Manifestação reúne mais de mil contra genocídio da juventude negra

Por Pedro Martins
Do Canal Ibase
Foto: Pedro Martins
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Mais de mil pessoas tomaram as ruas do bairro de Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, para protestar contra a chacina cometida por policiais que mataram cinco jovens no bairro de Costa Barros. Cartazes, performances teatrais sobre a violência e o racismo, faixas, falas com críticas duras à política de segurança pública do Estado… Enfim, todos os elementos que devem compor um protesto pela defesa do direito à vida da juventude negra das favelas e da periferia. Mesmo assim, parecia pouco para expressar a indignação e revolta dos presentes. Pouco para expressar a dor e a revolta das mães que perderam seus filhos assassinados pela polícia e que faziam uma fileira expondo as fotos das vítimas cobrando justiça.
Foram 111 tiros disparados pelos policiais, sendo 81 de fuzil e 30 de pistola.Tudo isso pelas costas, segundo laudo da perícia, e contra um carro com cinco jovens entre 16 e 25 anos, todos negros, que saíam para comemorar o primeiro salário de Roberto de Souza, de 16 anos. Este salário vinha de seu primeiro trabalho como jovem aprendiz. Além dos tiros, há indícios ainda de que os policiais tentaram alterar a cena do crime para simular um confronto.
Apesar do tamanho da barbaridade desta situação, o que permeava a fala da maioria dos participantes da manifestação era de que crimes como este não são uma exceção ou um equívoco de maus policiais, mas representam a atuação cotidiana da PM nas favelas do Rio. A consequência desta política de militarização tem sido a perda ou diminuição de diversos direitos, e o direito à vida, ou o direito de existir são faceta mais grave de tantas perdas.
Após a chacina de Costa Barros, a declaração do Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, tratou a conduta como fora do padrão da Polícia Militar: “Ação indefensável, desnecessária e exagerada. É uma demonstração do caráter que têm. Essas pessoas já estão presas. Vão responder criminalmente e administrativamente. Poderão sem dúvida ser expulsos da corporação.”- afirmou o Secretário.
Mães que perderam filhos pela PM estiveram no ato.
Mães que perderam filhos pela PM estiveram no ato.
Ana Paula Oliveira perdeu seu filho Johnatha assassinado por PMs da UPP de Manguinhos em maio de 2014. Recentemente ela visitou diversas cidades na Europa para denunciar a situação de violência policial contra a população de favela e periferia. Ana Paula fez questão de enfatizar que as autoridades do Estado devem responder por estes crimes:”Eu quero sim a punição ao policial que matou meu filho, mas não adianta apenas colocar esse policial. O secretário de Segurança José Mariano Beltrame e o Governador devem ser responsabilizados.”. Ao ser entrevistada, a mãe de Johnatha, que completaria 21 anos neste 4 de dezembro, reafirmou: “Isso não foi exagero, foi uma mosntruosidade que revela a ação dessa polícia nesses territórios. Infelizmente acontece todo dia.”
Números demonstram que violência policial não é caso isolado
Ao olhar os números da violência policial no Rio de Janeiro nos últimos anos, fica difícil aceitar a versão de que se trata de “casos isolados” ou “exageros”, como chama o secretário. Segundo relatório da Anistia Internacional, entre os anos de 2005 e 2014 foram registrados 5.132 assassinatos decorrentes da intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro, uma média de dois “casos isolados” por dia. Desses mortos, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos. Enquanto isso, o discurso do governo estadual é de que se aplica uma política de pacificação. E para quem pensa que o número absoluto desses anos é impressionante mas pode estar caindo nos últimos anos devido ao adjetivo utilizado para tal política de segurança, engana-se. Os dados evidenciam um crescimento na letalidade policial. Em 2013 foram 416 homicídios decorrentes da ação policial; em 2014 foram 584, e até outubro de 2015 já haviam sido registrados 569 homicídios decorrentes da intervenção policial, dado que indica que mais uma vez deve-se superar o número de mortes do ano anteior.
Em entrevista dada no ano de 2013, José Mariano Beltrame afirmou que seria preciso perder uma geração para conseguir implementar o processo de pacificação. A declaração de caráter dúbio quanto ao significado da palavra “perder” causa temor àqueles que moram em áreas militarizadas. Fransérgio Goulart, do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, sempre lembra de tal declaração e reage com indignação: “Que discurso é esse que admite que pessoas vão morrer a partir dessa política.”. Indagado se a favela tem medo, Fransérgio responde: “Um medo constante e histórico. Quando a gente pauta a questão de segurança pública, a instituição polícia é o que me traz mais medo. Quando vejo eles na entrada de Manguinhos a qualquer hora, eu tenho medo.”. Ele ainda acrescenta: “A favela é sempre espaço de exceção. O Estado Democrático nunca aconteceu na favela.”.
“É erro, não é racismo.” – diz Pezão.
Mesmo com os números evidenciando que 79% dos homicídios cometidos pela polícia tem como alvo jovens negros, o governador Luiz Fernando Pezão não considera que haja racismo na ação policial e classifica os fatos como “erros”: “Não envolve racismo. É erro e erro a gente combate como eu falei aqui. A gente vai combater. Não é racismo”- disse Pezão.
Foto: Pedro Martins
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Já Rachel Barros, do Fórum Social de Manguinhos, avalia que a política de “pacificação” reforça a ideia de controlar os corpos da juventude negra e dos moradores de favela devido à militarização de todos os campos da vida imposta nesses territórios. Um dos principais problemas denunciados na manifestação e que não é abordado na maioria dos veículos de mídia empresarial é exatamente a questão do racismo institucional. Para Rachel isso tem um motivo: “O racismo é a grande ferida do Brasil. O Brasil quer fingir que vive uma democracia racial, mas todos os índices mostram que a população negra é a que mais sofre em diversos segmentos da vida com direitos negados. Ter uma manifestação de rua como essa é mostrar o problema da política de segurança pública do Rio de Janeiro e evidenciar o racismo que existe dentro das instituições.”.
Despreparo ou prática cotidiana da polícia?
Além dos dados absolutos , ao se pegar as mortes pelas áreas cobertas pelos batalhões, assusta o crescimento do número de assassinatos cometidos pela polícia na área do 41º Batalhão, que atua onde os cinco rapazes foram mortos. Em 2013 foram registrados 15 homicídios por intervenção policial na região. Já em 2014 foram 43 e até outubro de 2015 já foram registrados 45 mortes (e ainda não estão computadas as mortes dos cinco jovens) pela ação de policiais. O Batalhão que não figurava sequer entre os cinco com mais mortes deste tipo em 2013 é atualmente o que mais mata. Ao comentar os números do Batalhão, Beltrame afirmou que há uma preocupação com a alta letalidade, mas culpou o despreparo dos policiais que praticaram o crime: “”Essas pessoas foram avaliadas. Você não tem como, em um concurso público, saber o que essas pessoas vão fazer com uma arma na mão. Elas são treinadas em um princípio de que armas você só usa quando sua integridade física está em risco ou a de terceiros”.
 Ana Paula Oliveira disse que quando viu a morte dos cinco jovens sentiu como se seu filho Johnatha tivesse morrido de novo. Para ela, as cinco mortes em Costa Barros não não foram causadas por despreparo dos policiais: “Esses exageros só acontecem com pobres negros, favelados e moradores de periferia. Isso é uma demonstração da preparação da polícia para atuar dessa maneira com uma parcela da sociedade, que somos nós, os excluídos, marginalizados, moradores de favela e da periferia.”.
Atuação policial tem uma construção histórica segundo representante da OAB
Foto: Pedro Martins
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O secretário da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), André Barros, acompanhou toda a manifestação e avalia que os problemas da atuação policial são decorrentes de sua construção histórica.  Para ele, dois elementos marcantes de nossa história, a escravidão e a Ditadura Militar, explicam a forma de agir da PM: “Esse genocídio dos cinco jovens negros, atingidos com 111 tiros acontece por conta de uma política histórica do Estado brasileiro de genocídio contra os negros. Nós vivemos um Estado de Genocídio.”. André expôs ainda que existe uma lei que tipifica o crime de genocídio que é quando um grupo é atacado por razões raciais, étnicas ou religiosas. Por conta disso, André classifica que temos em curso um genocídio dos negros promovido pelo Estado brasileiro. Além disso,  o advogado faz questão de frisar que as práticas como ocultação de cadáver, alteração da cena do crime, desaparecimentos são práticas que vêm da Ditadura Militar e permanecem até hoje na polícia.
Relatório do Fórum de juventudes aponta mais violações através de pesquisa com metodologia própria
Apresentado no final de agosto deste ano, orelatório do Fórum de Juventudes aponta os mais diversos impactos causado pela militarização na vida dos moradores de favela do Rio de Janeiro.Perseguição a comunicadores comunitários, ocupação militarizada de escolas e de postos de saúde, controle total sobre o lazer da população e também sobre os corpos destes cidadãos são algumas das violações apontadas. A metodologia de construção foi denominada pelos participantes de Cartografia Social. Segundo Fransérgio Goulart, o próprio método é uma forma de disputar as políticas de segurança e empoderar os moradores de favela que participam: “A cartografia nos ajuda a construir um contra-discurso a partir dos indivíduos que vivem essa realidade que colocam os problemas. Podemos gerar algo diferente do senso comum que tem sido construído.”.
Foto: Pedro Martins
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Após mais um “caso isolado”, com cinco vidas tiradas por 111 disparos do Estado, a necessidade de construir algo diferente parece urgente. Enquanto o governador nega o racismo institucional da ação policial e o Secretário de Segurança classifica 111 (vale sempre repetir este número por mais atordoante que seja) tiros como “exagero”, a construção do contra-discurso de jovens negros de favela e periferia parece lembrar que, mais que um direito humano à vida, está colocada no momento a necessidade de se garantir o direito de existir de toda essa população marginalizada e cujas políticas públicas são sempre mediadas pela repressão policial.