
Todas essas pessoas ofereceram depoimentos à Comissão da Verdade, durante toda a semana, tentando exorcizar um pouco do sofrimento que vivem. Os recorrentes danos psicológicos e problemas com documentação oficial são marcas geracionais indeléveis que tornam as vidas dessas pessoas cobertas por uma sombra de mistério, segredos, constrangimentos, sofrimento e perdas irreparáveis.
SEGUNDA-FEIRA, 6 DE MAIO DE 2013
Cecília Capistrano/Rosana Momente/Paulo Fontelles Filho/Carlos Eduardo e Gabriel/Clóvis e Laura Petit
"O que sofremos é algo invisível. Há uma marca que passa de geração para geração e é difícil entender onde isso me afetou. Não sei como, mas afetou". Dessa forma Cecília Capistrano, neta de Davi Capistrano, militante do PCB e desaparecido em 1974, tentou descrever os efeitos de ter crescido em uma família de militantes políticos presos, torturados e mortos pelo regime militar, no Seminário Verdade e Infância Roubada, realizado dia 6/5 pela Comissão Estadual da Verdade, sob presidência do deputado Adriano Diogo (PT).
Em sua 36ª audiência, a comissão iniciou a reunião com o filme 15 filhos, de autoria de Marta Nehring e Maria Oliveira, com depoimentos colhidos em 1996 de filhos de desaparecidos políticos, alguns dos quais participaram da semana de relatos dedicados a pessoas afetadas na infância pela ditadura militar.
15 Filhos
O documentário retrata o contexto histórico da ditadura militar no Brasil por meio dos filhos de militantes mortos, presos ou desaparecidos, que relatam suas memórias de infância. O documentário é de autoria de Maria Oliveira, que, com apenas um ano de idade foi, presa com sua mãe na Oban; e de Marta Nehring, que morou em Cuba enquanto seu pai treinava para a guerrilha. Ambas depõem no documentário,
Em um dos depoimentos, uma filha afirma que não soube os nomes dos pais por anos, apenas sabia que eram pai e mãe. Em outro relato, o depoente elucida que para ele o resumo de tudo o que acontecia era baseado em um governo ditatorial que entrava nas casas das pessoas e matava todo mundo. Duas irmãs contam que um homem chegou, colocou a arma na cabeça do pai delas e atirou. Já a mãe, quando voltou para casa, estava irreconhecível devido à deformação por conta do espancamento.
Com o intuito de mostrar a ditadura por um ângulo diferente, o documentário 15 Filhos foi filmado em preto e branco e retrata com emoção a história de cada filho, Durante o documentário, os filhos demonstram que quando a inocência de criança é roubada, as consequências que ficam são duradouras.
O documentário está disponível no canal do You Tube no link: http://www.youtube.com/watch?v=u-Lwh9u7ojI
Mães heroínas
Neta de Davi Capistrano (cuja história já foi relatada na comissão), Cecília Capistrano focou seu depoimento na história de sua mãe, Maria Cristina, filha de Davi, que, como o pai, militava no PCB e esteve presa no DOI-Codi. Cecília contou que participou de vários movimentos com sua mãe, incluindo reuniões sobre desaparecidos políticos e anistia, e que hoje atua na comunicação on-line do deputado Rui Falcão (PT). "Vejo-me muito mais como ouvinte do que como atuante", revelou, afirmando que ainda tem muita dificuldade de compreender tudo o que aconteceu.
As dificuldades enfrentadas pela mãe após o desaparecimento do marido, também foram enfatizadas por Rosana Momente, filha de Orlando Momente, militante do PCdoB e desaparecido em 1973. Rosana contou que só soube a verdade sobre seu pai aos 15 anos. Ele entrou na clandestinidade em 1963, um ano após seu nascimento. Sua mãe, com dificuldades financeiras, precisou trabalhar como empregada doméstica, sendo obrigada a colocar a filha em um internato. "A vida no internado é muito solitária. Aprendi o que é depressão na infância", concluiu.
Filho de Paulo Fontelles e Hecilda Fontelles Veiga, Paulo Fontelles Filho, nascido na prisão, relatou o que sua mãe, grávida, sofreu ao ser presa. Foi levada à Polícia Federal onde, diante de sua recusa em dar informações a respeito do marido, ouviu, sob socos e pontapés, que "filho dessa raça não deve nascer". No dia de seu nascimento, Hecilda foi levada ao hospital onde o médico induziu o parto e fez o corte sem anestesia. "Presto aqui minha homenagem a essa guerreira que nunca se deixou dobrar", disse Paulo. Leia o depoimento completo de Paulo, aqui
Revisão da Lei da Anistia
O Seminário Verdade e Infância Roubada prosseguiu na tarde da segunda-feira. Ao apresentar Carlos Eduardo e Gabriel, filhos do sindicalista José Ibrahim, o presidente da comissão, Adriano Diogo (PT), lamentou sua morte, ocorrida no último dia 2/5, em Osasco.
Carlos Eduardo falou sobre a trajetória política de José Ibrahim, que em 1968, à frente do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos, liderou a greve de Osasco, um dos primeiros movimentos de resistência à ditadura militar. Ele foi um dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969.
Segundo Carlos Eduardo, após a troca, José Ibrahim foi para o Chile, onde conheceu Tereza Cristina Denucci Martins, guerrilheira militante do MR-8 (falecida em 2011) que lá também estava refugiada. O casal fugiu no país andino em 1973, quando houve o golpe de Augusto Pinochet, indo para o Panamá, onde Carlos nasceu. Quando ele estava com 40 dias de vida, a família conseguiu ser recebida na Bélgica, onde ficaram até a anistia. Naquele país, Ibrahim coordenou a Casa Latino-Americana, que lutou pela redemocratização no continente.
A família retornou ao Brasil com a anistia. Carlos Eduardo lembrou do assédio da imprensa a sua casa, em Osasco, e disse que a família foi vigiada até o governo Collor. Ele afirmou que só conseguiu a cidadania nata brasileira, aos 23 anos de idade, após acionar o Estado brasileiro. Até então, tinha uma certidão de nascimento provisória, e concedida apenas quando ele tinha 10 anos de idade.
Carlos Eduardo afirmou continuar o trabalho do pai em defesa dos trabalhadores. Para ele, a maior tortura foi a psicológica, que as famílias e os trabalhadores sofreram. "A ditadura militar foi um câncer, mas até hoje não conseguiram curar o tumor, há muita gente que não quer isso. Os subversivos foram os militares, que subverteram a ordem, nós só queríamos o Estado Democrático de Direito". Estava presente outro filho de José Ibrahim, Gabriel, que, por ser jovem, não presenciou o período da ditadura.
Três irmãos desaparecidos
Clóvis Petit, irmão dos militantes do PCdoB desaparecidos no Araguaia Maria Lúcia, Jaime e Lúcio (cujas história já foi tema de relatos na Comissão estadual da Verdade), relembrou a atuação política deles a partir de 1968, quando tinha 12 anos de idade. Falou da incerteza da família sobre o paradeiro dos irmãos, cuja morte só foi divulgada após a anistia, em 1977. O corpo de Maria Lúcia é um dos poucos identificados no Araguaia.
"Fiquei muito revoltado com a morte de Maria Lúcia, mas houve períodos em que havia alguma esperança de que meus dois irmãos ainda estivessem vivos, escondidos", continuou Clóvis. Essa revolta, disse, ainda não acabou, pois há uma "política de dissimulação, de não punição dos torturadores e assassinos, que ainda estão na máquina pública. Esse governo que está aí já devia ter varrido essa camarilha criminosa que está sustentando", finalizou.
Sua irmã Laura, também presente à reunião, disse, que até a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, os familiares dos desaparecidos não haviam se dado conta de que também eram vítimas indiretas da ditadura. Laura cobrou do Estado brasileiro a devolução dos corpos dos desaparecidos e a divulgação dos nomes dos responsáveis, para que possa haver justiça.
TERÇA-FEIRA, 7 DE MAIO DE 2013
Tessa de Moura Lacerda/Carmen Nakasu/José Paulo Ramos
Na terça-feira, foram ouvidos os depoimentos de Tessa filhos de militantes presos pela ditadura. A primeira a depor foi Tessa Lacerda, que contou que seus pais, Gildo Macedo Lacerda e Mariluce Moura, foram presos em outubro de 1973, em Salvador. Mariluce estava grávida, e foi libertada dias depois. Gildo, três dias depois, morreu sob torturas. Tessa relatou a dor da ausência do pai, embora sua mãe tenha se casado depois.
"O fato de não ter um corpo para que eu faça o rito, impede que eu possa ter o luto por essa morte", falou Tessa, referindo-se ao fato de o corpo de Gildo nunca ter sido entregue à família, por ter sido jogado em vala comum, onde se degradou, impossibilitando a identificação. "Queria poder levar meus filhos ao túmulo de meu pai. É uma história que não fecha, não é justa com ninguém", disse.
Até os 18 anos de idade, Tessa não tinha o nome do pai na certidão de nascimento, o que lhe causava muitos constrangimentos. Para obter esse reconhecimento, teve de entrar com ação judicial. Segundo sua mãe, Mariluce Moura, havia uma certidão de casamento, mas com os nomes falsos que usavam na ocasião. Só com a Lei 9.140/1995, o governo federal reconheceu as mortes dos desaparecidos, então o registro pôde ser feito.
Recentemente, afirmou Tessa, a família decidiu processar o Estado brasileiro pela morte de Gildo Lacerda. Por isso, ela submeteu-se à avaliação psicológica que, embora não tenha apontado danos, indicou a existência de insegurança, baixa auto-estima e medo. Tessa não dorme com as luzes apagadas até hoje. "São coisas que carrego da infância e não consigo superar", finalizou.
Vida em Cuba
Filho de Derlei Catarina de Luca e Nilo César, José Paulo Ramos nasceu em 1972, em Londrina. Quando tinha um ano, sua mãe, após prisão, decidiu fugir do Brasil para não ser morta, indo para Cuba. José Paulo só a reencontrou um ano depois. Voltaram ao país apenas com a anistia, em 1979, quando ele conheceu o pai e sua família.
No ano em que ficou sem a mãe no Brasil, ele passou por várias famílias e também esteve com a avó. José Paulo relatou ter boas lembranças da vida em Cuba. Embora tenha demorado um ano para chamar Derlei de mãe, ele considera esse período "uma ferida sarada". Disse também ter orgulho das ações da mãe para tentar melhorar o país.
Presa com os pais
Quando tinha um ano de idade, Carmen Nakasu foi presa com os pais na estação da Luz, na capital de São Paulo, onde eles, em fuga, iam tomar um trem para o Rio de Janeiro. Carmem ficou cerca de cinco dias sequestrada, com uma investigadora da Oban, sendo depois entregue à família materna.
Apenas três meses depois sua mãe foi libertada, quando notou algumas mudanças de comportamento na filha, que passou a ser mais insegura e a ter medo de água e de barulho. Desde criança, contou a mãe Elzira Vilela, ela necessitou de tratamentos psicológicos. Apenas aos 18 anos, após terapia regressiva, Carmem contou que conseguiu localizar no momento da prisão dos pais a "sensação de angústia que vinha do nada".
A mãe Elzira Vilela ainda relembrou os problemas envolvendo o parto de Carmem, em 1973. Como eram perseguidos, foi difícil arrumar um hospital, mas um médico amigo conseguiu abrigá-la em Valinhos. Mas os documentos iniciais continham o nome falso que era usado na época, assim como local de nascimento incorreto.
Carmem afirmou sentir orgulho dos pais, "que enfrentaram tudo sem discutir, sem delatar ninguém, que resistiram a todo tipo de tortura por uma causa muito maior que a minha existência, a causa do povo brasileiro, do respeito aos camponeses, aos operários". Através da música, mas especialmente do canto lírico, ela afirmou ter conseguido superar seus problemas. Ao final da reunião, Carmem cantou a Bachiana brasileira nº 5, de Heitor Villa-Lobos.
QUARTA-FEIRA, 8 DE MAIO DE 2013
Janaína e Edson Luis de Almeida Teles/João Carlos Schmidt de Almeida Grabois e Igor Grabois/ Luis Carlos Max do Nascimento e Zuleide Aparecida do Nascimento
Cozinheira de Lamarca
Na manhã desta quarta-feira, 8/5, testemunhos de dois irmãos, Luis Carlos Max do Nascimento e Zuleide Aparecida do Nascimento, que foram exilados do Brasil quando tinham apenas três e cinco anos de idade, respectivamente. Eles foram banidos do país, na companhia da avó paterna, Tercina Dias de Oliveira (ex-militante do PCdoB), e de outras duas crianças.
Filhos de pais separados, eles moravam na companhia desta avó, que passou a atuar junto a guerrilheiros quando o PCdoB foi para a clandestinidade na época da ditadura militar. Eles relataram que em 1969 viveram durante alguns meses no Vale do Ribeira, onde fora instalado um centro de treinamento para guerrilheiros. Lembraram que Tercina Dias cozinhava e costurava para Carlos Lamarca, um dos responsáveis pelo treinamento.
Perguntados por Adriano Diogo (PT) se tinham consciência dos fatos à época, Luiz Carlos afirmou que de fato não tinham uma vida comum. "Não podíamos brincar do lado de fora, e quando saíamos, não podíamos olhar fixamente para os lugares nem para outras pessoas, além de nos tratar mutuamente com nomes diferentes", ele disse, completando que sua irmã era chamada de Zulmira e ele de João Carlos. A avó era chamada pelos guerrilheiros de Tia. "Tínhamos de nos parecer como uma família de camponeses", declarou Zuleide.
Ela afirma que até hoje tem problema de identidade: "sei que nasci no Brasil, mas me sinto cubana, costumo dizer que sou latino-americana". Eles foram para Cuba após terem sido presos, depois de terem deixado o Vale do Ribeira.
Exílio
Eles se recordam que foi em Peruíbe, numa madrugada, que a casa foi invadida violentamente e revistada por militares. Foram levados para o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP), na Capital.
Luis Carlos ainda chora quando se lembra do momento em que foi separado da avó pelos policiais. "Dois a levaram e um me segurou pelo braço", relata, afirmando que este é o momento mais doloroso desta história. Adultos presos, crianças no Juizado de Menores. Foram se reencontrar por exigência de Tercina Dias, que não aceitou o exílio sem a presença deles, de outro neto Ernesto Carlos Nascimento e de outra criança que ela tinha adotado (Samuel Dias de Oliveira).
Relataram que após breve período na Argélia, foram para Cuba por interferência de Fidel Castro, que ao saber da existência de crianças no exílio, colocou-se à disposição para recebê-los e educá-los.
Na semana em que se comemora o Dia das Mães, outro dado comovente extraído dessa história foi o fato de os depoentes terem ficado separados da mãe por quase 40 anos, pois ao retornarem para o Brasil não conseguiram retomar o contato, o que só ocorreu em 2009. Infelizmente, a mãe faleceu pouco tempo depois.
Ivan Seixas, um dos coordenadores da comissão, leu, no início dos trabalhos, texto que retrata casos de crianças em situação análoga à de Luis Carlos Max do Nascimento e Zuleide Aparecida do Nascimento.
"Crianças foram sequestradas e escondidas nos centros clandestinos da repressão política. Foram arrancadas do convívio com seus pais e famílias, enquadradas como elementos subversivos pelos órgãos de repressão e banidas do país. Foram obrigadas a ficar em orfanatos, morar com parentes distantes, e viver com identidade falsa, na clandestinidade, impedidas de conviver, crescer e conhecer os nomes de seus pais", finalizou Seixas.
Família comunista
Na tarde de quarta-feira, a Comissão ouviu os irmãos Janaína e Edson Luis de Almeida Teles; João Carlos Schmidt de Almeida Grabois e Igor Grabois. Igor, filho de Gilberto Olímpio Maria e Victória Grabois, foi o primeiro a depor.
Nascido em 1966, Igor contou que nasceu numa família de comunistas, pois é neto de Maurício Gabrois, um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e um de seus dirigentes até sua morte na guerrilha do Araguaia, em 1973. Por conta desse movimento, tanto o pai como o avô passavam longos períodos fora de São Paulo. Também era figura eventual em sua casa o também dirigente do PCdoB João Amazonas, que era considerado um tio.
A vida era o mais normal possível, mas Igor lembra que era proibido de levar crianças a seu quarto, que abrigava documentos e livros do partido. Depois do desaparecimento de seu pai, seu avô e o tio André Gabrois, mortos no Araguaia em 1973, outro fato marcante foi a queda da casa da Lapa, em 1976, que gerou um certo pânico em sua casa, e quando Amazonas deixou de aparecer por lá.
Em sua certidão de nascimento constava o nome Jorge Freitas, e sua mãe Victoria usava o nome de Teresa. Apenas após a anistia, em 1982, os documentos foram consertados e Igor começou a saber da verdade sobre a militância familiar. Após 1995, com o reconhecimento da morte de seu pai, é que sua vida civil pôde ser regularizada. "Ser clandestino era ser a única criança que não tinha parentes, não tinha antecedentes familiares e não tinha origem. Era ter a vida preenchida por vazios e mistérios", disse Igor Gabrois.
Para ele, a solução para as famílias seria a abertura dos arquivos da ditadura. Embora as Forças Armadas tenham afirmado que foram incinerados, Igor acredita que há muito a ser descoberto. Para ele, a falta de divulgação dos arquivos do Exército protege as classes dominantes, pois muitos colaboradores da ditadura ainda estão na ativa.
Irmãos Teles
Filhos de César Augusto Teles e Maria Amélia de Almeida Teles "coordenadora da Comissão da Verdade" Edson Luiz e Janaína falaram a seguir. Nascido em 1968, Edson foi batizado em homenagem ao estudante secundarista morto no Rio de Janeiro naquele ano. Ambos foram sequestrados, com 4 e 5 anos de idade, com a tia Crimeia, dias depois da prisão dos pais, em dezembro de 1972.
Ambos contaram que passavam o dia no pátio da Oban, e que eram levados a ver os pais como forma de pressioná-los a confessar. Edson lembra do rosto da mãe deformado pelas torturas, e Janaína disse que imaginava estar num hospital estranho, onde havia pessoas feridas mas não médicos. À noite, as crianças eram levadas para casa de um policial. Isso durou alguns dias, sendo que depois foram levados para Belo Horizonte, para a casa de um tio delegado.
Edson afirmou que não tem boas lembranças de sua estadia na casa do tio, que não conhecia antes. Naquela casa as regras eram rígidas, e o tratamento diferenciado em relação às outras crianças. Na escola era o período de socialização, mas tanto Janaína quanto Edson relataram ter de criar estratégias de sobrevivência, com o uso de mentiras sobre sua família.
A tia Crimeia Alice Schmidt de Almeida os recuperou meses depois, levando-os para o Rio de Janeiro. Não viviam uma vida clandestina, usavam seus nomes, mas não podiam dar detalhes sobre sua família.
Maria Amélia relatou os problemas psicológicos que seus filhos de Janaina e Edson tiveram, solucionados com ajuda de uma grande rede de solidariedade, como a madre Cristina, do Instituto Sedes Sapientae, da PUC/SP. Para ela, seus filhos e outras crianças tiveram mesmo a infância roubada, pois tiveram de amadurecer cedo.
Torturado na barriga da mãe
João Carlos Schmidt de Almeida Gabrois, o Joca, nasceu no Hospital do Exército de Brasília, em fevereiro de 1973, onde permaneceu por três meses. Sua mãe, Crimeia Alice Schmidt de Almeida, estava grávida, e por isso deixou a área da guerrilha do Araguaia. Ela, mesmo grávida, passou por torturas. Joca jamais conheceu o pai, André Gabrois, morto pelo Exército em 1973.
"Quando sai da cadeia, com três meses de idade, minha mãe colocou nas fraldas um diário onde contava sua história e a da guerrilha do Araguaia, pois achava que não sairia viva da prisão", contou Joca. Ele disse também que mesmo na infância sempre soube de sua origem, mas era orientado a usar um nome falso e a não dar informações sobre sua família. Sua paternidade foi reconhecida, depois de processo judicial, quando Joca tinha 17 anos de idade.
O presidente da comissão, Adriano Diogo, disse que um balanço sobre a guerrilha do Araguaia é absolutamente necessário, "pois eles fizeram história". A historiadora Janaína Teles complementou dizendo que ainda há muito o que se descobrir, foram liberados 27 mil documentos, mas neles não é dito nada sobre as mortes, sobre os destino dos corpos. "A guerrilha do Araguaia durou quase três anos, teve apoio popular, pois mais de 500 camponeses da região foram fichados pelo Exército. Foi maior que a luta de Che Guevara, merece uma análise séria e equilibrada", disse.
Igor Gabrois afirmou, sobre os 68 corpos ainda desaparecidos no Araguaia, incluindo de seus três familiares, que dificilmente serão achados, pois o Exército fez limpezas na área, sendo que a última teria sido em 2001. O deputado João Paulo Rillo (PT) também presente na reunião, e Adriano Diogo informou que ele está organizando uma Comissão da Verdade em Ribeirão Preto.
QUINTA-FEIRA, 9 DE MAIO DE 2013
Virgílio Gomes da Silva Filho/Eliana Paiva/Paulo e Camila Sipahi/Ernesto Carvalho/Darcy Andozia/Lenira Machado
"O que fica é o sentimento de dor, de perda, de medo e humilhação, mesmo depois de tantos anos da morte de meu pai", com esta frase Virgílio Gomes da Silva Filho resumiu todo o sofrimento que passaram, ele, seus irmãos e sua mãe em função da militância política de seu pai, em mais um depoimento de filhos de militantes políticos perseguidos e mortos pela ditadura militar no país.
Na manhã desta quinta-feira, 9/5, quem participou dos depoimentos foi um dos filhos de Virgílio Gomes da Silva e sua viúva, Ilda Martins da Silva. Virgílio foi preso, torturado e morto em 29/9/1969. Ele era integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e comandou o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.
Presos por agentes da repressão em São Sebastião, Ilda e seus três filhos, Wladimir, com oito anos, Virgilio Filho, com seis anos e Isabel, com quatro meses, foram levados à sede da Operação Bandeirantes, seu filho de dois anos, Gregório, só não foi levado junto, pois estava na casa da avó no momento da prisão. Posteriormente foi isolada de seus filhos, que foram encaminhados para uma casa mantida pelo Juizado de Menores, enquanto Ilda era submetida a interrogatórios e torturas psicológicas. Permaneceria presa por 11 meses, quatro dos quais em total isolamento.
Depois que a viúva de Virgilio foi solta e pode se reencontrar com os filhos, eles foram viver em Póa, em terreno cedido por parentes. Perseguida pela ditadura, que não permitia que ela conseguisse emprego, a situação da família se deteriorou e ex-companheiros de militância de seu marido conseguiram que ela e seus filhos fossem clandestinamente para o Chile e após um ano foram acolhidos pelo regime cubano.
No depoimento emocionado que Virgilio Filho deu, fica patente o agradecimento ao governo cubano que os tratou como filhos, dando conforto psicológico, econômico, formação cultural e profissional.
Ao encerrar o depoimento, o filho e a viúva de Virgilio reiteraram sua luta para ser revelado o paradeiro do corpo do militante da ALN, a forma como morreu e quem foram seus algozes. Querem que o atestado de óbito entregue pelo governo seja corrigido e que dele constem com exatidão a forma como ele foi morto, a data e o local.
Filhos e mães
A Comissão da Verdade prosseguiu na quinta-feira, ouvindo filhos e duas mães.
"Não tive minha infância roubada, pois quando fui presa tinha 15 anos de idade", contou Eliana Paiva, filha do ex-deputado Rubens Paiva, cassado em 1964. Como não conseguia mais emprego em São Paulo como engenheiro civil, Rubens foi para o Rio de Janeiro, onde montou uma empresa. Ela relatou a vida normal de adolescente que levava.
Moravam em uma casa do bairro do Leblon, que era ponto de encontro de diversos tipos de pessoas, pois seu pai era muito alegre. A partir do recrudescimento da ditadura em 1968, Rubens passou a ajudar militantes, e por isso acabou preso. No dia seguinte à prisão do pai, no dia 20/1/1971, Eliana foi presa junto com a mãe.
Foram levadas ao DOI-Codi. Ela relatou os interrogatórios a que foi submetida nas 24 horas que ficou presa, e disse ter ouvido gritos de tortura. Eliana afirmou que percebeu uma mudança de atitude dos policiais, quando supôs que seu pai estava morto. "Ele deve ter enfrentado os policiais, por isso o mataram", disse. Sua mãe passou 11 dias presa.
Desenhos expressivos
Os irmãos Paulo e Camila Sipahi tinham respectivamente 6 e 5 anos quando os pais Antônio Othon Pires Rolim e Rita Miranda Sipahi Pires foram presos. Falaram das visitas quinzenais aos pais no Presídio Tiradentes, onde ficaram por um ano. Ambos mostraram desenhos de sua autoria, e relataram a dificuldade de entender, na época, o que aconteceu.
Camila e Paulo comentaram que era difícil na infância entender os motivos da prisão dos pais, pois quem ficava preso era bandido, e sabiam que os pais não eram. "Quando menina, pensei que nunca poderia contar minha história, mas ouvindo os depoimentos durante toda a semana, reconheci minha história, os lapsos de memória, os segredos, as histórias mal explicadas", disse Camila.
Nome proibido
"Meu pai, Devanir Carvalho, era um operário metalúrgico, no ABC, onde foi um dos fundadores do sindicato, e foi morto em 5/4/1971, contou Ernesto Carvalho, nascido em 1968. Ele relatou que uma das primeiras coisa que perdeu foi seu nome, pois deveria ter o Guevara no registro, mas não foi possível, embora informalmente e profissionalmente o use.
Ernesto, com 3 anos de idade, estava em uma casa na zona norte de São Paulo, com a mãe e o irmão de 7 anos, quando a polícia a invadiu. No tiroteio, dois militantes morreram, e a mãe foi presa. Foram todos levados para a Oban, e depois Ernesto e o irmão foram entregues aos avós. Trinta dias depois, com a libertação da mãe, saíram do Brasil, indo ao Chile. Com o golpe, dois anos depois, tiveram de perambular pela cidade à procura de abrigo em alguma embaixada.
Conseguiram abrigo na Argentina, onde ficaram num lugar da ONU para refugiados. Ernesto lembra do clima de medo que havia no local, pois a Operação Condor, de colaboração entre as ditaduras latino-americanas, estava atuante, e vários refugiados eram pegos em armadilhas e desapareciam.
Da Argentina, foram para Portugal, onde retornaram após a anistia. No Brasil, Ernesto relatou que era tratado na escola como filho de bandido, mas disse ter hoje orgulho de seu pai e da luta de toda sua geração.
Os depoentes foram unânimes na opinião que a violência policial da época da ditadura é perpetuada nas prisões, os métodos de investigação com uso de tortura são os mesmos. Para Paulo Sipahi é preciso registrar essas histórias para as próximas gerações, pois ainda hoje, principalmente entre os jovens, há quem ache que a ditadura foi uma coisa boa.
Mães
A seguir foram ouvidas duas mães, Darcy Andozia e Lenira Machado. O filho de Darcy, Carlos Alexandre Azevedo, foi levado para o Dops de sua casa, em São Bernardo do Campo, com um ano e 8 meses de idade, em janeiro de 1974. Como chorava muito, foi agredido por um policial, ficando ferido na boca. A criança teria sido usada para pressionar os pais Darcy e Dermi Azevedo, que estavam presos, e estavam sendo torturados pela equipe do delegado Fleury.
Ao serem libertados, continuou Darcy, tentaram recomeçar a vida, mas Carlos Alexandre nunca se recuperou. Sofreu perseguição na escola e, segundo sua mãe, foi se fechando cada vez mais, adquirindo um quadro de fobia social do qual nunca se livrou, apesar de todo o atendimento médico e psicológico que recebeu. No último dia 16/2, Carlinhos se suicidou, por, segundo Darcy, "não conseguir se adaptar ao mundo".
Lenira Machado, ex-militante da Ação Popular (AP), depôs sobre seu filho Aritanã Machado Dantas. Ela era de família tradicionalmente comunista, mas o marido, também militante, era filho do general Altino Rodrigues Dantas. Quando de sua segunda prisão, Aritanã tinha 9 anos. Quando foi solta, descobriu que havia perdido sua guarda para o sogro. Não era permitida sequer a visita à criança, pois a família dos avós paternos a chamavam de terrorista. Só podia vê-lo no hall do apartamento por uma hora. Conseguiu reaver a guarda apenas em 1976.
"Meu filho logo aprendeu que não podia usar o nome dos pais, também passou pela experiência de visitas no presídio", continuou Lenira, que disse que ele também sofreu preconceito em escolas. Saíram do Brasil e foram para Moçambique, onde Aritanã, aos 14 anos, começou a trabalhar com cinema, integrando a equipe técnica de Ruy Guerra, e conseguiu tomar um rumo para sua vida. Após seis anos de luta por sua saúde, Aritanã Machado Dantas faleceu em 11/1/2013.
SEXTA-FEIRA, 10 DE MAIO DE 2013
André e Priscila Arantes/Iara Lobo/Raquel Rosalen/Dora Augusta Rodrigues Mukudai
O seminário Verdade e Infância Roubada encerrou-se com novos depoimentos de crianças que sofreram a violência da ditadura, antes mesmo de entender seu sentido. André e Priscila tinham três e dois anos quando foram tirados de casa e presos junto com a mãe, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, em 13 de dezembro de 1968, no interior de Alagoas. Ao longo de quatro meses passaram pelo Dops de Maceió, pela Cadeia Pública, pela Escola de Aprendizes-Marinheiros e pelo Hospital da Polícia Militar.
Maria Auxiliadora era casada com Aldo Arantes, que presidiu a União Nacional dos Estudantes entre 1961 e 1962. Após o golpe de 1964, Arantes exilou-se no Uruguai. De volta ao Brasil em 1965, na clandestinidade, foi preso em 1968 e libertado seis meses depois. Integrante do PCdoB, foi novamente preso em 1976 e condenado a cinco anos de pena.
Essa trajetória dramática foi vista com outros olhos pelas crianças, graças a sua mãe. "Não senti a prisão como uma violência. Minha mãe me fazia pensar que a Escola de Aprendizes era um castelo e que os policiais eram nossos amigos", contou André.
Mas levar a vida por um fio trouxe desdobramentos para as crianças. Priscila recordou da casa na avenida Itaquera, onde residiam, com suas janelas sempre forradas com papel. E tem a lembrança marcante de, em 1976, na casa dos avós em Belo Horizonte, ter ficado embaixo da mesa da sala ouvindo policiais descreverem a tortura aplicada a seu pai, então preso, e as ameaças a sua mãe, que se encontrava foragida. "Nessa época, passei a ter desmaios e pequenos lapsos de consciência", recordou.
André falou também sobre o momento em que descobriu que seu verdadeiro sobrenome não era Guimarães da Silva e de quando, aos 11 anos, sua mãe lhe mostrou reportagem publicada numa revista semanal, contando a história de seu pai preso. "Aí ficou claro a tortura e o sofrimento dele. O impacto foi tremendo", declarou.
O seminário ouviu também Iara Lobo, filha de Raimundo Gonçalves Figueiredo e Maria Regina Lobo Figueiredo, mortos pelos órgãos de repressão. "Queremos conhecer os responsáveis pela morte de nossos pais. Mas queremos também que se faça um resgate da morte de meu pai, cuja imagem foi denegrida pela imputação da autoria do atentado no Aeroporto de Guararapes", disse Iara. Para ela, é preciso ter em perspectiva que Raimundo fazia parte de um grupo que lutava pela liberdade e pelo futuro do país.
O seminário ouviu ainda depoimentos emocionados de Raquel Rosalen e de Dora Augusta Rodrigues Mukudai. Filha do ex-militar Darci Rodrigues, que militou com Carlos Lamarca, Dora esteve exilada em Cuba com a mãe e sofreu as consequências de uma vida na qual não se podia criar raízes. "Passei dez anos sem poder me apegar a colegas na escola em Cuba, porque meus pais diziam o tempo todo que a qualquer momento voltaríamos para o Brasil", concluiu.
QUINTA-FEIRA, 23 DE MAIO DE 2013
Ieda e Ivan Seixas/Célia Coqueiro
Em 16 abril de 1971, Ieda Seixas foi levada de casa, junto com a mãe, Fanny, e a irmã, Iara, para a sede da Operação Bandeirantes, em São Paulo. Lá já estavam presos seu pai, Joaquim, e o irmão, Ivan, ambos militantes do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Ieda ficou presa um ano e meio. Assim como seus familiares, foi torturada por integrantes dos órgãos de repressão. Joaquim Seixas foi morto na Oban um dia depois da prisão da filha.
Nesta quinta-feira, 23/5, Ieda e Ivan estavam mais uma vez juntos, na reunião da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, na Assembleia Legislativa. Ivan é assessor do órgão que trabalha para esclarecer a história dos anos de chumbo. Ieda prestou emocionado depoimento sobre seu irmão mais novo, Irineu, como parte da série de testemunhos que abordam a infância sob a ditadura.
Na época do golpe de 1964, Irineu tinha cerca de quatro anos. Seu pai, militante sindicalista e político, era funcionário da Petrobrás e tinha sido incluído no quadro de "expurgados" da empresa. Isso levou a família "pai, mãe e os quatro filhos ", sob risco de prisão, a fugir para o Rio Grande do Sul.
"Para Irineu, esse período foi muito confuso. Ele era pequeno, mas conta que se lembra da sensação de insegurança que sentia", conta Ieda.
Quando os Seixas retornaram a São Paulo em 1971 a sensação de perigo continuava e o próprio Irineu, aos dez anos, pediu para ir morar com uma tia, no Rio de Janeiro, relembra Ieda. Pouco tempo depois, toda a família foi presa, e Irineu só reviu a mãe e as irmãs em dezembro do mesmo ano, em uma visita ao presídio Tiradentes.
Fanny, Iara e Ieda ficaram presas por um ano e meio. Depois de libertadas, Irineu reuniu-se a elas para voltarem a viver juntos, "mas mesmo assim ele sempre ficou um pouco relegado, porque nossa grande preocupação era com Ivan, que continuava preso", diz Ieda.
"Quando tinha uns 20 anos, conversando comigo, Irineu disse que só lembrava da imagem paterna quando via alguma fotografia. A única recordação que ele tinha do nosso pai era da nuca", revelou Ieda. Possivelmente, ela avalia, era o que ele tinha gravado da viagem a Porto Alegre, quando ele ia sentado no banco de trás do carro. Só então Ieda contou ao irmão que o pai morrera sob tortura "a versão antes narrada a ele era de que a morte se dera durante um tiroteio”. Irineu chorou e teve, então, uma nítida lembrança da imagem do pai.
"A infância perdida é uma realidade. Aos dez anos, meu irmão passou a olhar o mundo como um adulto, a ter medo e uma sensação de perigo sempre presente. Ele só parou de ter medo quando o Brasil teve eleições livres, que acabaram levando à eleição de [Fernando] Collor", transmitiu Ieda.
Hoje Irineu tem 53 anos e mora em São Paulo. Ele é tenso, revela Ieda. Não quis falar à Comissão da Verdade, e pediu que a irmã fizesse isso em seu nome.
Também falou à comissão Célia Coqueiro, filha de Aderval Coqueiro. Aderval militou no PCB e, posteriormente, no MRT. Preso e torturado no Dops/SP, foi banido para a Argélia em 1970, com outros 39 presos políticos, em troca da libertação do embaixador da Alemanha, Ehrenfried Von Holleben, sequestrado pela Ação Libertadora Nacional (ALN) e pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Voltou de Cuba clandestinamente em janeiro de 1971 e no mês seguinte foi morto em operação policial do DOI-Codi/RJ.
Célia tinha três anos e meio quando o pai foi preso, em 1969. Ela tem lembranças esparsas de visitas ao pai no presídio Tiradentes. Marcante, porém, é a memória da mãe chorando após ser avisada por uma vizinha que vira no jornal a notícia da morte de Aderval.
"Eu deitei no colo de minha mãe para ter certeza de que ela estava chorando, porque ela era uma mulher muito forte, nunca chorava", contou Célia.
Após a morte do pai, um grupo de militantes achou que, por questões de segurança, a família tinha que deixar o país. Em novembro de 1971, a mãe e as filhas foram para o Chile. "Mas só consegui me sentir segura quando cheguei em Cuba, em 1973. A insegurança me acompanhou por muitos anos", Célia revelou. (mlf)
SEXTA-FEIRA, 24 DE MAIO DE 2013
Rosa, Edson e Jaime Martinelli
Foi dada nesta sexta-feira, 24/5, continuidade ao seminário organizado pela Comissão da Verdade Rubens Paiva, presidida por Adriano Diogo (PT), com o objetivo de ouvir relatos sobre crianças que tiveram sua infância roubada, vítimas da ditadura. A reunião contou com os depoimentos de Rosa, Edson e Jaime, filhos de Raphael Martinelli, ferroviário e sindicalista, ex-preso político e torturado pelo regime militar. Em sua vida sindical, que o tornou nacionalmente conhecido, Raphael promoveu diversas greves e lutas a favor do ferroviário no Brasil. Inclusive trouxe uma delegação francesa para que fosse discutida a possibilidade da implantação do trem-bala em plena década de 60.
Foi um dos organizadores do comício de 31 de março de 1964, na Central do Brasil, estopim do golpe. Da primeira vez, ficou preso por um ano e meio, sem ser torturado. Quando saiu da prisão, voltou a militar na política e foi um dos idealizadores do assalto ao trem pagador, em 14 de junho de 1960. Voltou a ser encarcerado, onde passou mais seis anos em detenção, alguns sob forte tortura, como contou Jaime, um de seus filhos mais velhos.
Desconfiança e medo
"Sofri, mas sou feliz", contou Edson sobre as grandes perdas de sua adolescência, quando teve que trabalhar para auxiliar no sustento de sua família, pois seu pai estava preso. Falou da forma desconfiada como os professores olhavam para ele e das boas heranças éticas e emocionais que o pai, mesmo estando tanto tempo longe, deixou.
A única filha de Raphael se emocionou ao falar sobre sua infância e adolescência. Contou de traumas sofridos e disse que é injustiça os torturadores estarem livres. Rosa exitava em falar com seu pai sobre os problemas que sofria, pois para ela qualquer questão a ser resolvida parecia pequena perto do que o sindicalista sofreu.
Em uma das poucas vezes que falou sobre a época em que esteve preso, Martinelli contou estar em uma sessão de espancamento, quando ouviu os agressores falando que não iriam atrás de sua esposa, pois "ela não valia a pena, era uma maltrapilha", afirmou Rosa. Ressaltou as dificuldades em falar sobre emoções. "Amei meu pai à distância e até hoje não falei o quanto o amo, porque esse sentimento parece tão frágil que poderia se quebrar", contou a filha, em lágrimas.
A mãe
Jaime teceu elogios à sua mãe e aos valores que lhes foram passados. "Amor e cuidado eram visíveis nos atos maternais, mesmo após estarmos casados e longes de casa", contou Jaime. Também falou dos traumas e das dificuldades em fazer novas amizades, das decepções e traições que viu seu pai sofrer de amigos.
Agradeceu a Deus por ele, seus dois irmãos e irmã, terem alcançado uma nova vida, com valores dignos que seu pai lhes ensinou. "Se fosse para ganhar algo em beneficio próprio e que não esteja dentro da lei, melhor que nós (Rosa, Jaime, Edson e Luís Carlos) não tivessemos. Foi isso que meu pai nos ensinou", finalizou Jaime.
O livro, que conta a história de Raphael Martinelli, será publicado em breve. Caminhos de ferro está em fase de revisão. Na mesa, além dos filhos, estiveram Amélinha Teles, assessora da Comissão da Verdade.
TERÇA-FEIRA, 28 DE MAIO DE 2013
Sueli Coqueiro
A infância roubada das filhas de Aderval Coqueiro tem mais de um capítulo. Em 23/5, Célia foi ouvida pela Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, presidida pelo deputado Adriano Diogo (PT). Nesta terça-feira, 28/5, sua irmã Sueli contou como a ditadura militar golpeou sua família e sua história de vida.
Aderval militou no PCB e, posteriormente, no MRT. Preso e torturado no Dops/SP, foi banido para a Argélia em 1970, com outros 39 presos políticos, em troca da libertação do embaixador da Alemanha, Ehrenfried Von Holleben, sequestrado pela Ação Libertadora Nacional (ALN) e pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Voltou de Cuba clandestinamente em janeiro de 1971 e no mês seguinte foi morto em operação policial do DOI-Codi/RJ.
Sueli nasceu em 1960. Da lembrança que tem de sua infância em São Paulo, após o golpe de 1964, relata os sumiços do pai por alguns dias, as reuniões que aconteciam em sua casa, na região do ABC, e as restrições à infância " por exemplo, era proibida de brincar na rua ", algo que na época ela não entendia.
Tortura e morte
O medo maior começa a surgir quando o pai cai na clandestinidade e a família começa a viver em fuga. Sueli tinha sete anos quando eles foram para o Mato Grosso. Posteriormente mudaram para a Bahia e depois voltaram para São Paulo.
"Mudávamos constantemente. E eu comecei a sentir muito medo quando percebi que podia perder meu pai", ela relembra.
E o que ela temia aconteceu quando o pai foi preso. No Dops paulista, Sueli não podia visitar Aderval com a frequência que desejava. "Meu pai tinha sido muito torturado. Numa das visitas ele estava de óculos escuros, para que não víssemos as marcas da tortura. Para mim, ele disse que tinha machucado o rosto jogando bola", afirma Sueli.
Quando Aderval foi banido, a sensação de perda se agudizou. "O exílio de meu pai também foi uma despedida. Achei que nunca mais ia vê-lo. E de fato só o reencontrei já morto, no caixão, em 1971", Sueli relata.
Exílio
A morte de Aderval, após retornar clandestinamente ao país, levou companheiros de militância a promover a saída da família Coqueiro " a mulher e as duas filhas de Aderval ", rumo ao Chile, de Salvador Allende.
"A viagem para o Chile foi terrível. Estávamos sem chão. Não tivemos tempo de luto, de assimilar a perda. Partimos sem nos despedir dos outros familiares que ficaram no Brasil", disse Sueli. Ela acredita que esse desprendimento das raízes é um dos motivos que explica a dificuldade de relacionamento dela com tios e primos, por exemplo.
Quando ficam claros os indícios de que se preparava o golpe de 1973, no Chile, a família é transferida para Cuba. Sueli rememora que "só em Cuba é que realmente comecei a ter infância. Eu estudava, tinha um círculo de amigos, tinha liberdade de ser criança". Em Cuba ela aprendeu que o medo de policiais fardados não tinha, ali, razão de ser: "Era a polícia para a nossa proteção, não para a agressão".
A volta ao Brasil, no final dos anos 1970, não foi uma escolha de Sueli. Ela teria preferido ficar em Havana, onde havia construído uma "família". "Até hoje sinto que Cuba representa meu porto seguro", avalia. "O retorno foi extremamente difícil. É o meu país, mas foi aqui que aconteceram as piores coisas da minha vida. Era uma volta sem perspectiva, sem casa nem família", complementa.
A adaptação não foi integral, tanto que Sueli viveu muitos anos fora do Brasil, na Nicarágua e na Alemanha. O retorno definitivo ao país se deu há seis anos. "Comecei a sentir necessidade de voltar não porque consegui resolver as coisas que aconteceram comigo, mas porque comecei a entender que meu medo e insegurança, que trago até hoje, estavam relacionados ao que eu vivi aqui", ela contou.
Para Sueli, castigo nenhum aos golpistas e torturadores vai tirar dela a dor e o sofrimento sentidos ao longo da infância que não teve. "Numa primeira fase, a gente não quer falar sobre isso, quer esquecer. Depois, queremos lembrar para tentar entender o que aconteceu com nossos sentimentos. Aqui (na Comissão da Verdade) estou tendo a oportunidade de, pela primeira vez, falar com o coração sobre aquela época", resumiu.
Sueli Coqueiro tem 52 anos e atualmente mora em Brasília. (mlf)
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