Decisão condenou ainda a União e o Estado de MG por violações dos direitos humanos durante a ditadura.
Um índio foi mostrado no pau-de-arara em Belo
Horizonte, durante solenidade de formatura da primeira
turma do 'reformatório' em 5/2/1970 -
Foto: Jesco von Puttkamer. Fonte: Jornalistas Livres
A reportagem é de Aloisio Morais, publicada por Jornalistas Livres, 16-09-2021.
A juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves, da 14ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Minas Gerais, condenou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o estado de Minas Gerais pela prática de graves violações dos direitos humanos de povos indígenas ocorrida durante a ditadura militar. A decisão diz respeito à instalação do “reformatório Krenak”, uma espécie de campo de concentração de índios dessa e de outras etnias, à criação da Guarda Rural Indígena (Grin) e à transferência de índios Krenak da região da cidade de Resplendor, no Vale do Rio Doce, em MG, para a fazenda Guarani, no município de Carmésia, MG, a cerca de 300 quilômetros.
A descoberta da escola especializada a ensinar técnicas de torturas a indígenas foi feita pelo jornalista livre Marcelo Zelic, caso apurado pela Comissão Nacional da Verdade que acabou originando a ação na Justiça.
A União deverá reunir e sistematizar toda a documentação relativa “às graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas e que digam respeito à instalação do reformatório Krenak, à transferência forçada para a fazenda Guarani e ao funcionamento da Grin. As informações deverão ser publicadas na internet. Além disso, União, Funai e estado de Minas deverão promover uma cerimônia pública para reconhecer as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguida de pedido público de desculpas ao povo Krenak.
A Funai também foi condenada a concluir um processo administrativo referente à identificação e delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões, em Conselheiro Pena, no médio Rio Doce. Após a conclusão, deverá também estabelecer ações de reparação ambiental das terras degradas pertencentes aos Krenak.
Reformatório
O reformatório Krenak era um centro de detenção e de custódia indígena criado em 1969 e que abrigou, até 1972, centenas de indígenas considerados rebeldes levados de vários estados do Brasil pela Grin. Os Krenak, que viviam no local, passaram também à condição de detidos, aumentando ainda mais o contingente. Os índios chegavam ao reformatório Krenak sem uma “pena” previamente definida a cumprir. Assim, o tempo de permanência dependeria de uma análise da autoridade responsável pelo estabelecimento.
Na verdade, a Grin era uma espécie de milícia armada criada pela Funai e integrada por índios de etnias variadas, que faziam “ações de policiamento” e mantinham a “ordem interna”, coibindo o uso de bebidas alcoólicas e evitando que os índios abandonassem suas áreas para praticar assaltos e pilhagens na povoações e propriedade rurais próximas.
“Se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres”, contou Douglas Krenak. “Não tinha juiz, não tinha advogado, não tinha Justiça, não tinha nada. O capitão Pinheiro era quem decidia quem ia para a cadeia e quanto tempo ficava”, disse a indígena Maria Júlia, em depoimento.
Em 1972, parte dos indígenas foram transferidos do reformatório para a fazenda Guarani, no município de Carmésia, a mais de 300 quilômetros de distância, na região do Vale do Aço de Minas. O exílio forçado teve como objetivo liberar terras para posseiros. Há relatos de que diversos índios, contrários à transferência, foram amarrados e enviados à força.
A sentença foi proferida pela Justiça Federal após denúncia apresentada em 2019 pelo Ministério Público Federal (MPF) em Governador Valadares. O órgão pediu a condenação do capitão reformado Manoel dos Santos Pinheiro com a perda de patente e aposentadoria, e dos entes federais e estaduais pelos crimes de genocídio contra a etnia Krenak. Segundo a denúncia, o policial é responsável por diversas violações aos direitos humanos praticadas contra os Krenak, com o objetivo de destruição do grupo étnico, no contexto da criação da Guarda Rural Indígena (Grin), da instalação de um presídio chamado de “Reformatório Krenak” e do deslocamento forçado para a fazenda Guarani, no município de Carmésia, que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas.
“Nesses três episódios, ocorridos durante o regime militar, o Estado brasileiro praticou graves violações a direitos humanos contra os Krenak, povo indígena que ocupava terras situadas à margem esquerda do Rio Doce, no município de Resplendor, região leste de Minas Gerais. As violações levaram ao adoecimento psíquico de integrantes da etnia a partir de um processo de traumatização psicossocial coletiva. Também foram violados direitos culturais, reprodutivos e territoriais, dificultando nascimentos no seio do grupo e criando sérios obstáculos à reprodução física, social e cultural do grupo indígena”, detalha o MPF.
Tortura
Um detalhe destacado pelo órgão foi que, durante a solenidade de formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena (Grin), realizada em Belo Horizonte, estavam presentes o então governador de Minas, Israel Pinheiro, o seu secretário estadual de Educação, José Maria Alkmin, que foi vice-presidente da República entre 1964 e 1967, e de outras altas autoridades federais. “Durante o desfile, foi exibido um índio dependurado em um pau-de-arara. A cena, que foi filmada, é a única registrada no Brasil que mostra, em um evento público, um ato de tortura”, lembra a denúncia.
Para o Reformatório Krenak foram enviados indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. No comando do Reformatório Krenak, o capitão Pinheiro administrou suas instalações e a ocupação militar das terras Krenak, sendo também o responsável pela remoção compulsória, em 1972, dos indígenas para a fazenda Guarani, a partir de uma permuta realizada com a PMMG, que era a proprietária da fazenda.
Lá, em Carmésia, os indígenas eram aprisionados por diversos motivos, como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena, além de serem submetidos a trabalhos forçados, tortura e maus tratos. Havia ainda no local uma espécie de solitária, que eles chamavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite com água pingando sobre eles, como forma de punição.
Para os procuradores da República Lilian Miranda Machado e Edmundo Antônio Dias, autores da denúncia, a intervenção militar conduzida pelo acusado sobre o território dos Krenak causou a destruição sistemática do modo de vida do grupo indígena, ocasionando a desagregação social e cultural desse povo. “Percebe-se, portanto, que atuação incisiva do oficial reformado, diretamente ou por meio dos guardas da Grin e dos militares, todos a seu comando, deu-se com o objetivo nítido de controlar o comportamento dos índios Krenak, limitando seu direito de reprodução, de ir e vir e de cultuar suas tradições, na ânsia de destruir esse grupo étnico indígena, cuja extinção não ocorreu devido à enorme capacidade de resistência demonstrada pelos indígenas”, destacaram na denúncia os procuradores.
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