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terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A polícia bandida, Levantamento inédito mostra


Que
a criminalidade entre policiais
atingiu um patamar assustador.......



 
Alexandre Secco


Foto: Claudio Rossi
Imagem do presídio da Polícia Militar de São Paulo,
jamais fotografado anteriormente, onde 290 homens
cumprem pena: desde o episódio da Favela Naval
a corporação decidiu intensificar a punição
aos desvios de conduta da tropa
É terrível quando um servidor público muda de lado, mas isso acontece. Ora é o fiscal da Receita Federal que, em troca de uma caixinha, ensina uma empresa a burlar o Fisco. Também há o técnico do Banco Central que repassa informações privilegiadas sobre juros ou câmbio. Mas nada se compara ao que acontece quando quem troca de lado é alguém que pertence aos quadros da polícia. Há algumas semanas, um tenente-coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro foi preso em flagrante dentro de um desmanche onde foram encontrados vestígios de duas dezenas de veículos roubados. É apontado como chefe do negócio. Em Rondônia, um delegado foi preso carregando 15 quilos de cocaína na viatura oficial. Suspeita-se que seu grupo tenha transportado mais de 1 tonelada de drogas no último ano. Em São Paulo, um menino de 8 anos foi seqüestrado e assassinado com dois tiros na cabeça. Os acusados pelo crime são dois policiais. Em Belém, três ladrões levaram meia tonelada de jóias da agência de um banco. Dois policiais estão envolvidos. Em Alagoas, um ex-comandante da PM prepara-se para enfrentar seu terceiro julgamento por uma série de acusações que já lhe renderam pena de cinqüenta anos de prisão. Seu sócio no crime, um delegado de polícia, foi condenado a 69 anos de reclusão. Eles são acusados de chefiar uma quadrilha de trinta policiais responsáveis por dezenas de assaltos a bancos e assassinatos. A polícia-bandida tornou-se um dos grandes motores do crime no Brasil e um pesado obstáculo à redução das taxas de criminalidade.


O país tem um efetivo de 500.000 homens nas polícias militares, civis e federal. De acordo com um levantamento inédito feito por VEJA nos nove Estados onde há informações acessíveis sobre crimes cometidos por policiais, a taxa de delitos nas três corporações é assombrosa. Nesses nove Estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Alagoas, Pará, Rio Grande do Sul e Distrito Federal) trabalham 300.000 homens e 10% deles são acusados de algum crime. O dado que assusta é que metade dessas acusações é inexplicável porque não se refere àquele safanão a mais na hora da batida policial ou ao tiro que matou um suspeito. Não que esses delitos sejam aceitáveis. Ao contrário. É inadmissível que um oficial da lei cometa abusos, quaisquer que sejam. Ocorre que, diante da lista assustadora de crimes encontrada no levantamento, o safanão e o tiro parecem até pequeninos, por incrível que pareça. Há 15.000 homens acusados da prática de crimes pesados como roubo a banco e carga de caminhão, extorsão mediante grave ameaça, seqüestro, homicídio, tráfico de drogas e formação de quadrilha. Para dimensionar o problema, é bom lembrar que a população carcerária brasileira é de 170.000 pessoas, ou seja, 0,1% da população. Detalhe: um terço dos presos cumpre pena por crimes leves, como furto e agressão física. Descontando essa fatia, chega-se a 115.000 pessoas condenadas por crimes pesados, o que dá uma taxa de sete presos perigosos em cada grupo de 10.000 brasileiros. Entre os policiais, a taxa de acusados de crimes graves é setenta vezes maior – 500 a cada 10.000 homens do efetivo.
Países conflagrados – Os números obtidos por VEJA mostram que a polícia chegou a um estado de calamidade que mais parece um pesadelo. Sem modificar esse quadro, qualquer tentativa de combater a marginalidade tende a fracassar porque depende necessariamente do apoio de uma polícia honesta. É tamanho o envolvimento de integrantes das polícias civil, federal e militar com a corrupção, roubo, seqüestro, assassinatos e tráfico de drogas que não é mais possível esperar que essas polícias contaminadas consigam curvar as taxas de crime. Até porque elas mesmas contribuem para o crescimento dessas taxas. A experiência internacional mostra que, nesses casos, de nada adianta fazer discursos contra o crime se não houver uma vigorosa ação de combate aos graves delitos de conduta dos policiais. Se isso não for feito já, o país continuará como está – com indicadores de segurança só inferiores a países conflagrados.

Nos últimos cinco anos houve um aumento de 400% na incidência dos crimes graves cometidos por policiais. Até a metade desta década, a grande maioria dos processos existentes contra integrantes das corporações, algo como 90% do total de ações, referia-se a delitos ligados a um desvio de função. Ia do tapão à cobrança de propina para encobrir um marginal. São os chamados abusos de autoridade. Atualmente 90% da população dos presídios militares são de policiais flagrados em crimes de roubo, extorsão, tráfico de drogas e homicídios. Na Polícia Militar de São Paulo e do Rio de Janeiro a taxa anual de pessoas punidas por crimes patrimoniais, como roubo, é de 13 por grupo de 10.000 militares. É cinco vezes maior do que no resto da população. Numa pesquisa feita por VEJA, em vinte Estados brasileiros há integrantes da cúpula policial respondendo por acusações de crimes graves. "O crime está aumentando entre nós e não estamos conseguindo barrar a entrada de pessoas indesejáveis na polícia", afirma Rui Cesar Melo, comandante da Polícia Militar de São Paulo, que ordenou uma série de providências para tentar melhorar a corporação. Uma delas, já enviada ao governador Mário Covas, é a adoção do exame toxicológico para admissão dos novos policiais. "Acho que um grande número deles já entra bandido na polícia."

Maioria honesta – É preciso reforçar que a grande maioria dos policiais brasileiros é constituída de gente honesta e trabalhadora. O fato de que tantos policiais se envolvam no crime não quer dizer que as corporações como um todo sejam corruptas. Também não quer dizer que a maior parte da força policial brasileira deixe de preocupar-se com o mau comportamento de alguns colegas. Muitos policiais honestos ficam indignados com a péssima imagem que seus batalhões e delegacias passaram a ter por causa dos maus elementos. O índice de envolvimento de policiais com o crime, no entanto, é tão alto que não se pode mais depender da boa intenção dos honestos para recuperar o prestígio e a eficiência da instituição no Brasil. Algumas providências mais enérgicas precisam ser tomadas para afastar os criminosos. Outro cuidado é reforçar o contracheque dos homens da lei. Um policial militar em início de carreira recebe 700 reais por mês nas principais capitais. É um vencimento semelhante ao de um cobrador de ônibus. Se chegar a tenente, cinco anos depois, pode ganhar 1 500 reais – salário de uma boa secretária. Um policial de Los Angeles recebe até dez vezes mais. Com um saldo desses fica complicado exigir eficiência de padrão internacional.
A criminalidade na polícia tornou-se a preocupação número 1 dos governadores. Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro, já enfrentou duas crises na cúpula da Secretaria de Segurança Pública por causa de acusações envolvendo policiais com o crime. Logo nos primeiros meses de seu governo, dois casos graves de policiais acusados em crimes de violência sexual ofuscaram as comemorações da redução da violência no Estado durante o Carnaval. Há dois meses, o governador foi obrigado a fazer uma intervenção na secretaria ao descobrir o envolvimento de um delegado nomeado pelo chefe da Polícia Civil com quadrilhas que agem no norte do Estado. Depois desse episódio, Garotinho resolveu manter reuniões semanais com a cúpula da segurança. A primeira delas, há um mês, foi interrompida quando o governador recebeu a notícia de que dois policiais militares estavam sendo acusados do seqüestro e da morte de duas crianças, na região sul do Estado. Ele mandou prender os policiais citados. Na reunião seguinte recebeu um plano para deter os roubos de veículos, que vêm batendo recordes no Estado. Uma semana depois, a primeira prisão importante: um tenente-coronel da PM, flagrado dentro de um desmanche. Só neste ano, 24 policiais já foram afastados por causa de envolvimento com roubo de carro. No mais recente episódio, ocorrido na semana passada, a PM abriu um inquérito para apurar a denúncia de que professores da escola de formação de praças, Cefap, estavam ensinando como extorquir e ocultar provas.
Quando policiais encarregados de reprimir o crime saem às ruas para cometê-lo, o país está posto diante de um desafio. Como purificar as corporações para que elas voltem a ser aliadas do cidadão em vez de se comportar como um de seus maiores inimigos? Há algumas iniciativas em curso. O governo federal preparou dois projetos de lei com a finalidade de estabelecer algum tipo de controle mais rígido sobre as polícias. Nos últimos dois anos, o Ministério Público criou em seis Estados grupos especiais de promotores para investigar crimes praticados por policiais. A sociedade respondeu com a criação de serviços independentes de controle. Em quatro Estados foram implantadas ouvidorias de polícia para colher denúncias contra os maus elementos. Esses serviços já recebem 3.000 denúncias por mês – 100 vezes mais do que serviços semelhantes na Inglaterra. Outras seis ouvidorias estão sendo montadas e começam a funcionar até o final do ano. "Como o descontrole sobre a polícia chegou a um nível absolutamente insuportável, estamos em estado de alerta máximo", diz o secretário nacional dos Direitos Humanos, José Gregori.

Mãos ao alto

Há bandidos demais na polícia.
A população carcerária é de
170 000 pessoas, ou 0,1% da sociedade. Há 15 000 policiais acusados de crimes graves, o que dá 3% do efetivo das polícias.
A taxa de crimes está crescendo.
As acusações de roubo, extorsão, tráfico de drogas e homicídio contra policiais subiram 400% nos últimos cinco anos. As ouvidorias recebem 3 000 denúncias contra policiais todos os meses. Proporcionalmente, é 100 vezes mais do que serviços semelhantes na Inglaterra.
Homicídio é o delito mais comum. Proporcionalmente, os policiais respondem até dezesseis vezes mais a homicídios do que os não policiais. Roubo vem em segundo lugar. Também proporcionalmente, o crime patrimonial é até cinco vezes mais comum entre policiais do que entre não policiais. Nas quadrilhas, eles são maioria. Em São Paulo, 60% das quadrilhas investigadas por prática de crime organizado têm policiais envolvidos. A polícia civil é campeã em acusações. Comparados os efetivos das três polícias (federal, militar e civil),
a civil é acusada de ter cometido uma quantidade de crimes
2,5 vezes maior do que a Polícia Militar, que está em segundo lugar no ranking. O critério é proporcional.
A cúpula é pior do que a base. Para cada denúncia de crime contra um investigador da polícia, existem treze denúncias contra um delegado. Na PM, a proporção é de 15 denúncias contra oficiais para cada denúncia contra um praça.
Graças a um trabalho implacável do Ministério Público, São Paulo e Minas Gerais são os Estados onde o banditismo policial é mais bem conhecido. Por meio do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado, Gaeco, formado pela elite dos promotores do Estado, o Ministério Público paulista abriu 150 processos nos últimos três anos para investigar o crime organizado. Segundo o promotor José Carlos Blat, em 60% dos casos surgem nomes de policiais entre as quadrilhas que atuam no tráfico de drogas, roubo de cargas e tráfico de armas no Estado. Um dos principais nomes denunciados é do delegado Edmilson Brancalion, ex-chefe da polícia em uma região com 3 milhões de habitantes. A denúncia dos promotores levou à prisão de Brancalion por seis meses, sob acusação de formação de quadrilha e tráfico de drogas. Os promotores encontraram nos armários da delegacia de Brancalion e dentro do carro de policiais uma enorme quantidade de armas roubadas, drogas e documentos de carros em branco. O delegado foi solto por ordem da Justiça, voltou ao trabalho na delegacia geral da capital e aguarda o julgamento pelas denúncias. "Estou sendo acusado porque encontraram drogas em armários de subordinados meus. Sou um policial honesto. Sempre consegui reduzir as estatísticas de criminalidade onde trabalhei", diz Brancalion. Desde que a investigação deste caso começou, há dois anos, cinco testemunhas foram assassinadas a tiro e outras duas sofreram atentados.
A Assembléia Legislativa de São Paulo abriu uma CPI para investigar o crime organizado no Estado. Escolheu aleatoriamente treze notícias de crimes publicadas nos jornais. O resultado surpreendeu a todos: em 90% dos casos investigados a CPI encontrou o envolvimento de policiais – entre eles, aparece no relatório o nome do capitão da PM Cleodir Fioravante Nardo. Segundo a CPI, o capitão, que ganhava 3.700 reais por mês, movimentou 2,5 milhões de reais entre os anos de 1995 e 1996 e foi denunciado à Justiça por receptação de caminhões roubados. O capitão alega que seu patrimônio pode ser explicado: "Nego ter cometido esses crimes. Minha renda é fruto de uma vida inteira de trabalho vendendo carros e apartamentos", afirma.
Segundo um levantamento da promotoria dos direitos humanos de Belo Horizonte, praticamente 30% dos policiais civis da cidade estão sendo denunciados pela prática de crimes pesados, um índice cinqüenta vezes maior do que o da polícia de Nova York. Para chegar a esse número, a promotoria pesquisou 2.000 processos em trâmite na Justiça da capital que envolvem policiais civis. Um dos principais acusados pela promotoria é o delegado Antônio João dos Reis. Ele já respondeu a seis processos. Foi absolvido em cinco por falta de provas e em um por decurso de prazo. Atualmente responde a um. Seu filho, também policial, está preso condenado por roubo. "Quem me acusa são os bandidos. Isso tudo é uma perseguição contra mim. Não conseguiram me pegar e agora querem o meu filho. Somos duas vítimas inocentes", desabafa Reis.
Os abusos praticados pela polícia no Brasil têm origens históricas. O historiador Thomas Holloway, da Universidade Cornell, revelou um detalhe interessante a respeito. No começo do século XIX, a principal atribuição da polícia nas antigas colônias era capturar e punir escravos fugitivos com chibatadas. Os fugitivos no Brasil costumavam receber 200 chicotadas. Nos Estados Unidos, recebiam vinte. Nesses tempos, a polícia estava a serviço dos donos de escravos contra todo o resto da população. Esse tipo de mentalidade sobrevive até hoje. A polícia trabalha como se fosse adversária da população e não como sua aliada. Diante desse pesadelo, a população fica sem saída. Se denunciar o policial, corre sério risco de vida. Duas das últimas pessoas que levantaram a voz contra policias no Rio de Janeiro foram assassinadas. Um delegado da Polícia Federal está preso acusado de matar o colega nomeado para investigá-lo. Em Pernambuco, Estado pioneiro em programas de proteção à testemunha, metade das pessoas inscritas está sob proteção para fugir de policiais.
Se não denunciar, acaba acobertando os criminosos. Mas aí, que saída teria? Chamar o ladrão? Um pesquisa exclusiva encomendada por VEJA para o instituto Vox Populi revela a sensação da sociedade perante o problema. Para 64% dos entrevistados as primeiras palavras que vêm à cabeça quando pensam em polícia se referem a sensações negativas, como medo. Entre as pessoas com renda familiar acima de 2.700 reais, 55% disseram que ficariam assustadas caso fossem abordadas por um policial.
Arrumar a polícia é uma tarefa muito complicada. Além da criminalidade, ela possui defeitos graves até quando está fazendo o seu trabalho. Na estrutura que compõe o sistema Judiciário, a polícia, que é a ponta, é a mais bagunçada e fora de controle. O Ministério Público desenvolveu mecanismos rigorosos de controle interno e atravessa uma fase de grande prestígio. O Judiciário é moroso, vem trabalhando fixamente sobre a produtividade e enfrenta uma devassa no Congresso que encontrou alguns casos de corrupção. A polícia reúne contra si suspeitas gravíssimas, péssimos indicadores de produtividade e continua intocada. Bastaria uma informação para soar o alarme da intolerância: o índice de esclarecimento de crimes é pífio. Em São Paulo, no Rio e em Minas Gerais, em média, 2,5% dos crimes são esclarecidos, segundo informação da própria polícia. Para se ter uma idéia do desempenho de outros países, nos Estados Unidos a taxa de esclarecimento de delitos é de 22% (veja quadro abaixo). Para piorar, 90% dos testemunhos tomados em delegacias brasileiras são rejeitados pelos juízes porque foram colhidos de maneira irregular. Os policiais se irritam, dizem em entrevista que a corporação prende e os juízes soltam, mas não contam o que fazem no ato da prisão ou durante a coleta do depoimento. Está na polícia o maior entrave ao bom funcionamento da Justiça.

E se a polícia resolvesse trabalhar?

A polícia brasileira tem uma produtividade das mais baixas do mundo. A polícia americana resolve 22% dos crimes. A inglesa, 35%, a canadense, 45% e a japonesa, 58%. No caso do Brasil, a taxa de solução é de apenas 2,5%. É difícil imaginar que a performance pudesse ser pior, mas os especialistas asseguram que, se por um passe de mágica a polícia melhorasse seus indicadores, o sistema judiciário do Brasil entraria em colapso.
Caso os policiais trabalhassem segundo os padrões americanos, estima-se que seriam necessários dez vezes mais juízes para dar conta do aumento no número de processos e cinco vezes mais vagas em presídios para prender os novos sentenciados. Para se ter uma idéia, o sistema carcerário brasileiro está estourado há anos. Onde deveria haver um preso, há 2,8. Ou seja, as penitenciárias têm lugar para 60 000 pessoas, mas abrigam 170 000. Existe ainda uma leva de 240 000 condenados, que não foram presos por falta de vagas. Imagine se a polícia decidisse prendê-los.
É claro que todo mundo quer que a polícia melhore o desempenho. Estes cálculos são apenas um exercício feito pelos estudiosos para mostrar que o problema da segurança no Brasil é muito grave. Além de purificar as polícias, é preciso acelerar a reforma do sistema judiciário e iniciar a construção de novas prisões.
Bota suja – Uma das razões para a polícia estar nesse estado caótico são os critérios empregados para a seleção de praças. A carreira policial é uma das menos exigentes de que sem tem notícia. Como regra geral, o candidato precisa apenas de 1º grau completo. Depois de cinco meses os aprovados estão prontos para o trabalho na rua. Uma das atribuições originais das corregedorias era investigar a vida desses candidatos para reduzir as chances de incorporar marginais à polícia. Com o aumento da taxa de criminalidade entre os policiais já incorporados, a corregedoria não tem tido tempo para esse serviço. Há um detalhe que torna as tentativas de controle um tanto ridículas: a legislação brasileira permite que qualquer um obtenha uma liminar para qualquer coisa. Em função disso, há vários casos de candidatos que não conseguiram passar no concurso para a Polícia Militar, no entanto ingressaram na força assim mesmo, por decisão judicial. Há um caso emblemático: o tenente Osmarinho Cardoso, acusado de seqüestrar a filha do senador Luiz Estevão (PMDB-DF) em 1997, foi reprovado no exame psicológico, mas virou policial amparado por uma liminar.
Outra razão para explicar a bandidagem entre policiais é a conivência com o abuso. Nas PMs, transgressões militares são reprimidas com rigor. Excessos na rua, nem tanto. Numa comparação até irônica é como se fosse maior a probabilidade de um policial militar ser punido por estar com a bota suja do que por ter matado alguém sem uma razão forte. É uma conduta que remonta a um passado recente. No Brasil, o regime militar se valeu dos excessos praticados por policiais, gerando uma distorção perigosa. Os generais estimularam o acobertamento dos abusos em vez de garantir as punições. Há um dado assombroso que talvez explique essa transigência com os desvios. De acordo com um levantamento feito nas ouvidorias de polícia, há, proporcionalmente, quinze vezes mais denúncias contra oficiais e delegados do que contra os seus subordinados. Ou seja, a cúpula é pior do que a base.
Punir o policial marginal é muito mais desafiador do que prender bandidos comuns. Um promotor carioca, Marcelo Lessa, conta um caso de arrepiar que ilustra a dificuldade. Quase dois anos atrás ele recebeu provas contra um delegado que agia no norte do Estado e informou a corregedoria da Polícia Civil do Rio. A denúncia do promotor ficou engavetada por quase dois anos até que Lessa conseguiu um mandato judicial e, com o apoio da Polícia Militar, invadiu a delegacia de São Fidélis e prendeu em flagrante o delegado Paulo Gil, acusado de formação de quadrilha.
Há um grupo de problemas sérios enfrentado para prender policiais bandidos que é de caráter técnico. É difícil reunir provas para acusar policiais. No Rio, apenas 1% dos inquéritos remetidos pela corregedoria da polícia para o Ministério Público resulta em denúncias contra policiais. "Geralmente, os inquéritos são muito malfeitos, não apuram coisa alguma", diz a promotora Maria Ignez Carvalho Pimentel, chefe do setor responsável pelas denúncias contra policiais. O motivo é até óbvio. "Policiais são antes de mais nada especialistas em obter provas e quando querem são capazes de praticar crimes sem deixar tanta pista", diz o diretor da Escola de Polícia do Paraná, Adauto Oliveira. "Investigar a polícia é a coisa mais difícil que tem", diz o promotor Marcelo Mendroni, que estudou o assunto em seis países. "Dentro da polícia, pegar alguém é muito difícil, você só pega quem extrapola totalmente", afirma o corregedor da Polícia Federal, Arthur Lobo Filho.
Existe ainda a barreira da burocracia que protege o funcionário público. No Ministério da Justiça há dezenas de processos pedindo a exoneração de policiais federais envolvidos em crimes. Alguns desses processos estão parados há três anos e os acusados continuam trabalhando. Em São Paulo, um PM trabalhou normalmente por oito anos, recebeu duas promoções e se aposentou durante um processo. Mesmo que um policial seja preso em flagrante cometendo o crime, sua exoneração leva, em média, um ano. Há providências isoladas no país, uma delas adotada pela PM paulista após o trágico episódio da Favela Naval, em que uma equipe de policiais comandada por um certo Rambo foi filmada agredindo moradores de um bairro da periferia, chegando ao cúmulo de matar um deles pelas costas. O atual comando da corporação decidiu acabar com uma perversa tradição e passou a demitir todos os policiais acusados de crimes graves sem aguardar que seus delitos sejam julgados pela Justiça Militar.

Tortura, estupro e homicídio:
os acusados são policiais....

O sargento da Polícia Militar José Carlos de Souza, do Batalhão de Niterói, no Rio de Janeiro, confessou ter participado do assassinato da estudante de comunicação social Patrícia Fernandes Braga, 20. A garota foi estuprada, assassinada a tiros e depois teve o corpo queimado. O policial alega que estava junto com os assassinos, tentou evitar o crime, mas não conseguiu. Em São Paulo, quatro policiais militares estão sendo acusados por triplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver: os soldados Edvaldo Rubens de Assis, Marcelo Christov e Humberto da Conceição e o segundo-tenente Alessandro Rodrigues de Oliveira abordaram três adolescentes que deixavam um baile de Carnaval em São Vicente e os seqüestraram. Os corpos foram achados em um riacho, duas semanas depois. Um dos PMs, Edvaldo, disse ter feito os disparos. Todos estão presos esperando julgamento. Em Minas Gerais, o Ministério Público acusa o delegado Antônio João dos Reis por crimes de tortura, agressão e homicídio. Ao todo, Reis já respondeu a seis processos. "Isso é perseguição contra mim, um policial honesto que sempre trabalhou em nome da lei", alega o delegado. Reis afirma que as acusações existentes contra ele partem dos criminosos.
 

A cocaína sumiu da delegacia

No começo deste ano, a polícia paulista fez uma das maiores apreensões de cocaína realizadas no Estado. Eram 330 quilos da droga, avaliada em 3,5 milhões de reais. Três dias depois, a cocaína desapareceu do prédio de uma delegacia no momento em que estava de plantão uma dezena de policiais. Em Rondônia, o delegado-geral de uma cidade do interior, Silvino Alves Filho, foi preso pela Polícia Federal com 15 quilos de cocaína, que ele transportava em um carro da polícia. O delegado Alves Filho afirma tratar-se de um engano. "Estava transportando drogas que apreendi", relatou em seu depoimento. Em Roraima, a delegada da Polícia Civil Elizabeth Gondim foi demitida depois de ter sido acusada de envolvimento com o tráfico de drogas no Estado. Está presa. Em seu depoimento, teve uma crise nervosa, negou as acusações, mas disse que só falaria em juízo. Em juízo, teve outra crise nervosa. O policial Humberto Aparecido Terêncio, do Paraná, ficou sob investigação por mais de dois anos até que a corregedoria da polícia conseguisse provas para prendê-lo em flagrante. Ele é suspeito de comandar o tráfico no Norte do Estado. Terêncio está preso.

Denunciaram a polícia e foram mortos

É arriscado depor contra policiais. Em São Paulo, durante investigação das ações de uma quadrilha de policiais, cinco testemunhas ligadas ao caso foram assassinadas e duas sofreram atentados. Em Pernambuco, metade das pessoas incluídas no programa de proteção à testemunha está sendo protegida de policiais. O advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho, coordenador do Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Memória Popular, em Natal, foi assassinado com tiros de fuzil quando investigava um grupo de exterminadores formado por policiais. Dezenas de tiros foram disparados contra seu carro. O ex-policial civil Otávio Ernesto, o acusado do crime, está preso. Uma perícia mostra que uma arma de sua propriedade foi usada no assassinato. Ele afirma que estava em uma festa no momento do episódio. No Rio de Janeiro, a dona de casa Onidnaura Silva foi assassinada após denunciar que seu filho havia sido morto por policiais. Como o rapaz, que foi pego pela polícia portando maconha, teve a cabeça arrancada do corpo em função dos disparos que recebeu, ela o reconheceu por causa de uma tatuagem. Em Alagoas, um eletricista, José Joaquim de Araújo, foi preso injustamente acusado de assassinato. Depois que o verdadeiro autor do crime se entregou para a polícia, o eletricista foi libertado, mas denunciou policiais por tê-lo torturado. Na mesma noite que foi solto, sua casa foi invadida e ele recebeu vinte tiros no rosto. Dez policiais são responsabilizados pelo crime. 
 

Acusação: roubo e receptação

Evelson de Freitas-Folha Imagem
O capitão Cleodir foi investigado por
uma CPI e aparece no relatório final
como líder de uma quadrilha que
desmancha caminhões.
Ele continua na PM

O capitão da Polícia Militar Cleodir Fioravante Nardo é acusado de comandar um desmanche de caminhões na cidade de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Apesar de receber um salário mensal de 3 700 reais, uma comissão parlamentar de inquérito montada pela Assembléia paulista afirma que ele movimentou 2,5 milhões de reais entre janeiro de 1995 e novembro de 1996. "Esta é uma acusação absurda e totalmente infundada. Posso provar cada centavo da minha renda. Meu dinheiro é fruto de trabalho honesto, negociando carros e apartamentos", diz. No Rio de Janeiro, o tenente-coronel Maurício Pires Vieira foi preso em flagrante há um mês, também acusado de comandar um desmanche de carros roubados, na Rua Marechal Alencastro. Ele está preso e diz que só fala em juízo. O delegado mineiro Antônio de Moraes Barbosa está detido acusado de participar de um assalto a uma agência da Caixa Econômica Federal em Belém. A quadrilha roubou 500 quilos de jóias, no maior assalto desse tipo já praticado no país. Ele está preso, nega o crime e diz que não estava em Belém quando o banco foi roubado.


 

Policiais seqüestradores

André Correa-CB Press
Orlando Brito
O tenente Osmarinho (à esq.) é
responsável pelo seqüestro
da filha de um senador (acima)
Lili Martins-Folha Imagem
João Santos
Yves Ota tinha
8 anos
quando
foi seqüestrado
e morto por um
grupo de policiais
de São Paulo
Dois policiais faziam parte do bando que seqüestrou Welington Camargo no final do ano passado em Goiás

Alguns dos seqüestros mais dramáticos realizados nos últimos dois anos foram praticados por policiais. Em São Paulo, dois policiais militares, Paulo de Tarso Dantas e Sérgio Eduardo Pereira de Souza, foram acusados do seqüestro e morte do garoto Yves Ota, de 8 anos. O menino foi morto com dois tiros e enterrado no quarto da filha de um dos acusados. Eles foram condenados. A quadrilha que seqüestrou o irmão do cantor Zezé di Camargo, Welington, também teve a ajuda de policiais militares goianos. Em Brasília, a filha do senador Luiz Estevão (PMDB-DF), de apenas 12 anos, foi seqüestrada em 1997 pelo tenente da Polícia Militar do Distrito Federal Osmarinho Cardoso Silva Filho. O policial seqüestrador havia sido reprovado no exame psicoténico. Mesmo assim ingressou na PM amparado por uma liminar da Justiça. Ele fugiu do presídio meses após sua prisão, foi recapturado e aguarda julgamento. O tenente alega inocência, diz que no momento do crime não tinha noção do que fazia por estar sendo submetido a forte stress.

Quadrilhas uniformizadas

Gilberto Marques
Luciano Vicioni
O delegado Brancalion (acima, à dir.):
armas e droga achadas na sua delegacia
O delegado Paulo Gil: preso em flagrante com mais dois investigadores

O coronel Manoel Francisco Cavalcante, que foi comandante da Polícia Militar em Alagoas, e o ex-delegado Antonio Carlos Camilo são apontados como líderes de uma quadrilha conhecida por gangue fardada, que responde por dezenas de assassinatos e assaltos. Foram presas 42 pessoas acusadas de participar do grupo, entre elas 32 policiais. A Justiça já condenou Cavalcante por porte ilegal de armas. Ele responde a vários outros processos. Há duas semanas, o delegado Camilo foi condenado a 69 anos de prisão. Os dois alegam inocência, afirmam que as acusações servem para deter suas ambições políticas. Em São Paulo, o Ministério Público acusa o delegado Edmilson Brancalion de pertencer a uma quadrilha de policiais ligados a roubos e tráfico. Preso por seis meses, ele foi libertado em fevereiro e será levado a júri popular para ser julgado por homicídio. Diz que as acusações são falsas e afirma que está sendo injustamente acusado por causa de drogas encontradas em armários de subordinados seus. O delegado Paulo Gil da Rocha Prata, titular da delegacia de São Fidélis, no Rio de Janeiro, e dois policiais civis foram presos em flagrante acusados de formação de quadrilha e abuso de autoridade. Ex-oficial da Marinha, Rocha Prata foi reprovado no exame psicológico, mas entrou na polícia amparado por uma liminar. Ele diz que as acusações são mentiras inventadas por traficantes e bicheiros presos por ele.

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