Essa e a verdadeira cara da nossa Segurança Publica

Essa e a verdadeira cara da nossa Segurança Publica

domingo, 22 de janeiro de 2017

Crueldade e impunidade marcam crimes de policiais


   AGÊNCIA DE REPORTAGEM E JORNALISMO INVESTIGATIVO

Crueldade e impunidade marcam crimes de policiais

A Salvador que atrai milhares de brasileiros e estrangeiros para o Carnaval com seus ritmos afro vive um apartheid violento nas ruas, como se a imensa maioria negra não tivesse direitos. Enquanto o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do bairro mais rico da capital, Itaigara, com 17 mil habitantes, é semelhante ao da Noruega (IDH 0,971), os 45 mil moradores de Periperi (IDH 0,668), localizado no Subúrbio Ferroviário, que concentra mais de 50% dos homicídios da capital baiana, tem qualidade de vida pior do que a do Gabão.
É esse caldo de cultura que favorece o descaso das autoridades baianas na investigação e no apoio aos familiares das vítimas de matadores , em sua maioria negros jovens – praticado por policiais militares e civis, seguranças particulares e outros integrantes de milícias, quase sempre por preconceito ou vingança. O relato de alguns dos principais casos documentados por familiares e movimentos sociais é mais contundente que qualquer explicação. Leia abaixo:
1996- Um menino estava em frente a um supermercado na região da Paralela e sem querer pisou no pé de um policial, um típico matador. Foi perseguido e assassinado a tiros. O mesmo policial esperou que o irmão do garoto assassinado completasse 18 anos e o executou, “para evitar que ele pensasse em se vingar”. O caso é um dos 20 pesquisados pela socióloga Vilma Reis no trabalho de graduação “Operação Beiru: falam as mães que tombaram”. Vilma conta que no dia da entrevista com essa mãe a casa começou a ser rondada. “Uma coisa é a vítima te dizer que está sendo seguida, outra é você constatar. Naquela hora eu pensei: coloquei aquela mulher em risco. Saí muito angustiada. Não aguentei e voltei. E ela me disse: “Todos os dias eu vivo isso. É o mesmo policial que matou meus dois filhos’. Ou seja, o assassino desenvolveu uma espécie de posse em relação àquela família. É uma coisa louca e de um desmando total. Aquela mulher recorreu a diversas instituições sem conseguir encontrar nenhum tipo de proteção, ou responsabilização do assassino pela morte dos filhos.”
2001 – Caso narrado na CPI deExtermínio no Nordeste (2005) que ocorreu no interior da Bahia, em um lugar chamado Cruz das Almas: “Na semana em que um policial militar foi assassinado por alguém de nome Daniel, cinco jovens foram executados no final de semana porque se chamavam Daniel ou tinham parente chamado Daniel”.
2007 – 1º de Março. Clodoaldo Souza, o Negro Blul, 22, e Cléber de Araújo Álvaro, chamado de Bronka, 21, ambos do movimento hip hop e da “Campanha Reaja ou Será Morto, Reaja ou será morta” foram atacados depois de uma apresentação no Pelourinho, centro de Salvador, quando retornavam a pé a Nova Brasília, onde moravam. Bronka sobreviveu porque se fez de morto. E foi ele quem relatou o crime: “A gente já tinha passado pelo ponto de desova da Estrada Velha do Aeroporto, quando fomos parados por policiais militares em uma viatura. Eles pediram que a gente levantasse a camisa para ver se tinha arma. Pouco depois deles saírem, apareceram dois homens armados e à paisana. Eles nos obrigaram a ficar de joelhos, a, colocar as mãos na cabeça e tirar os bonés. A gente chegou a falar que não tinha feito nada, mas eles foram metendo bala na covardia. Blul chegou a pedir: “Por favor, minha vida”. E os caras, debochando disseram: “E agora, negão, cadê vocês? Reaja”. Os assassinos fugiram e deixaram no chão uma escopeta.
Bronka foi levado para o Hospital Geral Estadual (HGE), em Salvador. A família, temendo pela vida do rapaz, já que o crime tinha como autores policiais, chamou Andreia Beatriz Silva dos Santos e Hamilton Borges, coordenadores da Campanha Reaja. “Acionamos o governo para que Bronka fosse transferido para outro hospital, porque não tinha segurança no HGE, não confiávamos na polícia. Ele foi transferido para o Hospital das Clínicas. Fizemos tudo para que ele não fosse descoberto, mas o próprio governo o entregou para a delegada da 10ª, que queria ouvi-lo. Ele, que era a vítima, passou a ser suspeito virou, na perspectiva do Estado, réu. Sumiram com os documentos dele do hospital, de sua casa, sequestraram sua a mãe”, lembra Andreia Beatriz.
Hamilton teve que se esconder da polícia por exigir do governo que cumprisse a obrigação de investigar o caso. “Eu tive que ficar um tempo num terreiro, na casa de Oxumaré. Mas em vez de fugir, porque eu não devo nada, fui a um evento do Ministério Público, que estava cheio de gente da segurança pública, polícia militar, civil. Cheguei lá, me identifiquei e disse: ‘Vocês estão me procurando, tem que ser oficialmente. Eu tô aqui. Porque vocês estão me procurando? Gerou aquele constrangimento’. Outras três meninas que faziam o mesmo tipo de trabalho de Blul tiveram as casas invadidas, vasculhadas. Nossos telefones foram grampeados, várias pessoas nossas presas e não eram usuários de droga nem nada, mas eles (policiais) plantavam drogas para criminalizar as pessoas. Tudo isso foi o que gerou a partir da morte de Blul”, relata.
Andreia Beatriz, lembra que a Campanha Reaja conseguiu, com doações, mudar a família de bairro, já que o governo não estava garantindo a proteção de Bronka e familiares.
“O Estado vitima por vários aspectos quando fere, tenta matar, como quando negligencia, não dá o atendimento do SUS. Tudo foi feito por nós, porque o governo não fez nada, pelo contrário. Até a medicação tivemos que providenciar. Montamos uma rede de cuidados: cuidado físico, de saúde mental da família. Ele ficou quase um ano sem andar, com projeteis alojados no corpo, na virilha, que afetou bastante o movimento. Voltou a andar, mas continuou com sequelas até ser morto”. Seis anos depois da chacina, em 18 de maio de 2013, Bronka foi executado com um tiro na cabeça disparado no  meio da rua, no bairro onde morava (ele e a família tinham se mudado de Nova Brasília após a chacina de 2007).
2007 – Conhecida como Chacina do Calabetão, um bairro na periferia de Salvador. A líder do Movimento Sem Teto da Bahia, Aurina Rodrigues Santana, 44 anos havia denunciado policiais militares por tortura de seus dois filhos adolescentes, em maio. Os PMs invadiram a casa de Aurina e deram chutes, socos, bateram com barras de ferro e sufocaram seus filhos com sacolas plásticas. Os militares ainda jogaram óleo quente na cabeça do rapaz.
Em 14 de agosto, uma semana após o depoimento de Aurina e dos filhos na Corregedoria da PM, em que ela e os adolescentes afirmaram que poderiam reconhecer os torturadores, a casa da família foi invadida por policiais. Foram mortos a tiros Aurina Rodrigues Santana, o filho Paulo Rodrigo Santana, 19, e Rodson da Silva Rodrigues, 28, companheiro da líder dos Sem Teto. A filha mais nova, de 13 anos, escapou porque não estava em casa na hora do crime.
Os executores ainda deixaram junto aos corpos 48 trouxas de maconha e 30 pedras de crack numa tentativa de envolver a família com o tráfico de drogas e atribuir as mortes à disputa entre grupos rivais de traficantes. O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (CEDECA/BA), o Movimento Negro Unificado (MNU), a Justiça Global, e outras dez organizações não governamentais enviaram denúncia à ONU. Nenhum PM foi responsabilizado pelos crimes.
2008 – 22 de janeiro. Parente de um policial teve a bicicleta roubada. O trapezista Ricardo Matos dos Santos, 21, jogava futebol com vizinhos em uma quadra no bairro Boca do Rio, comunidade Bate Facho, por volta das 23h55. Dois carros pararam em frente ao campo e futebol, homens desceram abrindo fogo contra todos. “Ricardo foi atingido na perna e caiu. Ainda assim ficou de pé, levantou os braços e se identificou. Ele ainda disse aos policiais que não era quem eles procuravam, mas foi colocado no chão e executado com mais sete tiros”, relata o pai do rapaz, Jorge Lázaro Nunes dos Santos.
O trapezista Ricardo Matos morava em Belo Horizonte, trabalhava no Le Cirque e estava fazendo formação para ingressar no Cirque du Soleil e mudar para a França. Ele tinha ido passar as férias com a família. Após o crime, os pais e quatro irmãos mais novos de Ricardo tiveram que deixar a casa própria, onde moravam. Os parentes chegaram a ser incluídos no Programa de Proteção à Testemunhas (Provita) por pressão do movimento social, articulado em torno da Campanha Reaja e do Circo Picolino, mas desligados em novembro do mesmo ano sob alegação de “reiteradas quebras de normas, incompatíveis com a permanência na proteção”.

Estado não apoia vítimas nem investiga crimes

Hamilton Borges, do Quilombo Xis e da Campanha “Reaja ou será morto, reaja ou será morta”, conta que sucessivas vezes cobraram do estado proteção à família. “Nós questionamos o desligamento. Quebrar norma é o pai correr atrás de tudo quanto é instituição para ver o caso de seu filho chegar a julgamento? Este caso só andou por insistência de Lázaro. Desqualificar familiares de vítimas tem sido uma estratégia muito conveniente para o Estado”, reclama Hamilton.
Segundo ele, Jorge Lázaro tentou que sua família fosse incluída no PPCAM, em função de ter filhos adolescentes sob ameaça de vida, e a reinclusão no Provita. “Os dois programas negaram e no dia 10 de março de 2013 mataram o irmão de Ricardo, Enio Matos (19 anos), a tiros no Bairro da Paz. O Estado é responsável por esses extermínios”, acusa o ativista.
A família dos dois meninos desmoronou após o homicídio de Ricardo e passou a não ter paradeiro certo. A mãe entrou em depressão profunda. O pai tomou como missão de vida responsabilizar os três PMs acusados do primeiro crime, já que do segundo não há nem testemunhas ou informações, e percorreu uma infinidade de instituições públicas em busca de justiça: SSP, Polícia Civil, Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, Secretaria de Direitos Humanos e Justiça da Bahia, Ministério Público estadual e Federal, Ouvidoria, entre outras. Nessa busca, conseguiu um documento com escutas telefônicas autorizadas que revelam pouco do caso, mas deixam entrever que existe participação de um oficial e que seria protegido pela instituição, além de uma “irmandade”, uma ação de grupos de extermínio com participação de PMs.
Após a morte de Ênio, pressionado pelos movimentos sociais, o governo arrumou uma proteção para a família no mínimo inusitada: colocou a mãe e duas filhas adolescentes numa casa que abriga mulheres vítimas de violência, e Jorge Lázaro e o menino de 14 anos em um abrigo para moradores de rua na periferia de Salvador. Há seis anos os filhos não frequentam a escola, a família não tem renda nem perspectiva para sair dessa situação.
Na prática, eles só contam com a solidariedade dos movimentos sociais. A Campanha Reaja buscou doações de dinheiro, alimentos e roupas e está tentando conseguir um local seguro para juntar novamente a família. A ideia é que os jovens consigam retomar os estudos e os pais sejam assistidos por psicólogos e retomem a vida. As sequelas são muitas. A dor e a loucura são muito próximas e o futuro parece algo muito distante da realidade dos Matos.
No próximo dia 27 de julho acontecerá uma audiência de instrução e julgamento dos acusados da morte de Ricardo Matos: os soldados Marco Antônio Carvalho Santa Bárbara, José Roberto dos Santos e Adilson José da Silva Souza, que à época eram lotados na 39ª Companhia Independente (Imbuí/Boca do Rio).
O caso está sendo enviado pelo Quilombo Xis e Justiça Global para a Comissão de Direitos Humanos da OEA.
2012 – Quarta-feira, 22 de agosto, 17h30. Um dia chuvoso e frio em Salvador. O barbeiro Emerson da Fonseca, 25 anos, que a família chamava de Pururuca, dormia com a filha de três meses em um dos cômodos da casa, num dos becos no Nordeste de Amaralina, quando três homens que se diziam policiais abriram a porta da sala que estava destravada. A avó de Emerson, dona Maria José, uma senhora de 76 anos, até pensou que era o outro neto de 17 anos. Assustou-se ao ver aqueles homens de preto, com coletes à prova de balas, capuz e luvas.
Os homens apontaram a arma para avó e para a filha, tia de Emerson, que estava deitada no quarto colado à sala e pegaram o Emerson. Impossibilitada de andar por sofrer de hidroencefalia, a tia começou a gritar: “Deixe ele moço”. Um dos policiais apontou a arma para ela e a mandou calar a boca. A mãe do jovem, Joselita da Fonseca, conhecida como Nega, que vive de vender salgados com a mãe em uma barraca do bairro, estava nos fundos da casa. Ao ouvir os gritos correu. Perguntou à polícia para onde iam levar o filho, porque queria ir junto. Eles disseram que o levariam para a DP de Roubos e Furtos e um dos homens bateu no peito de Nega impedindo que ela tentasse ir com eles. “Eu ainda disse que meu filho não era ladrão, que estavam levando a pessoa errada”, contou. Além de levarem Emerson, os policiais carregaram o celular do rapaz e da avó.
Nega começou naquela noite uma peregrinação por delegacias. Não havia nenhum registro de entrada do rapaz em qualquer lugar. Ela quis dar queixa do sequestro, mas a unidade de polícia local se recusou. “A escrivã disse que o povo já estava ligando para saber dele, porque todo mundo sabia que o menino tinha boa índole, que era de família, nunca fez nada de errado”. No segundo dia de buscas, enquanto esperava um delegado chegar, Nega recebeu um telefonema. O corpo de Emerson tinha sido encontrado no Bairro da Paz, em uma área de desova.
Semanas antes Emerson e alguns amigos tinham ajudado a separar uma briga entre uma pessoa e o filho de um policial. Depois disso, vários dos apaziguadores foram assassinados. “Um deles foi morto há uns seis meses na frente do mercado, quando atravessou a rua. Um cara de moto parou e deu tiro nele. O que estava na briga mesmo morreu primeiro que meu filho. Foi um dia de domingo. A história que saiu é que ele trocou tiros com polícia”, conta Nega, que destaca “Curiosamente, as câmeras [da UPP da comunidade] quebraram no dia da invasão de minha casa e voltaram a funcionar dois dias depois”, diz. O assassinato de Emerson foi arquivado como homícidio sem autoria definida.
2013 – No dia 13 de junho, o supervisor de camareiro e capoeirista Carlos Alberto Junior, 21 anos, nascido e criado em Nordeste de Amaralina, estava de folga e seguia para a praia quando, segundo moradores, ele foi rendido pelos policiais na rua e levado para um quintal, onde foi executado com um tiro na cabeça. Antes de ser morto, o rapaz ainda gritou: “Não me matem, sou trabalhador”. De nada adiantou. Os PMs, segundo testemunhas, após assassiná-lo, colocaram pedras de crack e um revólver na mão do rapaz para alegar “troca de tiros com traficantes”.
Revoltados com a morte, moradores incendiaram objetos na rua e fecharam o trânsito de duas vias no Nordeste de Amaralina. Um dos cartazes do protesto chamava a atenção: “O Estado não pode financiar o extermínio”. O rapaz morreu perto de onde mataram, há dois anos, seu primo, o menino Joel Conceição Castro, 10 anos, assassinado dentro de casa também em uma ação da PM. Os 11 militares envolvidos aguardam o julgamento em liberdade.
O pai de Carlos Alberto Santos, conhecido como Mestre Bozó, não esconde a revolta: “Beço (como chamavam Carlos) era um trabalhador. Deixou um filho de dois anos e uma mãe que passou por duas cirurgias de câncer de mama e está na cama. Ele não era um bandido. E enquanto eu tiver vida vou cobrar a punição desses PMs”.
Sete policiais envolvidos com o crime, segundo o comando da PM, foram afastados. O Inquérito Policial Militar tem 40 dias de prazo para conclusão. Moradores de Nordeste de Amaralina disseram que na mesma noite do homicídio os mesmos policiais rondaram a área em um carro descaracterizado, como forma de pressionar possíveis testemunhas.
Lena Azevedo é jornalista investigativa há 32 anos. Trabalhou em jornais em Campinas e em Vitória, onde ajudou a fundar o Notícia Agora e pesquisa desde 2003 o crime organizado e violações de direitos humanos no Espírito Santo. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.

Nenhum comentário:

Postar um comentário