Trinta e nove policiais rodoviários federais e militares foram indiciados em ação que terminou em mortes de grupo suspeito de assalto a bancos em outubro de 2021 em Varginha.
Por g1 Sul de Minas
O inquérito da Polícia Federal que indiciou 39 policiais por crimes que teriam sido cometidos na operação que deixou 26 mortos em outubro de 2021 em Varginha (MG) detalha toda a ação contra uma quadrilha que planejava assaltar um banco na cidade. Entre as revelações do relatório, estão a tortura de um dos integrantes para que ele entregasse a localização de um dos sítios e a alteração das cenas do crime para simular um confronto entre criminosos e policiais.O g1 e a EPTV Sul de Minas, Afiliada Rede Globo, tiveram acesso ao inquérito policial, concluído pela delegacia da Polícia Federal de Varginha no dia 22 de fevereiro. O relatório aponta que aproximadamente 500 disparos foram efetivados pelos agentes do Estado e somente 20 disparos foram atribuídos às armas dos suspeitos. Nenhum policial ficou ferido na ação.
"Por tudo quanto até aqui apurado, não restam dúvidas: todos que ingressaram nas edificações e seus perímetros mais próximos queriam o resultado morte para todos que ali estavam. Há indivíduos que levaram vários tiros provenientes de vários atiradores. Logo, vários queriam as mortes destes. A equipe policial foi 'varrendo' o perímetro e abrindo fogo em quem estivesse à frente. Não se sabia quem era quem. Partiu-se da premissa que eram criminosos e deveriam ser alvejados. Quem tentou fugir dos tiros de determinado policial, acabou por ser atingido por tiros de outro ou de outros. Nenhum suspeito sobreviveu", diz o inquérito da PF.
Agentes recuperaram armamentos e munições que estavam em posse da quadrilha durante a ação — Foto: Divulgação/Polícia Militar
Do total de indiciados, 23 policiais rodoviários federais e outros 16 policiais militares que pertencem ao Bope (Batalhão de Operações Especiais) foram indiciados por homicídio qualificado, tortura e fraude processual.
Suspeitos foram interceptados antes do ataque
O inquérito da Polícia Federal concluiu que dois dos suspeitos foram interceptados em um posto de combustíveis em Muzambinho (MG) por volta de 2h53 do dia 31 de outubro e levados para Varginha.
Francinaldo Araújo da Silva, motorista do caminhão que daria fuga aos criminosos após o assalto e Gleisson Fernando da Silva Morais, apontado como um dos mentores do roubo a banco, sofreram torturas físicas e psicológicas neste itinerário e tiveram seus corpos colocados entre aqueles que foram mortos no sítio.
A PF afirma que Francinaldo foi morto em local incerto entre Muzambinho e o Sítio 1 em Varginha. Já as lesões observadas no corpo de Gleisson eram compatíveis com ferimentos provocados com ele ainda vivo.
Armamento utilizado por suspeitos de integrar quadrilha de roubos a bancos que foram mortos em Varginha (MG) — Foto: Franco Junior/g1
Conforme o inquérito, agonizando, Gleisson teve o corpo colocado na sala térreo do sítio 1 e ali recebeu os derradeiros ferimentos a tiros que o levaram a óbito.
Conforme a PF, é sabido que Francinaldo foi morto antes de ocorrer a entrada dos policiais no sítio. O certo é que o armamento utilizado por um cabo da PM disparou contra ele. Gleisson chegou com vida a Varginha, foi colocado na sala do sítio 1 e ali recebeu disparos de fuzil.
Os cadáveres de ambos foram entregues na UPA de Varginha nas mesmas condições em que os demais mortos no sítio 1.
Localização dos sítios
A investigação também apontou que os policiais já sabiam a localização do sítio 2 desde o dia 16 de outubro, duas semanas antes da ação em Varginha.
Segundo a PF, os policiais não tinham certeza da utilização do sítio 1 pelos suspeitos até que Gleisson ou Francinaldo mediante tortura, tenha lhes indicado o local e a condição dos que lá estavam.
O inquérito aponta que os criminosos não mantinham armas longas consigo para pronto emprego, tampouco aparentavam manter guarda ou forte vigilância nos dois sítios tal como alguém que teme por ataque.
PM diz que sacada era utilizada para suspeitos verificarem movimentação fora do sítio em Varginha (MG) — Foto: Reprodução/EPTV
Indiciamento de policiais
A Polícia Federal indiciou 39 policiais por participação na operação que deixou 26 mortos em outubro de 2021 em Varginha (MG). Do total de indiciados, 23 policiais rodoviários federais e outros 16 policiais militares que pertencem ao Bope (Batalhão de Operações Especiais) foram indiciados por homicídio qualificado, tortura e fraude processual.
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PF intima militares a prestar depoimento sobre operação com 26 mortes em Varginha, mas policiais não comparecemO relatório final da Polícia Federal apontou que os criminosos foram surpreendidos com a chegada da polícia e foram alvejados. Ainda conforme a PF, não houve a forte resistência com armas longas por parte dos suspeitos, conforme alegado pelas forças de segurança na época e não existem indícios de que um combate aconteceu.
Conforme o inquérito da PF, "quem tenta se esconder é baleado, quem tenta fugir também é. Ao final, os corpos são retirados para receber irreal socorro e o local conspurcado".
O relatório da PF também aponta que o caseiro Adriano Garcia, que não tinha nada a ver com a situação, também foi morto..
Caseiro que trabalhava em sítio em que estava quadrilha está entre os 26 mortos de operação em MG, confirma polícia — Foto: Rerprodução EPTV
No relatório, a PF afirma que os fatos investigados, na forma como ocorreram e considerando o envolvimento das personagens que deles participaram, não possuem precedentes na história nacional.
Investigação da PF
O relatório da PF afirma que no dia 31 de outubro de 2021, por volta de 5h, aproximadamente 40 policiais entraram em um sítio no bairro Recanto Dourado, o sítio 1, em Varginha (MG) e lá mataram 16 indivíduos que se preparavam para executar um grande roubo na cidade. Outros dois corpos foram contabilizados como mortes na cena do crime.
Na sequência, um grupo formado por 12 destes policiais rumou para um segundo sítio no bairro Lagoinha, o sítio 2 e lá foram mortos mais oito suspeitos.
No relatório, a PF narra as dificuldades encontradas pelos investigadores, já que nenhum membro do bando remanesceu no local com vida e inexistiam testemunhas oculares, salvo os policiais investigados.
Suspeitos de quadrilha de assalto a bancos se dividiram em dois sítios em Varginha — Foto: Arte TV Globo
A investigação da PF apontou que a investigação começou no mês de agosto de 2021 em Uberaba (MG) e terminou com a operação de 31 de outubro em Varginha. Naquele mês, um policial rodoviário federal recebeu mensagens indicando a possibilidade de um grande roubo que seria executado por um bando criminoso fortemente armado. A inteligência da PRF apurou que o possível roubo seria executado no dia 1º de novembro em Varginha.
Inconsistência em depoimentos de policiais
A investigação da Polícia Federal também apontou inconsistência nos depoimentos dos policiais que participaram da ação em Varginha.
"Ficou patente que o relato dos policiais rodoviários e dos policiais militares foi uma criação fictícia, previamente acertada entre eles, com vistas a elidir a responsabilidade pelos excessos cometidos".
Conforme a PF, na fantasiosa versão para o ocorrido, consta que os policiais tensionavam uma ação escorreita de promover a prisão de suspeitos quando foram surpreendidos por injusto ataque de arma de fogo. Não restando opção, os policiais revidaram e se sucedeu vigoroso e intenso combate. Ao final, todos os "meliantes" foram abatidos e nenhum policial foi alvejado, vez que a técnica prevaleceu sobre a força. O mesmo relato "inautêntico" foi empregado para descrever nos sítios 1 e 2, aponta a PF.
A perícia da Polícia Federal conseguiu identificar nos locais elementos biológicos de 19 dos 26 mortos em diversos ambientes dos dois locais de crime. A PF afirma que, somados a outros elementos, tem-se um forte indicativo de onde quase todos os mortos foram alvejados por armas de fogo. Os laudos ainda trouxeram considerações que desconstruíram a versão apresentada pelos policiais.
"O que houve no dia 31 de outubro de 2021 nos sítios 1 e 2 foi uma ação desacertada da polícia que, surpreendendo suspeitos que preparavam a execução de grave crime violento, acabou por matar a todos", aponta a PF.
Marcas de tiros permanecem em sítio um mês após operação que matou 26 suspeitos em Varginha (MG) — Foto: Reprodução/EPTV
Adulteração dos locais de crime
O relatório também afirma que os criminosos não dispunham de armas quando as forças policiais entraram nos imóveis e que houve adulteração dos locais de crime por parte dos policiais.
"Apesar dos sinais consistentes de resistência no sítio 2, os vestígios indicaram que os armamentos longos atribuídos àquele local, divulgados em fotografias à imprensa, inclusive a metralhadora calibre .50, teriam sido introduzidos na cena em momento posterior ao confronto. A análise preliminar da sala (de um dos sítios) indicou que o ambiente passou por adulterações deliberadas e não relacionadas com a dinâmica de entrada tática e confronto com eventuais sujeitos".
O relatório também aponta que disparos de armas de fogo atribuídos aos criminosos também foram adulterados pelos policiais.
"Os consistentes indicativos de que os tiros no muro frontal e lateral foram produzidos depois do domínio da situação, conduzem à conclusão de que foram efetuados pelos policiais, com o possível propósito de simular resistência que não existiu".
Polícia Federal inicia perícia em carros e sítios usados por suspeitos de roubo a banco mortos em Varginha (MG) — Foto: João Daniel Alves/EPTV
Prestação de socorro aos baleados
A Polícia Federal afirma no inquérito que não houve efetivo socorro aos feridos.
"Tal qual observado no sítio 1, a análise global dos elementos objetivos indicou não ter havido efetivo socorro aos feridos do sítio 2. As imagens do circuito do Hospital Bom Pastor mostram que os corpos ali chegaram (seis corpos do sítio 1 e oito do sítio 2) transportados empilhados no compartimento de carga das caminhonetes, sob a capota marítima. No primeiro veículo que trouxe os sujeitos do Sítio 2, via-se policial sentado sobre os corpos, em condição incompatível com eventual prestação de socorro. Vale dizer também, a dita prestação de socorro, em verdade, decorreu da intenção de inovar local de crime".
O relatório afirma ainda que a quase totalidade dos profissionais das unidades que receberam os corpos (Hospital Bom Pastor e UPA Varginha), que trabalhou no dia dos eventos, foi ouvida no inquérito. "Afora os horrores narrados, o que ficou latente é o registro uníssono de que os nosocômios receberam somente cadáveres. Não houve sequer um lampejo de prestação de primeiros socorros".
"Observa-se que não há movimentação compatível com prestação de socorro ou a realização de quaisquer manobras de urgência pelos servidores da UPA. Ao contrário, a maioria dos corpos foi retirada do veículo e imediatamente recoberto com lençóis brancos, sugerindo não haver dúvidas sobre a ausência de vida".
Parte do armamento utilizados pelos suspeitos de integrar quadrilha de roubos a bancos que foram mortos em Varginha (MG) — Foto: Franco Junior/g1
O inquérito da PF também aponta que uma das vítimas "foi socorrida" com o crânio aberto, sem massa encefálica, em decorrência do disparo de fuzil em sua cabeça. A investigação apontou que o tempo estimado entre o domínio da situação no sítio 1 e o início do transporte dos baleados para a UPA e o Hospital Bom Pastor foi superior a 50 minutos. A PF afirma que somente esse fato já contradiz a versão de prioridade de se prestar efetivo socorro. Os bombeiros militares de Varginha e o Samu foram oficiados e responderam não terem recebido qualquer acionamento.
A PF afirma que todos os policiais que estiveram nos locais dos crimes imediatamente após os eventos de tiro agiram para dificultar os trabalhos investigativos. Aqueles que estiveram nos locais, ainda que não tenham participado da inovação e adulteração desses locais, por omissão dolosa, contribuíram para o resultado criminoso.
Operação
A operação conjunta entre Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal e Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) resultou na morte de 26 pessoas suspeitas de pertencerem a uma quadrilha roubos a bancos no dia 31 de outubro de 2021 em Varginha (MG).
De acordo com a PM, os suspeitos seriam especialistas neste tipo de crime. Um arsenal "de guerra" também foi apreendido com a quadrilha.
Segundo a Polícia Rodoviária Federal, os confrontos com os homens ocorreram em duas abordagens diferentes. Na primeira, os suspeitos atacaram as equipes da PRF e da PM, sendo que 18 criminosos morreram no local.
Em uma segunda chácara, conforme a PRF, foi encontrada outra parte da quadrilha e neste local, após intensa troca de tiros, oito suspeitos morreram.
Armamento apreendido durante operação da PM e PRF que resultou na morte de 26 suspeitos de roubo a bancos em Varginha (MG) — Foto: Tarciso Silva/EPTV
Durante as duas abordagens, foram recuperados, explosivos , armas longas ponto 50 e 10 fuzis, além de outras armas, munições, granadas, coletes, miguelitos e 10 veículos roubados.
A operação da Polícia Rodoviária Federal recebeu o nome de "Audaces Fortuna Sequitur". Segundo a polícia, ela recebeu esse nome por fazer referência "à sorte, que acompanha os audazes".
O que dizem as autoridades
Em nota, a Polícia Rodoviária Federal informou que a Corregedoria-geral da PRF reabriu procedimento apuratório ainda em 2023 frente ao surgimento de novas evidências.
A PRF destacou ainda o compromisso com os limites constitucionais e a defesa do estado democrático de direito, incluídos o princípio da presunção de inocência dos agentes, a garantia ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.
A Polícia Militar informou que acompanha o caso. Segundo a Polícia Federal, o inquérito foi relatado e encaminhado às autoridades.
O Ministério Público Federal informou que recebeu o relatório policial na tarde desta terça-feira (27). Ele agora será analisado para verificar se serão necessárias novas diligências.
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