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quarta-feira, 19 de maio de 2010

chacina da Candelária...


Dez anos da chacina da Candelária
Por Artigo (Maria Eduarda Mattar) Cartum (Latuff) 23/07/2003 às 20:07

Artigo escrito por Maria Eduarda Mattar. Visite também
"A Polícia Mata!", ensaio de cartuns hospedado pelo Movimento Tortura Nunca Mais de Pernambuco:
http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mil/mil_eventos/latuff/eve_latuff01.htm
CMI Brasil - Dez anos da chacina da Candelária

Chacina da Candelária

CANDELÁRIA, 10 ANOS DEPOIS


Maria Eduarda Mattar
Brasil, junho de 2003.


De um total de 72, oito morreram. Os tiros foram disparados por policiais militares - em sua maioria - e civis que pertenciam a grupos de extermínio. As vítimas dormiam e, por isso, não tinham como reagir. O motivo certo não se sabe, mas existem sérias indicações de acerto de contas ou de eliminação pura e simples. A data era 23 de julho de 1993. Foi nessas condições que aconteceu a chamada Chacina da Candelária, crime que chocou a opinião pública nacional e internacional, não só pelo fato de ter sido cometido contra crianças e adolescentes - algo que por si só assusta e deflagra a ação de defensores dos direitos humanos -, mas pela crueldade e frieza dos assassinos, que atiraram enquanto as vítimas dormiam, nas proximidades da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completava, então, três anos de existência, e se a nova lei - marco na defesa dos direitos da infância e da adolescência - ainda estava sendo devidamente assimilada e incorporada por organizações da sociedade civil e por educadores, não chegava nem perto de ser entendida pelos policiais que agiram na noite de 23 de julho. Para uma polícia pouco preparada, noções sobre direitos de crianças e adolescentes - ainda mais quando estes são pobres, alguns infratores, e vivem nas ruas - são como língua estrangeira. Ainda hoje as polícias não estão preparadas para lidar com os conceitos que a lei estabelece para o atendimento à infância e à adolescência.

A verdade é que pouco se sabe sobre o motivo exato pelo qual oito meninos morreram naquela noite. Poderia ter sido puro extermínio endereçado àqueles que cometiam algum tipo de infração, por parte de policiais descontentes. Pode, também, ter sido represália pelo fato de um dos garotos ter atirado pedras contra um policial militar (versão que foi a aceita e considerada durante o processo judicial que se seguiu ao crime). Mas o que a grande mídia se furtou de dizer é que a corrupção policial teve grande peso no que aconteceu. "Eu sempre falei, mas ninguém nunca noticiou. A grande verdade é que os policiais foram lá matar um dos meninos - um dos mais velhos - que não havia repassado para um dos PMs a porcentagem do que ele tinha vendido de drogas", acusa a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, que ficou conhecida como uma das únicas pessoas a dar apoio aos meninos antes e depois da chacina.

Ela acusa com conhecimento de causa: já vinha realizando atividades com eles três anos antes dos assassinatos. "Eu vinha denunciando diversas coisas, antes mesmo da chacina, mas ninguém nunca fez nada", relata. Hoje, Yvonne lidera o Projeto Uerê, o qual classifica como um lugar "onde se faz revolução mental para mudar o Brasil". A intenção do espaço é proporcionar uma educação alternativa e especial, preventiva do ato infracional e da violência doméstica voltada para crianças e jovens em situação de risco social.

Seja por drogas, por ódio, por dinheiro ou por pura intolerância, o fato é que naquela noite morreram oito crianças e adolescentes - que podiam ou não ter a ver com o motivo do crime, que podiam ou não estar envolvidas com venda de drogas ou outros delitos. Embolados que estavam - afinal, era pleno inverno - foi atingido quem estava na frente. Morreram sem julgamento e sem possibilidade de defesa. É isso que faz do caso um claro e direto atentado aos direitos humanos e aos direitos das crianças e adolescentes que o ECA tanto queria consolidar na sociedade.

Um dos meninos foi atingido e sobreviveu. Wagner dos Santos, que hoje em dia vive na Suíça, protegido depois de receber ameaças, chegou a testemunhar no processo criminal que indiciou sete policiais, entre militares e civis. Logo após a chacina, foram alvo de processo o ex-PM Marcos Vinícius Emmanuel e os policiais militares Jurandir Gomes de França, Cláudio Luiz de Andrade dos Santos e Marcelo Cortes. Mais tarde, em 1996, Nelson Oliveira Cunha confessou ter participado do crime e acusou Marco Aurélio Dias Alcântara, Arlindo Lisboa Afonso Júnior e Maurício da Conceição, conhecido como "Sexta-Feira 13". Hoje em dia, o ex-PM Marcos Vinícius Emmanuel cumpre pena de 300 anos de reclusão, em regime fechado. O último julgamento que recebeu, no 2º Tribunal do Júri do Estado do Rio, aconteceu em 27 de fevereiro deste ano. Nelson Oliveira dos Santos Cunha foi condenado por tentativa de homicídio, pela qual cumpre 18 anos de reclusão. Arlindo Afonso Júnior ainda não foi julgado pelo Júri Popular. Marcos Aurélio Dias Alcântara foi condenado por oito homicídios e cinco tentativas de homicídio e cumpre pena de 204 anos. Marcelo Ferreira Cortes, Cláudio Luiz Andrade dos Santos e Jurandir Gomes de França foram julgados e absolvidos por tribunal de júri popular. Sexta-Feira-13 foi assassinado antes do julgamento e posteriormente seria comprovada sua participação no crime.

Apesar de aparentemente a Justiça ter feito sua parte, alguns erros são apontados. Um deles, levantado por Yvonne, é o fato de que dois rapazes que assistiram ao crime não foram usados como testemunhas de acusação. Motivo: eram homossexuais e isso os desabonou. Outro ponto que poderia ser melhor apurado: a própria Yvonne não testemunhou. Ela que, pela familiaridade e pelo tempo de trabalho com os meninos, tinha muitas informações, coletadas junto a eles próprios, para repassar. Para a pedagoga Cristina Salomão, da Associação São Martinho - entidade que atua em diversas frentes para ressocializar e prevenir que mais crianças vão para as ruas -, as falhas no processo judicial deste caso servem para "perpetuar certas questões, como a impunidade que está presente em todas as esferas da sociedade brasileira". Na época da chacina, Cristina coordenava a Casa das Meninas, programa do governo estadual voltado especificamente para garotas que viviam nas ruas. Cristina conta que a primeira sensação é a de "dor, por ver crianças e adolescentes tão maltratados". Já Yvonne relata a perspectiva dos meninos envolvidos diretamente no episódio. "Eles estavam revoltados, pois todos sabiam que mais dia, menos dia aquilo ia acontecer", diz.

Lições não aprendidas

A chacina serviu para trazer à tona uma triste realidade da época: a preparação, técnica ou conceitual, das polícias não era compatível para lidar com as crianças e os adolescentes que viviam nas ruas. E o atendimento a esses meninos e meninas por parte dos governos municipal e estadual era ineficiente - afinal, eles continuavam preferindo ficar nas ruas a fazer uso das poucas alternativas que existiam.

O mais triste: hoje em dia, pouca coisa mudou. Nos primeiros dois a três anos após o crime, com a atenção da mídia, de ONGs de direitos humanos e da opinião pública, algumas iniciativas foram tomadas, como a criação de abrigos. Porém o choque geral da famosa Chacina da Candelária não se traduziu em mudanças práticas e eficientes. Tanto que agora, quase dez anos depois do ocorrido, muitas são as possibilidades de que aconteça algo nos mesmos moldes, com a mesma dimensão. Para se ter uma idéia, Yvonne Bezerra de Mello contou informalmente, há duas semanas, o número de meninos dormindo nas ruas do Rio de Janeiro, desde a Central do Brasil (no Centro) até o Leblon (zona sul). "Havia mais de 250; só nas imediações da Candelária estavam cerca de 45", relata.

Talvez a única transformação positiva tenha sido apenas a maior mobilização da sociedade civil. Diversas ONGs surgiram neste contexto, algumas especificamente para tratar da questão da infância e da adolescência ou para tentar botar o ECA em prática. Além disso, atualmente existe, no âmbito municipal, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que conta com representantes de instituições da sociedade civil ligadas ao tema. Os novos membros do CMDCA estão tomando posse nesta sexta-feira, dia 27.

Cláudia Cabral, diretora-executiva da Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH) e uma das pessoas eleitas, ao comentar sobre o pouco aprendizado retirado do episódio trágico da Candelária, tece críticas à atuação que os governantes vêm tendo há décadas. "A cultura política, a forma como os nossos políticos gerenciam as ações nessa área, deveria ter mudado e não aconteceu como deveria. É uma questão cultural muito difícil. A escolha das pessoas que ficarão a cargo dos programas na área é muito mais política do que baseada na competência da pessoa para tratar daquele tipo de assunto", aponta ela. Isso, segundo Cláudia, faz com que, primeiro, as políticas implementadas não sejam elaboradas por indivíduos que conhecem as necessidades reais e, segundo, provoca falta de continuidade das ações, modificadas a cada novo governo. Para Cristina, da São Martinho, "não temos política de segurança e de atendimento eficazes. A lição mais dura é que nada mudou".

Não só as políticas públicas e sistemas de atendimento precisam de aprimoramento. A própria atitude da sociedade para com as crianças e adolescentes recrudesceu. Em parte por que a violência, de uma maneira geral, aumentou no país, e o Rio de Janeiro não ficou atrás. Em parte porque muitos meninos e meninas são, sim, autores de pequenos delitos e infrações. Porém podem ainda ser recuperados, e é isso que a sociedade não enxerga com clareza. Não vê que a sua atitude - a de alijar essas crianças - só contribui para que eles acabem ficando cada vez mais à margem da sociedade. Ou seja, em outras palavras, a atitude das pessoas frente aos adolescentes e às crianças que moram nas ruas contribui, sim, para o agravamento da situação.

Pedro Roberto Pereira, advogado do Centro de Defesa da São Martinho, enxerga isso como um hiperdimensionamento. "Na maioria das vezes, os garotos são mais vítimas do que autores. Você pode ver isso nas estatísticas. Aqueles que cometem crimes não cometem, na maioria das vezes, crimes mais graves. Normalmente são delitos menores, como roubos e furtos", explica Pereira. De acordo com dados de um levantamento feito pelo IPEA, em parceria com outras entidades, nas instituições de privação de liberdade, roubo foi o delito praticado por 29,5% dos 10 mil meninos; furto foi a infração de 14,8% dos garotos e 8,7% traficaram drogas. Somadas as porcentagens destes três tipos de delitos, que não atentam contra a pessoa, representam 53% das infrações.

Cláudia acredita que, por desconhecerem esses dados, as pessoas tem reações extremadas. "A população tem reagido de duas formas: ou dá esmola, ou fecha o vidro do carro. Em outras palavras, ou têm pena ou medo", define Cláudia. Para ela, seria preciso que a sociedade se engajasse mais, entendesse melhor a situação, pois a mazela acaba sendo de todos e atingindo o conjunto. Cristina, da São Martinho, acredita que parte da responsabilidade por essa atitude fria da sociedade é da mídia, que não mostra que existem alternativas, que há projetos para essas crianças e esses adolescentes.

Enquanto a maior parte da sociedade não muda e os governos tampouco, essa conjunção de fatores vai formando, em silêncio, condições para que as tensões se acirrem e novos confrontos aconteçam, com uma característica tão previsível quanto desanimadora: os motivos, os métodos e os desfechos continuam os mesmos de dez anos atrás. Assim, novas "chacinas da Candelária" poderiam acontecer? Cristina acredita que sim, e vai além: "Já estão acontecendo, de forma silenciosa, talvez não com o volume e o impacto daquela, mas estão ocorrendo". Ela exemplifica contando o caso do garoto Wallace, que era atendido pela São Martinho. Em janeiro, ele foi assassinado na Lapa com um tiro pelas costas, disparado por um PM que queria o dinheiro que Wallace levava consigo. Yvonne também acredita na ocorrência de mortes silenciosas e inexplicadas de crianças e adolescentes que vivem nas ruas. "Acontecem pequenas chacinas a todo momento. E elas são vítimas em igual intensidade, tanto de policiais quanto de bandidos".

Ou seja, a situação precária e desamparada na qual meninos e meninas de hoje se equilibram para chegar pelo menos até o dia seguinte é praticamente a mesma que os garotos que dormiam na Candelária experimentavam em 1993. Talvez os meninos e as meninas de agora pudessem contar com aqueles que há dez anos eram crianças e adolescentes e que hoje poderiam dar conselhos sobre como sobreviver não a dias, mas a anos nas ruas. Ou, quem sabe, poderiam aconselhar sobre como sair delas. Porém, a vida não reservou sorte para a maioria dos meninos que sobreviveram àquela noite de sangue em frente à igreja: um levantamento feito por Yvonne há dois anos revelou que 39 deles já haviam morrido, todos por morte violenta, nas avenidas e vielas da cidade. Talvez o mais espetacular desfecho tenha sido o de Sandro do Nascimento, que seqüestrou o ônibus 174, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, no dia 12 de junho de 2000. Ele terminou o dia morto dentro do camburão que deveria levá-lo para a delegacia. O episódio também recebeu grande atenção da mídia, e de novo se discutiu a formação e as perspectivas apresentadas a crianças e adolescentes que vivem nas ruas, as formas para saírem dessa situação e para exercerem sua cidadania. Mais uma vez esses debates ficaram esquecidos pela sociedade poucos anos depois do que o fato ocorreu. E vão continuar esquecidos até que um novo episódio aconteça na cidade que não soube cuidar ou rezar pelos mortos em frente à igreja.

http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mil/mil_eventos/latuff/eve_latuff01.htm

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